Uma lente nas trincheiras de Minas
- Daniela Mendes
- 13 de jul. de 2022
- 14 min de leitura
Atualizado: 14 de jul. de 2022
Afeto é política para a fotógrafa e ativista Isis Medeiros. Com a sua lente, procura descobrir e compartilhar as trincheiras pouco vistas na sociedade.

Os quintais dos casarões de Tiradentes-MG dão para becos que serviam como eixos de servidão. Eram reservados a gente preta escravizada a fim de evitar que elas passassem pelas vias principais. Pelas vielas, as pessoas cativas iam e vinham com os fardos de um trabalho desumano, onde os muros testemunhavam de forma silenciosa a dor do povo preto.
De fato, este costume está documentado no livro de Américo Pellegrini Filho, “Turismo cultural em Tiradentes: Estudo De Metodologia Aplicada”. Mas quando conheceu o Beco do Zé Moura, a fotógrafa ponte-novense, Isis Medeiros, não tinha noção do que a via representava para a cidade. “Por algum motivo, talvez a espiritualidade, eu senti uma força ali e que essa coisa tinha que ser naquele lugar”, lembra sua experiência com a cidade já em 2019.
“Tem coisas que eu não consigo enxergar nos espaços tradicionais. Eu sinto que a fotografia, a arte, precisa estar na rua. As pessoas precisam ter acesso a isso”. Isis Medeiros

Na edição do Foto em Pauta daquele ano, meses depois de fazer a cobertura fotográfica do rompimento da Barragem Córrego do Feijão, em Brumadinho, não achou suficiente apenas participar de uma mesa sobre o assunto. Junto com amigas, improvisou uma ação fora da programação do evento. Pegou as fotografias impressas dos rompimentos de barragem que testemunhou e fez um lambe* no Beco do Zé Moura na calada da madrugada.
Aquela viela, cujo charme já esquecia a crueldade de seu passado, recebeu a sequência de fotos do crime ambiental colada no muro junto a hashtag #somostodosbrumadinho. A intenção era clara: sensibilizar as pessoas. “Tem coisas que eu não consigo enxergar nos espaços tradicionais. Eu sinto que a fotografia, a arte, precisa estar na rua. As pessoas precisam ter acesso a isso”, justifica.
Este ano, após dois anos de pandemia, com o retorno presencial do Foto em Pauta, Isis retornou a Tiradentes. Agora, para lançar no mesmo evento o livro “15:30” e integrar com suas fotos a exposição “Presença”, do projeto Mulheres Luz. Contudo, forjou uma agenda paralela a fim de devolver para Tiradentes um tesouro da cidade pouco valorizado que ela havia descoberto antes da pandemia: o Congado. E o lugar para isso foi, óbvio, o Beco do Zé Moura novamente.
“Eu até tentei ser aquela militante de reunião, de organizar as coisas, mas eu não conseguia me encaixar nesse perfil e entendia que todos movimentos que eu conhecia tinham uma demanda de comunicação e profissionais qualificados”. Isis Medeiros.
Antes de 15:30.
Parte da formação de Isis foi no curso de design na Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG). A outra, foi nos movimentos sociais. Estava em Malta, na região central do Mediterrâneo, depois de um ano fazendo intercâmbio, quando em 2013 começaram as conhecidas “Jornadas de Junho”, a série de mobilizações de massa ocorridas simultaneamente em mais de 500 cidades do Brasil.
Apesar da denominação histórica, massivas mobilizações ocorreram também por todo ano em diversas cidades. As reinvindicações começaram contra o aumento das tarifas de transporte público. Depois, uma série de pautas se somaram nas ruas de forma difusa: de violência policial ao exagero de gastos com a Copa do Mundo de 2014 e Olimpíadas de 2016 e outras críticas a democracia representativa.
