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O tecido de futuros possíveis

Lições que a 9º Semana Criativa deixa para o empreendedorismo de Artesãs do Campo das Vertentes.


Montagem feita a partir de foto de Douglas Mendes
Montagem feita a partir de foto de Douglas Mendes

A Semana Criativa de Tiradentes (SCT) transformou Tiradentes em um grande ateliê a céu aberto, onde artistas, designers, artesãos e coletivos criativos se misturaram em experiências que despertaram pertencimento e sensibilidade. Em quatro dias intensos, o evento firmou-se como um espaço de diálogo entre o Brasil urbano e o Brasil rural.


O público circulou por praças, becos e casarões transformados em galerias abertas, onde o cotidiano local ganhou novas leituras por meio de instalações interativas, exposições, cortejos e oficinas. A cidade foi tomada por gestos coletivos e simbólicos, como o Cortejo de Encantarias, que emocionou moradores e visitantes ao resgatar tradições e afetos que ainda vivem na memória das pequenas cidades.


Idealizada por Simone Quintas e Júnior Guimarães, a SCT é resultado de um olhar que nasce da vivência e do afeto pelo território. Os encontros e as colaborações ultrapassam os dias de evento e reverberam em novos projetos, produtos e narrativas. E, para dar um empurrãozinho, pensando nas manas que sonham viver do seu artesanato com dignidade, destacamos as palestras e sintetizamos em 3 lições que podem inspirar nosso cotidiano.


Lição 1: Desenvolver políticas públicas voltadas para o artesanato de mulheres.


Marialza Rodrigues, gestora do Programa do Artesanato Paraibano. Foto/Daniela Mendes
Marialza Rodrigues, gestora do Programa do Artesanato Paraibano. Foto/Daniela Mendes

A primeira palestra que vimos foi sobre a força e a delicadeza da Renda Renascença, tradição que atravessa gerações e hoje se consolida como exemplo de empreendedorismo e política pública bem-sucedida.


Quem apresentou esse trabalho foi Marialza Rodrigues, gestora do Programa do Artesanato Paraibano, vinculado à Secretaria de Estado do Turismo e Desenvolvimento Econômico. Ela explicou que o artesanato, no estado, é entendido como vetor de desenvolvimento e geração de renda, e não apenas como expressão cultural. “O artesão é também um empreendedor”, destacou.


Durante a pandemia, o programa criou uma plataforma digital para dar visibilidade aos artesãos que enfrentavam dificuldades em comercializar suas peças. O site foi desenvolvido pelo governo estadual e reúne informações sobre as tipologias do artesanato paraibano, oferece serviços de emissão de carteiras, editais e um tour virtual pelo Museu do Artesanato Paraibano, em João Pessoa. O programa, criado em 2005, tornou-se uma política pública consolidada, apoiada por parceiros como o Sebrae e o Projeto Cooperar.



Chamou atenção que o Estado criou o Centro de Referência da Renda Renascença (Crença), localizado em Monteiro, no Cariri paraibano. O espaço surgiu como resposta a décadas de trabalho precário das rendeiras, que antes dependiam de atravessadores e trocas injustas.


Marlene Vital, Daniela Mendes.
Marlene Vital, Daniela Mendes.

Hoje, com o apoio de políticas públicas e de entidades parceiras, as artesãs conquistaram autonomia e reconhecimento. O Crença abriga loja colaborativa, laboratório de inovação e o selo de Indicação Geográfica (IG), certificando a autenticidade da renda produzida na região, segundo ela, a única do mundo feita dessa forma.


A rendeira Marlene Vital, mestra na técnica há mais de 35 anos, contou emocionada sua trajetória e o impacto do Crença na vida das mulheres da região. “A renda é amor, é dedicação. Cada ponto é feito com o coração”, disse. Marlene representa um grupo de cerca de 200 rendeiras organizadas e mais de 4 mil que trabalham no Cariri, espalhadas por cinco municípios: Monteiro, Camalaú, Zabelê, São Sebastião do Umbuzeiro e São João do Tigre.


O reconhecimento do trabalho veio também de fora: Marlene foi premiada pelo Conselho Mundial do Artesanato, tornando-se uma das duas brasileiras contempladas. Ao lado de estilistas como Ronaldo Fraga e Renato Imbroisi, ela participou de capacitações e projetos de inovação que unem tradição e design contemporâneo.


Hoje, a renda renascença paraibana é símbolo de resistência e transformação social. As mulheres que antes vendiam suas peças em condições precárias agora produzem, gerem e vendem com autonomia. E o que era apenas um ofício doméstico tornou-se patrimônio cultural vivo e motor de desenvolvimento sustentável.


Lição 2: Fazer o registro de práticas manuais e orais.


A organizadora do livro Helena Kussik e a mediadora da Semana criativa Jéssica Bento. Foto/Daniela Mendes
A organizadora do livro Helena Kussik e a mediadora da Semana criativa Jéssica Bento. Foto/Daniela Mendes

Durante a Semana Criativa de Tiradentes, a ONG Artesol apresentou o projeto “Testemunhas do Brasil: Edição Rendas”, resultado de um trabalho de pesquisa e documentação que se estendeu por mais de cinco anos e deu origem a um livro-manual de referência sobre o artesanato têxtil tradicional do Nordeste, o “Têxteis do Brasil: Rendas e bordados”.


