Elas colocam asas nos sonhos.
- Daniela Mendes
- 5 de ago. de 2020
- 8 min de leitura
Atualizado: 11 de ago. de 2020
A história de uma parceria que nasce do desejo de trabalhar para o bem de várias mulheres na cidade onde moram.

Duas manas se conhecem numa festa, ficam meio deslocadas e começam a conversar. Descobrem que têm muitas coisas em comum: um passado de dificuldades, um presente cheio de desafios, filhos pequenos mais ou menos da mesma idade, interesse pelo processo de humanização do parto... Mas, principalmente, sonhos.
Até aí essa história não tem nada de diferente, não fosse uma característica: elas sonham para várias mulheres e alto. Assim nasceu o Musa, o Mulheres Sonhando Alto. Um projeto da fotógrafa Lidiane Lobo e da doula Luana Casagrande.
As duas juntas encheram um caderninho de anotações e fizeram projetos para acolher e empoderar as mulheres de Tiradentes. O objetivo é criar oportunidades através da união feminina e a troca de experiências. Já deram um passo inicial, mas tiveram que improvisar neste período de pandemia afim de socorrer as emergências que foram surgindo.
Lidiane
Lidiane é carioca. Ela fez o caminho inverso das histórias que a gente costuma ouvir. Saiu da cidade grande e veio para o interior em busca de uma vida mais plena. Como ela mesma diz, é do tipo “de se movimentar no mundo”. Nascida no subúrbio, numa família evangélica, pulou fora do ninho.
Casou aos 20 anos, começou a estudar história, depois letras na universidade pública e se separou, não apenas do marido mas da igreja e do estilo de vida. Foi morar numa república em Copacabana.

“Eu era uma pessoa muito em busca de alguma coisa que não se apresentava ali. Tava com a vida completamente desorganizada no sentido convencional. Fui aquela pessoa que foi tateando, buscando coisas”, descreve mas deixa bem claro que vê isso como uma consequência natural de alguém que busca transcender o que lhe deram como pronto e acabado.
Ela já estava há quatro anos conciliando o trabalho de técnica, numa empresa de engenharia, com os estudos na Universidade Federal do Rio de Janeiro, que considerava completamente elitista e classista, fora da sua realidade.
Já havia trancado o curso uma vez, teve depressão, vivia uma espécie de adolescência tardia com os amigos e estava saturada da rotina. Queria mesmo era dar o fora e ver a vida de um novo ângulo. E, para tanto, escolheu as lentes de uma máquina fotográfica. Foi fazer um curso.
Um dia, uma amiga falou de um amigo de Lavras (MG) que estava fazendo uma revista e sugeriu que ela escrevesse artigos para a publicação. Ela começou a conversar com ele pela internet e o papo deu em romance on line. Quando resolveram se encontrar, escolheram Tiradentes como ponto de encontro.
O encontro virou namoro e o namoro engatou. Os dois decidiram se mudar para Ouro Branco (MG). Lá perto, Lidiane descobriu um vilarejo chamado Itatiaia pelo qual se apaixonou. Considera este período como sabático. Foi o ponto de rompimento de vez com o Rio de Janeiro e tudo que a vinha incomodando.