Reivindicações trabalhistas e classistas aderiram às ruas com suas próprias pautas. E cada localidade também adicionou elementos regionais. Sem falar em pessoas e grupos fora dos movimentos sociais que, influenciadas pelos oligopólios de comunicação, provocavam momentos de pura histeria coletiva. O terreno seria fértil tanto para o fortalecimento do progressismo quanto da extrema direita.
Se já era difícil entender aqui no Brasil o momento histórico, de longe, toda essa profusão política era bem mais confusa pelo noticiário internacional. Mas, por fim, Isis se decidiu: “Não sei porque eu tinha essa ideia de que era algo importante que estava acontecendo e que precisava ser fotografado”, recorda.
Chegou ao Brasil procurando os movimentos sociais. “Quando os encontrei eu me identifique muito com essas pautas de lutas políticas: MST (Movimento dos Sem Terra), Levante Popular da Juventude, MAB (Movimento dos atingidos por barragens)... E todos veículos independentes de esquerda: Brasil de Fato, Jornalistas Livres, estas mídias independentes”, enumera. Em 2015, já havia se encontrado totalmente em muitos movimentos sociais.
“Eu até tentei ser aquela militante de reunião, de organizar as coisas, mas eu não conseguia me encaixar nesse perfil e entendia que todos movimentos que eu conhecia tinham uma demanda de comunicação e profissionais qualificados”, explica e lembra que com isso estava sempre nas manifestações, ocupações e acampamentos.
“As pessoas sempre me falam: a minha vida era uma antes de 15:30 e uma depois desse momento. Eu não me reconheço mais. Eu já não sei quem eu sou. Porque quem eu sou, quem eu era, ficou lá, naquele momento”. Isis Medeiros.
Depois de 15:30.
Em 2015, Isis já cumpria seu objetivo de integrar os movimentos com a fotografia quando ocorreu o rompimento da barragem de rejeitos de mineração chamada de “Fundão”, no subdistrito de Mariana (MG), Bento Rodrigues. Um empreendimento controlado pela Samarco Mineração S.A., joint-venture* da Vale S.A. e a anglo-australiana BHP Billiton. Foi a primeira cobertura de crime ambiental de mineradoras feita por Isis.
Depois de cerca de cinco anos acompanhando o caso, a fotógrafa compilou fotos que deram origem ao livro “15:30”. O primeiro lançamento foi virtual, durante a pandemia. Mas só este ano, durante o Foto em Pauta, trouxe o livro para um ambiente presencial.

O título “15:30” remete a hora exata que a barragem de Mariana se rompeu. “As pessoas sempre me falam: a minha vida era uma antes de 15:30 e uma depois desse momento. Eu não me reconheço mais. Eu já não sei quem eu sou. Porque quem eu sou, quem eu era, ficou lá, naquele momento”, explica.
Pelo menos profissionalmente, para a fotógrafa, a experiência de acompanhar as consequências do crime ambiental também foram marcantes depois de 15:30. Pudera! O crime ocorrido em Mariana foi muito simbólico. Através dele, as questões ambientais, que desde os anos 1980 o Movimento de Atingidos por Barragens (MAB) denunciava, começaram a ganhar destaque e gerar uma comoção internacional.
Foram mais de 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos vazados, que percorreram mais de 600 km até o mar do Espírito Santo, Bahia e Rio de Janeira com 19 vidas ceifadas pela lama de rejeitos. “E quando esse material chega ao mar, não significa que foi só um rio que morreu, que ficou destruído. Tem um oceano onde esse rejeito foi depositado. Especialmente a região do Espírito Santo”, enfatiza.
Além de 15:30.
Isis acompanhou o caso de Mariana por muito tempo. Às vezes para alguns veículos, outros produzia produtos de mídia no seu Instagram e no Facebook. Quatro anos se passaram, a fotógrafa estava tranquila almoçando e olhando no celular quando viu a notícia do rompimento da barragem em Brumadinho, no jornal O tempo.
