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Com fogo será ferida

Atualizado: 21 de jul.

Silvia Reis nos faz refletir sobre a destruição e o cuidado do meio ambiente com uma série fotográfica selecionada no FotoDoc e que concorre a premiação.

Silvia Reis é arteducadora no Elvas/ Arquivo Pessoal Silvia Reis
Silvia Reis é arteducadora no Elvas/ Arquivo Pessoal Silvia Reis

A fotógrafa e educomunicadora Silvia Reis, veio com esta palavra: rescaldo. Não diz respeito a um verbo, mas é um ato. No caso, de se jogar água nas cinzas de um incêndio. Pode ser ainda o calor refletido de uma fornalha ou a cinza que contém brasa. É também o aparelho para conservar quente as comidas servidas à mesa ou a camada de estrume que se coloca em torno de um caixão com plantas para aquecer a terra pela fermentação.


Em sentido figurado, rescaldo é o resultado de alguma coisa, o saldo. E no caso, aqui, a palavra foi evocada para sintetizar as queimadas ocorridas na região em 2024, ou o que se viu depois delas. Quando Silvia passou por uma queimada na Estrada Real, também conhecida Estrada Velha, a que liga a cidade de Santa Cruz a Tiradentes, naquela época, lhe acendeu a ideia de fotografar como a crise climática atingiu a região.


É um testemunho, na verdade, daqueles dias em que o azul do céu sumiu e o amarelo do sol cedeu ao vermelho. Depois, Silvia expôs Rescaldo*, este ano, na Galeria do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Iphan, em Tiradentes, no mês de março. Agora, o catálogo da exposição ela gentilmente deixou exposto aqui, para que todos possam voltar às imagens e refletir.


Ela também recebeu a notícia ontem (6) de que este trabalho foi selecionado na primeira fase do Festival de Fotografia Documental da Panamericana Escola de Arte e Design (FotoDoc).


Google Maps
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Processo artístico meio à crise climática


Era 2024, Silvia fazia o curso da artista visual Jacqueline Hoofendy que se dedica à pesquisa e produção fotográfica sobre o corpo e suas subjetividades no “Espaço cultural F508”. O curso se chamava ‘Artesanias da Fotografia’ e tinha como proposta a criação de uma série de fotografia expandida, que são imagens que passam por interferências e manipulações com outros materiais.


Logo no primeiro encontro, houve uma dinâmica em que cada participante compartilhava elementos que gostaria de experimentar em suas fotos. Silvia pensou em muitos materiais mas nenhum lhe ocorreu como solução. Na troca criativa com outros alunos, ela viu a gaze entre as ideias, mas ainda faltava um ponto de partida mais concreto.


Inicialmente, cheguei a pensar em trabalhar com o tema da poluição do ar, pois durante aquelas semanas o clima estava muito seco, com céu cinza e um sol avermelhado, quase sem raios, uma paisagem bastante opressiva. Fiz algumas fotos, mas ainda não sabia como desenvolver a série a partir delas”, recorda.


Foi então que, numa ida de São João del-Rei para Tiradentes, ela se deparou com uma queimada. Ficou profundamente indignada. O ar já estava ruim. Para quem não se recorda, naquela época, correntes de vento transportavam a fumaça do fogo que ardia na Amazônia para o Sudeste.


Ainda assim as pessoas continuavam queimando, contribuindo para a poluição. Naquele instante, senti que precisava falar sobre isso. Mas fotografar queimadas era algo que eu já havia feito antes. Queria encontrar uma forma diferente de abordar o tema, algo que sensibilizasse mais profundamente”, revela.


Foi aí que Silvia pensou em envolver os restos da vegetação atingida com gaze e fotografar. Procurou uma tentativa de expressar a cura e a proteção. O que foi ferido. Mas a professora Jacqueline ainda não reconheceu o trabalho como fotografia expandida. Silvia precisava inserir algo diretamente na imagem pronta para que assim fosse.


Ela usou cinzas para reforçar visualmente a ideia de destruição, de ar poluído. Depois, queimou as próprias fotografias e criou marcas de ferimento, dor, sangue, calor, como uma representação visual do aquecimento do planeta e do sofrimento causado pelas queimadas.



Fiz alguns testes e levei para o curso. Jacqueline gostou muito e me incentivou a seguir com a proposta, inclusive sugerindo que eu enviasse a série para convocatórias, por ser um tema urgente e uma abordagem potente”.


Troncos como membros humanos


A série que Silvia apresenta fala sobre o que fica depois do fogo. Ela utiliza a gaze e a força simbólica desse artefato do cuidado. Ela, que é moradora do Elvas e costuma fazer muitas caminhadas tanto na Serra de São José quanto na do Lenheiro.

