Direito de parir sem traumas.
- Daniela Mendes
- 13 de jul. de 2022
- 9 min de leitura
Atualizado: 23 de jul. de 2022
As Doulas de São João del-Rei buscam reconhecimento profissional para lutar contra a violência obstétrica na região

A turismóloga Camila Fernandes tem 35 anos e não sabe exatamente de onde veio o interesse pelos processos que envolvem o parto. Ela tampouco decidiu se quer ser mãe. Só sabe que desde criança o assunto domina seu interesse. Adorava ver filmes e programas de televisão que traziam mulheres gerando pessoas como tema.
Por isso, há dois anos, Camila resolveu fazer a qualificação profissional de doula e, depois, em 2021 fez o curso de atualização da Escola Politécnica em Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/FIOCRUZ) no Rio de Janeiro. O curso prepara as alunas para dar auxílio físico, informacional e emocional a gestantes, parturientes* e puérperas*. Além de preparar as profissionais para atuar na família, na comunidade e na rede de serviços de saúde. O que as coloca como promotoras dos direitos das gestantes naturalmente.
Em outubro do ano passado, Camila se mudou para Tiradentes com o companheiro. Logo ela entrou em contato com uma colega sanjoanense que fez o curso da EPSJV também, Silvia Vilela. Foi a companheira que falou não só sobre outra doula em Tiradentes, a Luana Casagrande, mas também de todo um grupo da região, o Doulas de São João del Rei.
Costuma ser assim, de uma a uma, que elas vão, aos poucos, formando uma rede. Há dois anos na doulagem, Camila viu aqui, no Campo das Vertentes, a oportunidade de crescer na profissão ao lado do próprio processo de crescimento do grupo. “Eu estava bem pessimista sobre a doulagem na região, mas ao ter contato com outras mulheres percebi que estamos ganhando espaço”, confessa.
"Uma relação está sendo construída, um vínculo com a equipe e a doula". Anna Paula Nogueira, enfermeira
Iniciativa
Esse otimismo veio de dois fatos: o primeiro, a aprovação da Lei das Doulas (5.816/2021) na Câmara Municipal de São João del-Rei e a execução de um projeto voluntário que Camila implantou em Tiradentes.
Para pôr os planos em prática, além de se juntar ao grupo na cidade vizinha, em Tiradentes ela procurou as enfermeiras que atuam pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Depois, conversou com a secretária de saúde municipal, Jânia Costa, que aprovou o projeto voluntário batizado de “Roda de Gestantes”.
“Nós percebemos que houve uma boa adesão por parte das usuárias às atividades. Uma relação está sendo construída, um vínculo com a equipe e a doula. A participação dela com as "rodas de gestante" tem sido um ponto muito positivo no sentido de auxiliar a nós, enfermeiras, neste processo. A ajuda da doula na atividade educativa, fortalece nosso quadro que é reduzido pela quantidade de demandas de ações que nos chega no dia a dia”. Afirma uma das enfermeiras da equipe de Saúde da Família, Anna Paula Nogueira
A parceria foi estratégica. Como as gestantes são cadastradas na Secretaria de Saúde e são atendidas por agentes, Camila conseguiu mobilizar cerca de quinze mulheres. São cinco encontros (ainda em curso) a cada 15 dias por ciclos criados por ela. Ainda não se trata o que seria o trabalho completo de uma doula, que é individual e acompanha também no pós-parto. Mas um espaço para tirar dúvidas, orientar e trabalhar algumas ansiedades.
Durante os módulos, dá-se também espaço para que as gestantes construam os temas de acordo com a narrativa delas. Os assuntos variam de alívio de dores, o que fazer quando a criança nasce, autoestima, entre outros. “É uma troca de experiências, elas gostam de falar. E essa parte é muito importante. Elas precisam estar muito confortáveis. Se não vira uma palestra, fica maçante”, descreveu Camila.
“Em alguns momentos na nossa cidade a gente viu a gestante tendo que escolher entre a presença do pai ou da doula. Isso é inadmissível porque as funções na hora do parto são completamente distintas”. Vereadora Lívia Guimarães (PT)
Leis