“Eu lembro de uma manchete que dizia: Chuvas fortes em Minas Gerais causam rompimento de Barragem. Ah, quem causou o rompimento da barragem foi a chuva? A chuva era sempre responsável? Não existia autor do crime?”. Isis Medeiros.
Isis lembra que, naquele momento, não havia muitos detalhes. “Era só uma linha de informação e eu fiquei desorientada”, relembra. Imediatamente tomou providências para chegar até o local da tragédia. A única coisa que se sabia era que uma barragem de rejeitos de ferro rompeu na Mina Córrego do Feijão, localizada no município de Brumadinho (MG), a 2h de Ouro Preto (109km) e 3h da capital, Belo Horizonte (200km).

Na época do crime ambiental em Mariana, Isis foi convidada para fazer a cobertura como colaboradora do “Brasil de Fato” e pela proximidade com os movimentos. Ela lembra que quando chegou lá não sabia nem por onde começar. Tampouco conhecia bem a pauta. Não entendia muito o que estava acontecendo ali.
Como conhecia os ativistas do MAB, foi aprendendo com eles e se pautou na humanidade das pessoas atingidas para não cometer os mesmos abusos da imprensa tradicional. “Via as pessoas em situação humilhante, de desamparo, falta de assistência. A imprensa só falava de número de mortos e extensão de estragos. Entravam nos quartos das pousadas onde estas pessoas atingidas estavam, jogando luzes na cara delas”, critica.
“O problema não é o rompimento de barragem, mas os 300 anos de mineração em Minas Gerais. São 300 anos de muita destruição que acontece o tempo inteiro, todos os dias". Isis Medeiros
Sem falar no posicionamento editorial. “Eu lembro de uma manchete que dizia: Chuvas fortes em Minas Gerais causam rompimento de Barragem. Ah, quem causou o rompimento da barragem foi a chuva? A chuva era sempre responsável? Não existia autor do crime?”, questiona indignada. Em Mariana, ninguém sabia direito o que havia acontecido. Até mesmo em relação à narrativa. Havia a discussão se era crime ou acidente na época.
Contudo, em Brumadinho, a fotógrafa chegou mais experiente. A opinião pública já havia mudado e a cobertura jornalística, em geral, melhorou. Assim que chegou, começou a fotografar e já sabia exatamente o que fazer. Desta vez, foi mais assertiva na cobertura desde o começo. Por isso, atribui mais reconhecimento pelo trabalho de Brumadinho. Mas o livro “15:30” é sobre Mariana.
“Depois de Mariana e Brumadinho, a Vale começou a evacuar sete cidades de Minas Gerais com o pretexto de existir um risco enorme de rompimento de barragens". Isis Medeiros
A Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho, espalhou 12 milhões de metros cúbicos por mais de 46km. Um número menor, porém indiscutível em termos de danos ambientais. A bacia do rio Paraopeba, uma das principais que abastece a região metropolitana de Belo Horizonte, foi prejudicada e o rejeito chegou até o Rio São Francisco. Mas o que foi mais chocante foi o número de 270 pessoas mortas.
Com estes anos de experiência, Isis não tem dúvidas. “O problema não é o rompimento de barragem, mas os 300 anos de mineração em Minas Gerais. São 300 anos de muita destruição que acontece o tempo inteiro, todos os dias”, explica.
Pessoas como bússolas.
O livro de Isis é um compacto de 7 mil fotos em 70. A fotógrafa ainda sente necessidade de publicar outro. Para ela, falta falar mais das consequências nos outros estados, como o Espírito Santo. Houve uma urgência com essa publicação: fazer um trabalho para que os atingidos pudessem ressignificar a tragédia em suas vidas. A expressão dela é deixar-se levar tendo pessoas como bússolas.
Em todo esse tempo trabalhando com o assunto, Isis aprendeu que a mineração não atinge só com rompimento de barragens. São muitos impactos que um empreendimento destes causa. “Eu falo que desde que a empresa chega no território, ela começa a violar os direitos sociais e ambientais, da população”, afirma.