Mas os problemas financeiros começaram a surgir a partir de 2016. Os trabalhos começaram a ficar escassos. Por isso, resolveram morar em Conselheiro Lafaiete (MG), que era uma cidade maior onde eles tinham conquistado alguns clientes.
Nessa época, Lidiane estava trabalhando com fotografia de parto, super envolvida com ativismo de grupos de maternidade. Chegou à conclusão que tinha se encontrado, começou a fazer uma clientela em Belo Horizonte e estava se estruturando para isso.
Devido a morte repentina do pai, tantas mudanças e uma situação financeira delicada, ela e o companheiro resolveram se mudar para Tiradentes, em 2017, atrás de uma oportunidade ofertada por uma conhecida. O fato deles terem começado a namorar na cidade só aumentou a vontade de se mudar.
Os planos iniciais deram errado, eles fizeram outros empreendimentos e a filha nasceu um ano depois. Lidiane se viu obrigada a vender a máquina fotográfica para cobrir despesas e agora estava numa casinha de bairro no interior, uma fotógrafa sem máquina e com uma filhinha para criar ao lado do companheiro.
Sem conhecer quase ninguém, começa a frequentar reuniões do Grupo de Mulheres de Tiradentes, fazer artesanato e ajudar na organização de uma feirinha. Um dia foi a um evento de confraternização das mulheres e lá conheceu Luana.
Luana
Não se deixe levar pelo olhar meigo e o jeito de menina de Luana. Quando a doula chama a gente, endireita a nossa espinha e parece convidar para aprumar a vida num comando de voz como se fosse uma anciã. “Ei, mulher!”. É assim que começam seus áudios no whatsapp.
Talvez porque sua primeira definição seja a de uma mulher de lutas. E ainda mais pela a que considera mais importante, que é contra a violência obstétrica. Começa já discursando contra o sistema que massacra esse momento sublime da mulher, o parto.
“É tanto pelas mulheres da classe baixa, quanto das mulheres da classe alta também. Mas eu me sinto muito sensibilizada pelas mulheres da periferia, pretas, pobres, porque a taxa de violência obstétrica delas é muito maior do que de mulheres brancas”, afirma. É assim que Luana sonha alto. Ela quer mudar esta estatística.