Para que, cada vez mais, estas profissionais possam atuar com liberdade na região, o grupo Doulas de São João del-Rei, do qual Camila e Silvia fazem parte, começaram a se mobilizar para aprovar uma Lei das Doulas de São João del-Rei, o PL 7674/2021.
Há um movimento em curso, em que elas vêm, aos poucos, se firmando na assistência às parturientes. Soma-se às suas ações o movimento de humanização do parto, pelo respeito ao protagonismo da mulher e pelo seu próprio reconhecimento na hora de dar à luz. Ao mesmo tempo em que procuram lutar contra a violência obstétrica.
Pode-se verificar numa pesquisa na internet, que a cada ano, mais cidades tem aprovado projetos de lei de regulamentação da presença da doula nos partos hospitalares. Cada vitória abre uma porta para o reconhecimento destas profissionais na sociedade. É o caso de São João del-Rei, que é um polo microrregional da saúde.
A Lei federal 11.108 de 2005 garante às parturientes o direito à presença de acompanhante durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato, no (SUS). Em São João del-Rei, o projeto redigido e proposto pela vereadora Lívia Guimarães (PT) em conjunto com o grupo de 17 doulas, garantiram o acompanhamento das profissionais na esfera municipal. “Contempla todas as cidades referenciadas, aqui é uma microrregião. É referência pra parto de muitas cidades do entorno. Principalmente, Tiradentes”, dimensiona a doula Silvia Vilela.
Da confecção a aprovação da Lei, o processo foi intenso e pensado em detalhes. Com o texto, procura-se evitar qualquer proibição eventual à atuação das profissionais no SUS. Elas já trabalhavam tranquilamente na rede privada, mas era preciso esse passo para o reconhecimento profissional irrestrito no sistema de saúde público.

“Em alguns momentos na nossa cidade a gente viu a gestante tendo que escolher entre a presença do pai ou da doula. Isso é inadmissível porque as funções na hora do parto são completamente distintas”, explicou em discurso Lívia Guimarães na ocasião da primeira votação do projeto de lei municipal.
Silvia Vilela faz uma leitura mais ambiciosa da conquista. “A gente está de olho no futuro: ter doulas tanto na atenção básica quanto num plantão de hospital público. O atendimento só de uma pra uma limita a nossa ação”, afirma.
Um dia de festa e muitos de luta.

Foi um dia festivo que marcou a tarde da primeira votação na câmara do PL naquele 16 de novembro de 2021. As doulas se reuniram em frente ao Teatro Municipal de São João del-Rei onde fizeram cartazes, pintaram barrigas, cantaram e saíram em cortejo rumo à Casa legislativa. Ocuparam todo um lado reservado ao público no plenário e garantiram a aprovação em primeiro, depois em segundo turno mais a sanção do executivo.
A vereadora Lívia Guimarães fez um discurso emocionado no dia da primeira votação. “Quando eu ainda estava fazendo o pré-natal, minha mãe achava uma bobagem ter doula. Ela dizia: Mas eu vou estar lá. Aí a Esther (médica obstetra) teve um papel muito ativo e importante. Perguntou: a senhora já viu sua filha parindo? Minha mãe disse: não. Então eu tenho certeza que a senhora vai reconhecer o papel da doula”.
Agora, passados quase nove meses de sanção da Lei pelo executivo, outros desafios se apresentam para o grupo. Silvia diz que tem pouca doula acompanhando gestantes atendidas pelo SUS.
Ela atribui isso à diminuição do poder de compra das famílias e à falta de um trabalho maior de informação e de equipes multidisciplinares. “Se não existe esse apoio multidisciplinar no pré-natal, seja no SUS ou no plano de saúde, essa busca por doulas não vai acontecer automaticamente”. Silvia estima que se tiver 10 partos acompanhados por profissionais, num total de 50 em São João del-Rei, é muito. E ela não acredita que tenha nem isso.
"É um cortezinho que não precisa. É o soro que coloca sem nem tá precisando ainda. É negar anestesia para parto normal quando a gestante é do SUS". Silvia vilela, doula.
A doula também sente que falta muito trabalho por fazer. “A gente não está trabalhando tanto nessa divulgação, de ganhar território, de ganhar gestantes de vários lugares”. Mas não fala assim com desânimo, e sim para apontar as próximas pautas do grupo. Para Silvia será preciso haver um levantamento da atividade das doulas para depois pensar numa forma de proporcionar mais acompanhamento de gestantes.
Embora aponte os desafios, ela está otimista e muito ativa. Atualmente, Silvia ocupa uma cadeira na nova Associação de Doulas de Minas Gerais, a Minas de Doulas, que existe desde 2011 e só este ano se formalizou. Na semana passada a data de publicação desta matéria, ela Camila e a doula Júlia Teixeira, fizeram a primeira roda de conversa com grávidas de São João del-Rei e participaram de um programa na Rádio São João.
Violência Obstétrica.
Outro aspecto da doulagem é que ela também orienta em relação aos direitos das gestantes, o que pode evitar uma violência obstétrica. Silvia explica com exemplos o que é: “Violência obstétrica existe desde o pré-natal. Não precisa ficar enfiando o dedo na vagina da mulher pra saber se tem dilatação quando ela está em trabalho de parto. Tem violência quando o médico pede exame demais, ultrassom demais e fica encontrando pelo em ovo".
Quando Sílvia dá exemplos, mostra níveis sutis e profundos deste tipo de violência. "Qualquer frase do tipo: se tiver tudo bem, vai ser normal... Ou “se parir dentro das primeiras quatro horas”, que é o tempo que o plano paga, que é o tempo que o médico se coloca disponível... Ou quando o médico diz que não se responsabiliza se passar de 40 semanas. Qualquer frase dessas! Toda gestante da nossa região ouviu isso em algum momento! Isso já é violência obstétrica", enumera e completa. "É um cortezinho que não precisa. É o soro que coloca sem nem tá precisando ainda. É negar anestesia para parto normal quando a gestante é do SUS".