“A imprensa não pode dar esse notícia sem ter a certeza absoluta. E só quem dá essa certeza é a empresa. Então a empresa tem o poder de roubar e expulsar essas pessoas e de não dar nenhuma satisfação. Ela comete o crime, ela se investiga, ela produz as provas”. Isis Medeiros
A questão da evacuação de áreas de risco, para a fotógrafa, é uma estratégia das empresas para tomar territórios das populações. “Depois de Mariana e Brumadinho, a Vale começou a evacuar sete cidades de Minas Gerais com o pretexto de existir um risco enorme de rompimento de barragens. Em Barão de Cocais ficaram uma semana anunciando que ia ter rompimento de barragem. A imprensa do mundo inteiro foi para Barão de Cocais esperar o rompimento. Inclusive eu fui e até hoje não rompeu”, exemplifica.
Assim, ela mostra a dificuldade de comprovar a estratégia das empresas por se tratar de uma forma muito subjetiva de pressionar as comunidades. “As pessoas estão traumatizadas. Aí usam este trauma social para poder expandir ainda mais seu territórios. Na época eu tentei vender essa pauta, mas acharam que eu era louca. Como você vai provar isso?”.

Para Isis, só as pessoas que moram no território em questão que entendem a sua localidade. O problema é que a palavra dos moradores não tem valor dentro do sistema. “A imprensa não pode dar esse notícia sem ter a certeza absoluta. E só quem dá essa certeza é a empresa. Então a empresa tem o poder de roubar e expulsar essas pessoas e de não dar nenhuma satisfação. Ela comete o crime, ela se investiga, ela produz as provas”.
O estado, por sua vez, não protege as famílias atingidas. Para Isis, ou está muito cúmplice ou refém da ação das mineradoras. E a verba da Compensação Financeira pela Exploração Mineral (CFEM), nunca seja vista.
“Eu construí um mapa no livro com todos os territórios atingidos no rompimento. Desde Mariana até o mar. Fiz o percurso do rejeito. São 45 cidades até o litoral”. Isis Medeiros
Essa contrapartida financeira paga pelas empresas mineradoras à União, aos Estados, Distrito Federal e Municípios pela utilização econômica dos recursos minerais em seus respectivos territórios foi estabelecida em 1988 pela Constituição. Mas, para a fotógrafa, é insuficiente em face dos danos causados. “O desastre vem antes do rompimento das barragens. Roubam a cultura local. Oferecem empregos como uma forma de troca e impõe uma nova economia que não faz parte da cultura daquelas pessoas. Isso gera uma cadeia de problemas sociais”.
Por isso, “15:30” é, antes de tudo, um compromisso da fotógrafa para devolver um produto específico para as comunidades com as quais lidou. Uma resposta à reclamação que ouvia das pessoas. “Muitos profissionais já tinham passado pelos atingidos, mas que não se devolvia para estas o que era produzido. Não havia esse cuidado. Elas nem sabiam o que acontecia com a imagem delas, com o tempo que se dispunha pra aquilo”.
Como achou que faltou mostrar mais os estragos no Espírito Santo, a fotógrafa tentou uma alternativa. “Eu construí um mapa no livro com todos os territórios atingidos no rompimento. Desde Mariana até o mar. Fiz o percurso do rejeito. São 45 cidades até o litoral”, explica ao mostrar no livro o encarte.
No caminho, um Mestre no beco.
Durante todo esse ativismo, Tiradentes também era uma das pautas de Isis. Em janeiro de 2019, ela veio à cidade para fazer uma oficina na Mostra de Cinema. Em um exercício da aula, andava pela rua em busca de algum material para realizar uma filmagem. Foi quando encontrou Claudinei Matias Nascimento, o Mestre Prego, este homem negro, retinto, magro, de olhos grandes e serenos, mas de atitude resiliente e combativa.
