Espetáculo e violência política
- Daniela Mendes
- 18 de ago.
- 4 min de leitura
Enquanto a violência política de gênero é normalizada no legislativo municipal ao servir a cortes nas redes, o projeto para inibir a participação feminina avança.
Opinião

A cena de uma vereadora sendo encarada por um colega de plenário no último dia 12 de agosto, em São João del-Rei, não é apenas um gesto grosseiro: é o espetáculo da violência política em sua forma mais explícita em tempos de transmissão das reuniões da Câmara ao vivo pela internet.
Pensamos que estes ataques ficariam num episódio único, quando outra vereadora também foi atacada no exercício do mandato passado. Gestos assim, cada vez mais frequentes em parlamentos do país, não são inocentes. Eles pioram a cada ano ao buscar com isso criar cortes para redes sociais. No fundo, apontam para um único propósito: inibir a participação política feminina na política institucional.
Imagine, leitora, estar em uma reunião de trabalho e, no momento em que começa a falar, um homem se aproxima e te encara de forma insistente. O constrangimento já seria enorme em um ambiente corporativo, mas pense no peso dessa cena quando se trata de uma vereadora eleita, dentro de uma Câmara Municipal. Que mensagem isso envia para todas nós, cidadãs que compartilhamos uma democracia? Quando um homem encara outro assim a porrada não é certa? Não é isso que significa o gesto de encarar?

Falar na Casa do Povo não deveria exigir coragem de uma mulher. Expressar-se é um direito e, como tal, precisa ser resguardado. No entanto, o que temos visto é a naturalização da violência política de gênero, um fenômeno que ganha força justamente em pleno agosto lilás, mês dedicado ao enfrentamento da violência contra as mulheres.
Episódios como o que ocorreu em São João del-Rei soam como recados: “você não é bem-vinda aqui, e se quiser participar, terá que suportar ataques pessoais”. As denúncias não param de chegar na nossa redação. Quarta-feira, 20, vamos trazer mesma queixa com o perfil de uma vereadora de uma cidade vizinha na editoria “Lugar de Fala”.
Queremos lembrar que uma Câmara parlamentar, seja federal, estadual ou municipal, é a Casa do Povo. Sua função é legislar, fiscalizar o Executivo, representar a sociedade e, em alguns casos, autorizar julgamentos de autoridades. E povo, sociedade, somos todas e todes, não apenas os homens hétero cis que são agressivos e se justificam depois lançando a máscara de pais de família tementes a Deus.
Depois de só trazer pauta de rede social, o agressor demonstrou que sua prioridade não era a qualidade do debate legislativo, mas a construção de uma narrativa midiática para suas redes. Quando a vereadora se posicionou, ele respondeu com um gesto calculado de provocação: girou a cadeira, se aproximou e passou a encará-la enquanto ela discursava. O presidente da Câmara não interveio com firmeza necessária. Outro colega chegou a classificar a cena como “deboche”, tentando de forma confusa repreender o decoro. Mas o que se viu foi mais grave.
Foi uma tentativa explícita de silenciar uma mulher no exercício do mandato. E, nesse gesto, não se feriu apenas uma parlamentar, mas todas nós que acreditamos que a política institucional deve ser um espaço seguro de representação.
Não é a primeira vez que vemos esse roteiro: projetos com forte apelo midiático servem para criar palanque. O custo é ora a cultura popular, criminalizando expressões artísticas ligadas a juventudes periféricas, como o funk, o Rap e o Trap, ora os direitos dos animais, ora a luta por igualdade de representatividade nos parlamentos, ora tantas outras coisas que dão sentido à democracia.
O saldo da sessão foi revelador: enquanto parte da Câmara buscava um debate sério, justo o parlamentar governista preferiu seguir com sua pauta como um roteiro de “reels” em plena reunião.
No final, a cena que deveria passar despercebida, um homem girando a cadeira para encarar uma colega, é reflexo de algo maior. Existe um projeto de lei (1256/2019), de autoria do senador Ângelo Coronel (PSD/BA), que propõe a revogação do § 3º do art. 10 da Lei nº 9.504/1997, que estabelece percentuais mínimos de candidaturas de cada sexo para eleições proporcionais. O objetivo é alterar a Lei Geral das Eleições para eliminar a obrigatoriedade de cotas de gênero nas disputas da Câmara dos Deputados, Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais.
Além disso, tramitam propostas ainda mais amplas de enfraquecimento das cotas. Uma delas é a “PEC das Mulheres”, que parte de um pacote de mudanças que também inclui a PEC da Anistia (PEC 9/2023), aprovada em 2024. Essa emenda constitucional perdoa partidos que descumpriram cotas de gênero e raça, reduz a punição caso não cumpram essas regras, e até limita a aplicação das cotas no futuro. Abre uma brecha para que partidos cumpram apenas 18% de candidaturas femininas em vez dos atuais 30% de cota.
O gesto do vereador não é singelo, mostra o incômodo com a participação feminina. Nós, mulheres, não podemos aceitar que a política não seja lugar para estarmos. Não podemos tolerar nenhuma forma de intimidação, nem conosco nem com outra mulher. Se no âmbito da violência doméstica o lilás de 2025 alerta para não deixarmos a violência chegar ao fim da linha, o mesmo é na política: não deixaremos um direito acabar e a sociedade retroceder. A cadeira ocupada por uma mulher deve ser também respeitada e protegida por lei.
Ainda somos um dos piores países em representatividade feminina na política do mundo. Na Câmara dos Deputados, apenas 18% das cadeiras são ocupadas por mulheres. Figuramos em 143º lugar entre 190 países, atrás até mesmo de nações com sérios problemas de direitos humanos, como Haiti, Arábia Saudita, Índia e Afeganistão. Por isso tudo, não se trata de um simples gesto nem para a parlamentar, nem para nenhuma outra mulher na política, nem para nenhuma de nós. Se cenas como essa se repetem e permanecem impune, futuramente qual mulher vai querer entrar para a política?

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