Há três anos, Luana está em Tiradentes. Chegou de Portugal, onde morava com o marido luso-brasileiro. Sua história também difere das narrativas mais comuns. Veio da Europa fugindo da fome.
Eles se conheceram no interior de São Paulo, tiveram um filho e foram para o outro lado do oceano em busca de uma vida melhor, mais estável. “Chegando lá a gente se deu muito mal, muito mal... A gente ficou muito ruim de grana, eu não consegui meus documentos, fiquei ilegal, pessoal tinha muita xenofobia, fiquei grávida da Violeta, foi muito complicado pra mim”, lembra.
O casal não conseguiu escola para o filho, Arthur. Com a barriga grande, Luana andava com o menino pra cima e pra baixo. “E nesse desespero todo, cheia de hormônio, o marido trabalhando o dia todo e ganhando muito mal, eu conheci um grupo que chamava Famílias com Esperança”, narra sua saga de um jeito que nos enche de imagens e emoções.
“Foi uma situação tão complicada, sabe? Não ter o que comer e estar grávida. Às vezes eu deixava de comer minha comida para dar de comer pro Arthur, sabe?”, relembra com um pouco de tristeza.
Era um grupo católico de voluntárias que faziam doações de fraldas, leite e bolachas para mães carentes. Luana se inscreveu no programa e foi a primeira vez que ela se sentiu acolhida sem ser julgada no país. “Eu recebi muito apoio, muito carinho, ajuda com comida, com fralda, lenço umedecido, creme pra barriga”, recorda.
A filha nasceu em Portugal e, depois de um tempo, surgiu a oportunidade deles ajudarem a mãe dela na loja de cerâmica de Tiradentes. Não pensaram duas vezes em voltar. Durante um ano de Brasil, só trabalharam. Ainda tinham que aprender a fazer a cerâmica e viviam uma rotina de loja, atelier e casa.
Luana disse que ficou um tempo introspectiva, com receio de fazer amizades e conhecer pessoas devido a dura temporada de cerca de três anos em Portugal. Até chegar o dia que se cansou e resolveu sair de casa. Estava determinada a arrumar uma forma de devolver para o universo a ajuda que havia recebido na vida. E por isso resolveu ir ao mesmo grupo de mulheres que Lidiane disposta a contribuir.
O encontro
Era uma festinha de amigo secreto do desapego com o grupo Mulheres de Tiradentes. A reunião era bem extrovertida, mas com certo humor Luana lembra que se sentia um ET. Quando ela contou numa mesa por tudo que tinha passado e como queria retribuir para o universo a ajuda recebida, Lidiane chamou a doula para conversar e colocarem as ideias no papel.
Assim nasceu o Musa, Mulheres Sonhando Alto. O nome veio de Lidiane, que chegou com um conceito de economia solidária e uma visão mais pedagógica dos processos. Luana veio com a experiência e empatia de uma mãe que conheceu a fome de perto. Por isso, considera de suma importância a ajuda emergencial.
“Só que eu não queria que fosse só uma coisa de dar e a pessoa vai embora. Queria que fosse um apoio também de olho no olho, te entendo, tô aqui, conte comigo.”, explica. Fizeram uma pesquisa de público e descobriram que as mulheres tinham muito problema de autoestima. “Elas não conseguem se ver como patroas, só como empregadas”, se preocupa Luana.
O plano inicial agora é fazer um encontro com mulheres para entender suas necessidades e abordar temas diversos, desde violência obstétrica a direitos trabalhistas. Com isso querem promover a reflexão sobre o papel da mulher na sociedade e dar suporte técnico afim de que elas possam empreender naquilo que acreditam.
Lidiane vê Tiradentes como um recorte do Brasil. “Uma cidade que circula muita grana com muita gente pobre, vivendo quase que na miséria mesmo. Essa desigualdade brutal, né? Mas com potencial, com gente que pelo menos se diz progressista, com vontade de mudar”, analisa. Ela então vê o Musa como a ponte de comunicação entre as pessoas que querem mudar as coisas com as que precisam de ajuda realmente.
“O Musa é para possibilitar que as mulheres sonhem mais alto”, resume Lidiane. “O Musa une mulheres, que unidas vão se fortalecer e se apoiar para que elas realizem seus sonhos”, explica. Se a necessidade for comida, elas se juntam e tentam ajudar. O importante é dar o suporte para levantar umas às outras.
A pandemia
Com a pandemia os planos tiveram que esperar. É com pesar que as duas deram uma parada nos encontros presenciais por conta da situação mundial. Justamente quando tinham acabado de fazer o primeiro encontro com mulheres e a primeira ação, começaram as medidas de isolamento.
Mas não se deram por vencidas. São muitos projetos, muitas ideias com várias nuances. Por enquanto, elas vão estruturando as que não põe ninguém em risco de contaminação. E uma delas é uma parceria com a Mana, que vai dar suporte a um destes projetos do Musa. Mas isso é história para depois.
Pois, neste momento, o corre continua firme e forte. Pelo whatsapp, mantiveram uma rede de apoio com 25 mulheres em que abordam diversos assuntos: desde dicas para evitar estrias na gravidez, posição de alívio da dor no parto até doação de itens como colchão, cama, cômoda, etc.
Também foram distribuídas cestas com kit de higiene pessoal e, na medida que vão conseguindo, enviam também alimentos não perecíveis, roupas de crianças e até cobertores.
Basicamente, o Musa doa o que recebe e ajuda nas iniciativas do grupo de Mulheres de Tiradentes. O número de mães em situação de risco na cidade aumentou muito e elas tiveram que se organizar com outras iniciativas para dar conta das demandas que iam aparecendo. Essa união de forças com empresas e grupo de Mulheres de Tiradentes, deram o nome de Abrace.
Na ponta do lápis, foram treze cestas no dia da inauguração do Musa, em março, antes da pandemia. No mesmo mês, com o restante dos itens, ainda conseguiram entregar mais 15. Depois, tiveram ajuda do Banco Sicoob para distribuir as cestas básicas.
A partir da quarta entrega de cestas básicas, já com o Abrace, foram 17 famílias numa primeira vez e 42 numa segunda. Este mês, a demanda aumentou para 50. O Fartura Gastronomia doou cobertores e o trabalho de organizar estas doações só aumentam.
É um momento difícil para se sonhar, ninguém se ilude. Mas garantir a sobrevivência é um passo crucial para, no futuro, poderem alçar voos. O que elas não vão é ser engolidas pela vida ou ficarem em casa vendo Netflix sem nenhum propósito maior. Já mostraram isso e resistem às adversidades quase que naturalmente.

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