Vale tudo, menos a qualidade
- Daniela Mendes
- 18 de out.
- 4 min de leitura
Atualizado: 20 de out.
Fim da trama mostra que “Vale Tudo” pela audiência e quase nada pela qualidade.

Quando Vale Tudo retornou às telas em 2025, não se tratou apenas de reviver narrativas antigas. Foi uma convocação: para lembrar que, na teledramaturgia e na cultura brasileira, não basta existir. É preciso incomodar, provocar, reafirmar. E, sim: “falem bem ou falem mal, mas fale de mim” continua sendo uma máxima de sucesso. Porque o verdadeiro fracasso, hoje, é a indiferença.
Desde os anos 1980, novelas como Vale Tudo (a versão original de 1988) cumpriam papel de espelho social: mostravam corrupção, desigualdades regionais, dilemas morais e éticos, tudo em tom popular, acessível, mas com impacto profundo. A novela construiu valores coletivos, constituiu repertório social, especialmente em contextos de instabilidade ou transição política.
E Vale Tudo integra esse caráter. Desde a primeira vez que surgiu nas telinhas foi um marco não apenas pelo enredo, mas pelo modo como traduziu ao grande público os dilemas do final da ditadura, a redemocratização e os escândalos de corrupção emergentes, inclusive a prática do chamado “jeitinho brasileiro”.
Com o advento do streaming, nos anos 10 deste século, a fragmentação de audiência e a competição por atenção, a novela popular perdeu tanto exclusividade quanto parte de sua centralidade cultural. As séries, as plataformas sob demanda, o conteúdo digital, tudo isso mudou os hábitos de consumo, a expectativa narrativas, a urgência de ritmos mais ágeis e fidelização de público em nichos.
Mas Vale Tudo trouxe a novela de volta à rotina dos brasileiros. Inclusive adaptada com sucesso ao streaming. E então, quando você convoca o passado, o público vai lembrar e o que é mais surpreendente, ele espera. Espera coerência, espera que o mundo de hoje caiba entre as linhas velhas, espera inovação, não apenas repetição, assim como espera o capítulo seguinte. Algo que já pouco se fazia com o hábito das “maratonas”.
Remake, na teoria acadêmica, significa reinterpretar um trabalho antigo, manter sua essência ou estrutura central, mas adaptá-lo ao contemporâneo, em contexto social. Mas foi aí justamente que a nova trama feriu lá bem fundo do inconsciente das pessoas. Cada mudança revelou o quanto o passado idealizado foi moldado por valores que já não vigoram, e isso frustrou quem resiste “ao novo”.
É interessante notar que nem a atriz Regina Duarte, a protagonista Raquel Acioly, manteve-se como namoradinha do Brasil. Por que então que algum rastro dessa intérprete sobreviveria ao tempo?
A então musa branca do bolsonarismo foi substituída pela atriz negra Thaís Araújo, um símbolo da representatividade racial no país por ser pioneira em tramas anteriores em que ela estreiou como protagonista negra e abriu caminho para heroínas que não repetem mais um padrão.
Mas, verdade seja dita, a autora Manoela Dias tomou decisões que traem esse limite entre reverência e modernização. Deixar Raquel Acioly apagada na reta final levantou acusações de tokenismo, que é em letramento racial, a prática de inclusão simbólica de membros de grupos minoritários para dar um verniz de diversidade sem promover mudanças de fato.
Outra crítica diz respeito a incorporar no enredo certos virais de rede social que quebraram a fluidez da trama. Ela também não conseguiu costurar suas inovações tão bem. Argumentos quebrados, pobres, diálogos mal construídos, frustraram quem ainda torcia pela autora que deu mais protagonismo feminino, além de tensões morais que movimentaram a opinião pública.
As críticas aos “furos de continuidade” ou “descontinuísmo” são sintomas dessa tensão: quando uma trama quer ser ao mesmo tempo memória fiel e crítica contemporânea, o risco é que alguns pontos pareçam incoerentes mas é justamente esse o preço de não simplesmente repetir. Ela transparece na relação da equipe envolvida, nos atores e a mídia lucra com a fábrica de ódio que conecta as pessoas.
Vamos pôr as cartas na mesa. A imprensa está muito interessada em explorar os “erros”, os “furos”, as incoerências. E o sucesso de uma novela tem menos a ver com qualidade do que se supõe. As críticas carregam menos análise artística ou política do que desejo de polarizar, de alimentar rancor, de ganhar engajamento. E aí o “ódio ao novo” se torna combustível jornalístico: polarização gera cliques, compartilhamentos.
Enfim, quando o remake modifica temporalidades, papéis de gênero, estrutura de poder, representação racial isso pode gerar decepção em quem esperava exatamente a mesma sensação nostálgica. Mas a decepção não necessariamente invalida o remake. Ela pode torná-lo poderoso justamente por forçar o público a refletir: até que ponto nossa memória idealizada cabe no presente?
Aposição da empresa Globo é suspeita. Ela não cedeu arbitrariamente às polêmicas externas frente ao comprometimento com a reinscrição de pautas progressistas, diversidade étnico-racial, pluralidade de vozes, “dentro dos seus limites”.
Ela cedeu pontualmente, como, só para dar um exemplo dos menores, casa e dá filho ao casal Ivan e Raquel que moravam juntos em união estável. Está claro que há um direcionamento editorial que busca dialogar com o presente, responder às demandas sociais. Mas o conservadorismo permanece nos detalhes. Como a destruição da força da personagem Solange. De workaholic para houseaholic orbitando em torno do marido e filhos gêmeos?
Tropeços persistem, e não por acaso. Sinalizam que a mudança é um processo, não uma instauração automática. Então, o Brasil de hoje é um país em que não vale tudo como o de 1988. Não vale mais fingir que desigualdades não importam. Não vale reproduzir estereótipos racistas com naturalidade. Não vale ignorar a pressão estética que o público exerce. Há princípios em jogo: representatividade, diversidade, crítica, ética. E o debate é o verniz da rinha virtual.
Vale Tudo (remake) mostra que a novela pode, e deve, ser arena de disputa cultural, espaço de tensão entre nostalgia e renovação, entre o familiar e o urgente. Que o público adulto, aquela parcela que guarda memória e também percepção crítica, está assistindo, discutindo, exigindo. E isso é alentador.
Porque o futuro da teledramaturgia não será decidido apenas por quem quer repetir o passado, mas por quem se dispõe a reconstruí-lo sem perder a consciência de que os valores mudam, as estruturas têm falhas, e que há, sim, coisas que valem muito ser desafiadas. Mas é preciso avançar e ter mais coragem para manter um comprometimento maior com a qualidade e com uma trama que realmente acompanhe a sociedade ao invés de alimentar o ódio que sobra dos embates entre progressismo e conservadorismo, fazendo a audiência ir às alturas.








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