Considero um privilégio ter essas duas serras por perto. Caminhar por elas, encantar-se com as formações rochosas e com a vegetação tão característica da região é algo que me faz sentir viva e revigorada. Tenho um afeto especial pela vegetação tortuosa da Serra de São José, acho lindíssima, com suas formas retorcidas que parecem contar histórias do tempo e do clima deste lugar”, declara-se.
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A Serra de São José, desde criança, Silvia diz que via do Elvas e ficava imaginando como seria subir até o ponto mais alto e olhar tudo lá de cima. Com o tempo, a vontade se transformou em um vínculo afetivo. “Acredito que esse vínculo profundo vem, em grande parte, do fato de ter crescido em um sítio no Elvas. Passei a infância muito próxima da natureza, andando pelo mato, subindo em árvores, entrando no rio. Tudo isso me fez desenvolver uma conexão muito forte com o território e com a paisagem natural que me cerca”.


Por conta dessa relação, Silvia busca pela empatia sensibilizar as pessoas em relação à crise ambiental. “Quando envolvi os galhos queimados com gaze, minha intenção era justamente essa: criar uma imagem que evocasse cuidado, dor, mas também humanidade, como se aquelas árvores fossem corpos feridos”, confessa


Para ela, só conseguimos realmente nos mobilizar quando sentimos que aquilo nos afeta de forma pessoal, quando algo toca nossas emoções. “A arte tem essa potência: ela não apenas informa, mas nos faz sentir. Ao humanizar a paisagem ferida, a gaze cria um elo entre o que está fora e o que está dentro da gente. E é nesse espaço sensível que, talvez, surja uma nova forma de olhar e agir diante da emergência climática”, aponta.


Partir para ação é educar


Partindo para uma ação mais concreta, Silvia também se propôs, durante a exposição, realizar visitas guiadas e rodas de conversa sobre o tema das queimadas e da emergência climática.


Ela recebeu alunos da Escola Carlos Rodrigues de Melo, do Elvas, onde estudou no primário, e também hoje frequentam os sobrinhos dela. Além da visita guiada, realizou uma atividade de colagem. A ideia era levar alguns materiais para que, após o bate-papo sobre as queimadas, as crianças pudessem criar trabalhos sobre uma floresta recuperada.

Foi emocionante ouvir seus comentários. Alguns diziam que não pode colocar fogo porque machuca as árvores, outros falavam da importância de cuidar da natureza porque ela nos dá comida, abrigo para os bichos e tantas outras coisas.
Silvia em uma ação educativa de outra exposição/Arquivo pessoal.
Silvia em uma ação educativa de outra exposição/Arquivo pessoal.

Para Silvia, essas ações educativas com crianças é a parte mais gratificante. “Se queremos mudanças, precisamos sensibilizar as crianças desde cedo para as questões delicadas da nossa sociedade. Além disso, trazê-las para espaços de artes, estimula desde cedo o apreço pela cultura e garante que, no futuro, não sejam apenas mão de obra para os eventos da cidade, mas também público, criadoras e protagonistas da cena cultural”, pontua.


Contabilizando feridas abertas


Para Silvia, o rescaldo são as brasas, a fuligem, a paisagem marcada, a sensação de que algo ficou, de que algo ainda queima mesmo quando o fogo parece apagado. E de fato. Silvia faz a abordagem acertada porque o Brasil não para de queimar.


A imagem para o mundo do presidente Lula como líder global ambiental brilha por conta da excelente atuação do governo nos dois primeiros anos em que fomentou a queda dos desmatamentos. Mas diante de números muito altos do governo anterior, o feito já começa a ser visto como um êxito relativo.


Esta leitura é reforçada pelos novos dados. O desmatamento na Amazônia aumentou 92% em maio deste ano em relação a maio de 2024, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, Inpe (sistema Deter). No acumulado de agosto de 2024 a maio de 2025, o aumento foi de 9%. E o fogo é o novo vilão que aparece. Em maio, 51% da área desmatada (960 km²) foi causada por incêndios. Agora, eles refletem um novo padrão de degradação associado às mudanças climáticas e à ação humana, segundo este relatório.


Trocando em miúdos, antes quase irrelevante, o fogo agora atinge mais áreas de vegetação nativa, promovendo uma degradação lenta e contínua das florestas. Um estudo publicado no Proceedings of the National Academy of Sciences dos Estados Unidos (PNAS), já em 2021, revelou que eventos climáticos extremos tendiam a se tornar mais frequentes.


As previsões se confirmaram e, hoje, o corte raso* não é mais o principal vetor da perda florestal. Os incêndios de 2024 foram tão intensos que passaram a ter um papel predominante na degradação.


Técnicos do Inpe alertam que parte da floresta Amazônica já colapsou, com a cobertura vegetal reduzida a menos de 30%. Inclusive, esta porção já deixou de cumprir as funções ecológicas típicas da floresta tropical úmida e é classificada como "desmatamento por degradação progressiva". Este processo, mais lento e difícil de detectar por imagens de satélite, envolve a perda parcial da vegetação, comprometendo as funções originais da floresta, como a regulação do clima e a biodiversidade. 


E em Tiradentes...