Idealizado em 2019, com organização de Helena Kussik, o projeto percorreu mais de 10 mil quilômetros, envolveu 174 artesãs e registrou nove técnicas de rendas e bordados em cinco estados nordestinos, com o objetivo de preservar, compreender e valorizar os modos de fazer que constituem parte essencial da cultura brasileira.


A Artesol é uma organização fundada em 1998 em São Paulo, dedicada à promoção, salvaguarda e fortalecimento do artesanato de raiz cultural. O livro tem caráter “antropológico e técnico”, reunindo o contexto histórico, social e econômico de cada técnica e comunidade envolvida. O projeto, segundo Helena, é uma forma de registro vivo, feito junto às próprias artesãs e associações parceiras da rede Artesol.


Cada técnica foi documentada com cuidado: foram dias de imersão em cada localidade, em que as pesquisadoras aprenderam os pontos básicos, acompanharam o processo de produção e discutiram com as artesãs quais etapas e saberes deveriam ser registrados. Como o Brasil possui poucos manuais técnicos dessas práticas, especialmente após os anos 1970, esse trabalho representa uma contribuição inédita à memória e à transmissão do artesanato tradicional.


Entre as técnicas documentadas está a “renda irlandesa”, produzida em Divina Pastora (Sergipe), única reconhecida como “Patrimônio Imaterial do Brasil pelo IPHAN”. Outras, como a “singeleza”, o “filé”, o “labirinto” e a “renda de bilros”, possuem reconhecimento estadual e grande diversidade de estilos regionais.


O projeto também aborda o modo como essas técnicas se adaptam às paisagens e aos modos de vida locais, incorporando a história e a geografia dos lugares. Pois são marcados pela “invenção constante” presente nesse fazer artesanal. “A renda não é apenas repetição”, contou Helena. “As artesãs criam, nomeiam novos pontos, transformam erros em desenhos e registram no corpo o aprendizado”. Explica, já que muitas medidas são passadas por gestos, como o comprimento de um braço, a distância de um palmo. É o que reforça a dimensão corporal e intuitiva do ofício.


O livro também valoriza a autoria feminina e o caráter coletivo das rendas e bordados. Em comunidades rurais, o trabalho é espaço de expressão, convivência e autonomia. “Cada peça é uma forma de dizer: ‘isso é o que eu tenho de mais bonito para oferecer’”, relatou Helena. A publicação destaca ainda iniciativas de transmissão do saber para as novas gerações, como oficinas e cursos para crianças em Divina Pastora e outros municípios.


Mais do que um catálogo técnico, “Têxteis do Brasil: Rendas e bordados” é um testemunho poético e social sobre o papel das mulheres na preservação da cultura material brasileira. Ao reunir registros, histórias e desenhos de cada técnica, o projeto reafirma o valor do trabalho artesanal como patrimônio vivo, profundamente enraizado nas relações de afeto, memória e identidade das comunidades que o sustentam.


Lição 3: Desenvolver seu trabalho pautado na memória e na identidade afim de encontrar a poética cotidiana.


Luisa e Daniela Luz, da Estúdio Veste.
Luisa e Daniela Luz, da Estúdio Veste.

O Estúdio Veste, de Belo Horizonte, nasceu do desejo de fazer do pano algo além da roupa: transformar o tecido em casa, afeto e cotidiano. Formado por Daniela Luz e sua sobrinha Luisa Luz, o estúdio se define como um “escritório de criação” que desenvolve arte utilitária. Ou seja, peças que vestem o corpo, a mesa e a vida. Aventais, roupas de mesa, sacolas e objetos costurados à mão carregam uma filosofia: transformar o ordinário em poético, o simples em significado.


No centro de Belo Horizonte, a loja reforça a relação entre o fazer manual e o espírito popular. Começou como ateliê e agora é uma loja que traz em seu conceito um design que une pesquisa, intuição e memória familiar. As duas criadoras enxergam o pano como matéria simbólica: “o desafio é fazer tudo virar pano”, dizem. Dali surgem produtos como o pano do azeite, o pano do queijo e o robe canga, que dialogam com hábitos e gestos mineiros ressignificados para a vida urbana.


Entre a tradição do enxoval bordado e a ousadia das misturas de estampas e texturas, o Estúdio Veste celebra o avesso tanto quanto o direito: a beleza está no acabamento, no desfiado, na linha vermelha que costura a assinatura de cada peça ou na casinha feita para colocar o ramo de uma erva.


O resultado é um design que traduz o olhar afetivo sobre o trabalho manual e sobre as casas de onde vieram as designers: casas com portas abertas, mesas fartas e tecidos dobrados com cuidado cheios de histórias de família que elas contaram na palestra. Descobrimos com estas duas mulheres o poder do design têxtil de costurar histórias e fazer um produto poderoso.



Com isso, fica a certeza de que a saída é coletiva, mana! E vamos seguindo. Amanhã, trazemos outra palestra que vai mostrar um saber antropológico a ser aplicado em coletivos.


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