Prego organizava o Congado Anastácia na rua e Isis começou a filmá-lo. “Mesmo sem me conhecer ele falou: menina, grava aí um vídeo que eu preciso dele depois”, lembra e procura com isso descrever a personalidade do homem. Ela obedeceu e o seguiu até em casa, onde fez uma entrevista, mais fotos e filmagens. Saiu dali com o primeiro material sobre o Congado e a certeza dos desafios enfrentados pelo grupo em Tiradentes.
Desde 2012, Prego, que também é mestre de capoeira e bisneto de pessoas escravizadas, organiza um congado em homenagem à imagem de Anastácia, marcada pela iconografia de uma mulher negra com uma mordaça na boca. Em torno dessa imagem, figura a história de uma preta cativa que chegou ao Brasil em 1740 e que lutou contra o sistema escravista.
“A gente fez um trabalho assim, né? Na tora produção sem nenhum recurso, sem apoio e vamo-que-vamo". Isis Medeiros.
Até aquele 2019, o Cortejo Anastácia passava pelo interior das dependências da igreja Nossa Senhora do Rosário, na rua Direita. A santa que dá nome ao pequeno templo é considerada pelos fiéis, conforme a tradição, a que inspira e protege a festa negra. Segundo a devoção com forte sincretismo religioso*, são muitas lendas que narram sua proteção e preferência pelo povo preto. Nenhuma crença, no entanto, comoveu o então recém chegado pároco de Tiradentes, Álisson Sacramento, que naquela época proibiu o Congado Anastácia de entrar na igreja.
Isis se comprometeu com o mestre congadeiro: voltaria para o encontro de congados da região em junho, a fim de documentar de alguma forma a luta do grupo e dar eco àquela luta. “Não é qualquer congado que meu coração bate”, confessa a fotógrafa. “Mas o de Tiradentes tem toda essa questão de perseguição da igreja, um caráter de denúncia. Quando eu vi que eles tinham essa reinvindicação de acesso a igreja, eu logo vi que poderia contribuir de alguma forma”.
Em junho, ela cumpriu o prometido e fez mais registros. Ali começou a trabalhar com o fotógrafo local, André Frade. O material já estava impresso em lona, pronto para ocupar novamente o Beco do Zé Moura com fotografias. Mas veio a pandemia e André teve que pregar as imagens sozinho sem Isis.
“Aquele nosso trabalho ali foi feito com espiritualidade. Não foi com a gente sozinho não. Tinha um exército trabalhando com a gente aqueles dias. E foi tão mágico! Tão potente!”. Isis Medeiros

Um coletivo inesperado
A atitude do pároco deu o que falar nas redes sociais e alguns veículos jornalísticos de repercussão nacional. Depois, foi esquecida, o impedimento continuou e as imagens saíram do Beco com o tempo. Isis e André, ao verem o problema sem solução, resolveram insistir em uma nova instalação neste ano, em março, durante o Foto em Pauta.
Do projeto à execução, tudo começou a tomar proporções inesperadas que a dupla deixou correr solta. Primeiro, a fotógrafa chamou para integrar os trabalhos um amigo, o artista urbano Bruno Ulhoa. Ele ficou empolgado e comprou a ideia. Ela o deixou suficientemente curioso para vir de Belo Horizonte-MG conhecer o Mestre Prego.
O fotógrafo Alexandre Lopes se juntaria depois ao grupo também. Por último, o influencer Marilu e o marido Caqui, amigos de Bruno e figuras públicas da cena cultural belorizontina, resolveram se juntar ao grupo. Todo mundo hospedado na casa de André, numa espécie de coletivo inesperado resignado a sensibilizar as pessoas para a riqueza cultural do Congado Anastácia.
“Em Tiradentes, não vejo nenhum elemento da escravidão. Ela não está evidente, não está dito. E levar isso pra rua é mostrar que nessa cidade também tem resistência”. Isis Medeiros.