O lugar é delas.
A carta enviada pelo grupo Doulas de São João del-Rei aos demais vereadores lembra que o cuidado e o suporte na hora do parto eram feitos por mulheres mais experientes em outros tempos. Muitas vezes, mães, irmãs mais velhas ou vizinhas que detinham um saber empírico. Uma colaboração baseada na prática e no afeto solidário.
O avanço da medicina e a hospitalização das últimas décadas limitaram o parto a uma responsabilidade da esfera obstétrica e técnica, o que excluiu o amparo, o conforto físico e emocional para a gestante. Assim, a doula tem a importante função de preencher essa lacuna, dando o apoio informativo, físico e emocional para a gestante. Elas detém, inclusive, saberes que permitem o uso de técnicas não farmacológicas para o alívio da dor da parturiente.
Com a Lei Municipal 5.816/2021 as doulas se colocam ao lado das gestantes e conquistam o direito de exercer a profissão independente da via de internação, ou seja, SUS, convênio ou particular. Agora, estas profissionais não podem sofrer impedimentos por parte da equipe de plantão.

É na esfera municipal, onde se dá a atenção primária com o pré-natal e assistência ao parto, que elas também pretendem fomentar uma política efetiva para evitar a mortalidade materna e neonatal.
A mortalidade materna atinge em maior número mulheres das classes sociais com pouco acesso aos bens sociais. E, na atualidade, configura como uma das mais graves violações dos direitos humanos das mulheres, por ser uma tragédia evitável em 92% dos casos e por ocorrer principalmente nos países em desenvolvimento.
De acordo com o Painel de Monitoramento da Mortalidade Materna, o Brasil teve, em 2021, média de 107 mortes a cada 100 mil nascimentos. A taxa de mortalidade materna se refere ao número de mulheres que morrem durante a gravidez ou nos 42 dias seguintes ao parto devido a causas relacionadas à gravidez ou por ela agravada a cada 100 mil nascidos vivos em um determinado ano, em um país. A morte é causada por qualquer fator relacionado ou agravado pela gravidez ou por medidas tomadas em relação a esse período. Só em São João del-Rei, morreram 44 mulheres, 123 na microrregião do Campo das Vertentes.
Vigilantes do bem estar da gestante
Por isso, também o papel de vigilância da doula. "Às vezes a mulher sabe que o sistema é falho e deixa de procurar ajuda. Ou ela acha que é normal e não quer incomodar o médico perguntando. Outras, ela está com uma hemorragia muito grave, por exemplo. As coisas que mais levam as mulheres a mortalidade materna e infantil está relacionada a hipertensão negligenciada na gestação, no caso de um pré-natal precário”, explica Silvia
Camila descreve o procedimento de uma doula no dia em que a criança vem ao mundo. “No dia do parto eu vou pra casa da gestante, fico com ela lá o máximo de tempo que ela conseguir, com apoio emocional. Mas não faço a parte técnica, que pode ser feita pela enfermeira obstétrica. Não afiro pressão, não faço exame de toque, não meço temperatura, nada disso. Fico atenta à evolução do parto, fico na observação”.
As técnicas das doulas para diminuir a dor permite a criação de um ambiente tranquilo e acolhedor. Além de ser a ponte de comunicação entre a mulher, a família e a equipe de atendimento. São pontos que melhoram o bem estar da gestante.
Camila diz que depois da pandemia houve um aumento do interesse das gestantes por doulas nos meios de comunicação. Supõe que talvez seja porque as pessoas ganharam mais tempo para se informar. “Tem muito mais gente optando pelo parto normal. Muita divulgação na mídia de pessoas famosas que tiveram doulas, parto humanizado", afirma com o otimismo de quem tem prazer em testemunhar vidas chegando ao mundo num ambiente sem traumas.
Glossário:
Parturiente*: que ou quem está em trabalho de parto ou que acabou de parir.
Puerpério*: também chamado resguardo ou quarentena, é a fase pós-parto em que a mulher experimenta modificações físicas e psíquicas.
Obs: O PL (Projeto de Lei) muda o número depois de aprovado, de pois que de fato vira lei.
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