Todo o ponto de vista ecológico de Sílvia, expresso na arte dela, é corroborado pelo professor e ativista Luiz Cruz, que há anos luta pelo tombamento da Serra de São José. Ele que acompanha a situação do entorno ambiental há anos, disse que, entre o Chapadão, o terreno do Mangue e o terreno da Cachoeira do Bom Despacho é onde há mais tentativas de se colocar o fogo.


“Esta área é muito visada pela alta frequência de interessados, em banhos de cachoeira, nos passeios, nos piqueniques, mas é também uma área em que muitos proprietários de animais, especialmente os cavalos, chegam lá e soltam os animais. E para que tenha renovação da pastagem, eles colocam o fogo”, explica.

Silvia também registrou no Instagram o céu da região naquela época. A vista é da Colônia, em São João del-Rei.


Nos últimos anos, segundo o professor, esta situação piorou devido à crise climática global. “Isso afeta, inclusive, a Serra de São José e os seus recursos hídricos, que diminuem acentuadamente, especialmente no período da seca. E como frequentador, observei que nestas áreas, tem muitas tentativas de incêndios florestais que não foram adiante”.


O problema, para Luiz, é o mesmo que acontece na Amazônia, o acumulo de ataques. “Quando a gente soma essas tentativas, elas acabam abrangendo uma área bastante razoável atingida pelo fogo. Em certas situações, o fogo não traz muito impacto ambiental, mas com a ocorrência constante, ele é bastante prejudicial às espécies do campo rupestre. Algumas podem ficar muito comprometidas”, advertiu.


Ele acha que deveríamos ter um monitoramento para que essas tentativas fossem proibidas. “Uma delas pode gerar grandes danos ambientais através da expansão do fogo e pode virar incêndios de alta proporção atingindo áreas não só do campo rupestre, mas também as matas de galeria e até adentrar outras regiões”. Disse o professor preocupado.


Várzea de Baixo, Tiradentes. A Serra emoldura toda cidade/Daniela Mendes
Várzea de Baixo, Tiradentes. A Serra emoldura toda cidade/Daniela Mendes

Foi essa área mais rupestre a fotografada por Silvia. Luiz lembra que ela não tem menos importância. “O campo rupestre tem uma quantidade enorme de plantas por metro quadrado, muito mais rico até do que a própria Mata Atlântica ou Cerrado. Especialmente, na estrada que liga Tiradentes a São João del-Rei, nas suas margens. Ali tem ocorrido muitas tentativas de incêndio. As pessoas passam colocam fogo e vão embora. E quem fica com os impactos ambientais, infelizmente é a natureza”.


Em 2024, ano em que Silvia fotografou, Luiz lembra de, pelo menos, umas 30 tentativas de se colocar fogo no terreno da Cachoeira do Bom Despacho e do Mangue. “São as duas áreas mais visadas e mais próximas ali onde se soltam os cavalos”.


Dados de Atendimento de Ocorrências de Incêndios Florestais pelo Corpo de Bombeiros de São João del Rei no município de Tiradentes. Período de 01/01/2023 a 31/12/2024. Total de 87 ocorrências.
Dados de Atendimento de Ocorrências de Incêndios Florestais pelo Corpo de Bombeiros de São João del Rei no município de Tiradentes. Período de 01/01/2023 a 31/12/2024. Total de 87 ocorrências.

O ex-coordenador da defesa civil e que há anos atua no combate a incêndios na Serra de São José, Douglas Veloso, nos ajudou a fazer um panorama da crise de 2024. Ele também faz parte da Brigada Voluntária e trouxe dados do 2° Pelotão de Bombeiros Militares de São João del-Rei. Mas disse que o número não condizia à realidade e estava bem abaixo do que realmente é, porque ainda há os dados da defesa Civil de Tiradentes, que não conseguimos levantar até o fechamento da matéria.


Não existe, ao que parece, grandes latifúndios, agindo sobre a flora local e provocando queimadas que derramem o cinza no ar. O que ameaça a natureza mesmo é o que Luiz Cruz e as fotos de Sílvia Reis falam: uma cultura de limpeza do pasto com o fogo que machuca as espécies.


Já é um velho hábito as pessoas queimarem o pasto entre julho e agosto, esperando as primeiras chuvas de setembro para nascer o pasto novo. O problema, é que com a crise climática estas condições já não são as mesmas para o meio ambiente se restabelecer.


Silvia espera que suas fotografias causem um outro tipo de fogo e rescaldo: a chama da consciência e do respeito ao nosso território e a arte como resultado de uma relação pacífica entre o ser humano e a natureza.


*A exposição Rescaldo foi realizada com recursos da política nacional Aldir Blanc de fomento à cultura, por meio da Secretaria Municipal de Cultura da prefeitura da cidade de Tiradentes (MG).


*Em termos florestais, "corte raso" refere-se à remoção de todas ou da maioria das árvores em uma área, geralmente para fins de conversão para outras atividades como agricultura ou reflorestamento.


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