Eram materiais, estilos diferentes e uma dúvida de como criar uma unidade com talentos tão diversificados. Isis chegou a projetar a instalação das fotos. Mas com tanta gente criativa a coisa ia fugindo da ideia original e ganhando incrementos. O que, na concepção dela, foi ótimo. “A gente fez um trabalho assim, né? Na tora produção sem nenhum recurso, sem apoio e vamo-que-vamo”, se diverte.
Durante o processo, os parceiros chegaram a sugerir outros lugares, mas Isis continuava a insistir no Beco do Zé Moura. Para ela, era como se uma espécie de força interior a conduzisse. Só depois descobriu do que se tratava. Um historiador que passou pelo grupo naqueles dias, contou o antigo uso destas vielas na cidade. “Eram como trincheiras onde o povo preto usava para caminhar”, simboliza a fotógrafa.
Agora a instalação ganhara uma dimensão espiritual. “Aquele nosso trabalho ali foi feito com espiritualidade. Não foi com a gente sozinho não. Tinha um exército trabalhando com a gente aqueles dias. E foi tão mágico! Tão potente!”. Para ela, de todos trabalhos que fez na rua, este é o que mais admira.
Outras pessoas passavam pelo grupo empenhado e ajudavam de alguma forma. Ora davam um pitaco, ora traziam refrigerante, outros água, pipoca e até doces. Mas nem tudo foi tão fácil. Incialmente, até a instalação começar a tomar forma, uma ou outra questão institucional avançava sobre os ânimos de forma desafiadora.
Mas Isis diz que sentia um retorno positivo das pessoas, independente se eram do congado ou não. Teve quem duvidasse. Disseram que a população ia arrancar e que ia durar só uma semana. Mas a fotógrafa batia o pé e dizia como numa aposta de baralho: “EU TRUCO!”. Certa de que a presença espiritual que esteve ali na hora da criação protegeria a instalação. “Em Tiradentes, não vejo nenhum elemento da escravidão. Ela não está evidente, não está dito. E levar isso pra rua é mostrar que nessa cidade também tem resistência”, justifica.
Pelo menos, três meses depois da instalação, época em que esta matéria foi escrita, as imagens ainda estavam lá. Com uma ou outra avariação, mas continuaram ali acompanhando silenciosamente os eventos da cidade.
Devir fotógrafa ativista.
O compromisso com Prego foi realizado. Agora, no último 11 de julho, durante o XII Encontro de Congado de Nossa Senhora do Rosário e Escrava Anastácia, o cortejo entrou na Igreja do Rosário.
A fotógrafa continua a acompanhar a destruição causada pelas mineradoras. Ela ainda pretende cobrir mais o Espírito Santo, já que se falou muito menos sobre o impacto no oceano.
Depois do lançamento online de 2020, Isis ainda fez duas grandes viagens com a Coletiva Mamana de mulheres fotógrafas antes de vir ao Foto em Pauta 2022. O grupo cobriu durante dez dias territórios do litoral. O que gerou a exposição, a “Oceano alterado” no Sesc São Paulo.
Isis também está participando de um filme ainda em produção com a diretora francesa Claudia Neubern. Revela que tem material novo e que “15:30” não é definitivo, mas apenas um primeiro trabalho sobre o tema. Falar de pessoas invisibilizadas e estudar como denunciar crimes ambientais é um trabalho sempre em desdobramento.
Glossário:
Lambe (ou lambe-lambe): é um pôster artístico de tamanho variado que é colado em espaços públicos. Podem ser pintados individualmente com tinta látex, spray ou guache. Quando feitos em série sua reprodução pode ser através de foto copiadoras ou silkscreen.
Joint-Venture: Ao pé da letra, a expressão quer dizer "união com risco". Refere-se a um tipo de associação em que duas entidades se juntam para tirar proveito de alguma atividade, por um tempo limitado, sem que cada uma delas perca a identidade própria.
Sincretismo Religioso: o sincretismo religioso consiste na presença de um ritual, ideia, organização, símbolos ou objetos artísticos originários de uma religião e que são incorporadas à outra.
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