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Todas as cores da luta

  • Foto do escritor: Daniela Mendes
    Daniela Mendes
  • 24 de nov. de 2020
  • 9 min de leitura

Atualizado: 23 de abr. de 2021

Na dança das cores dos movimentos de conscientização, conhecemos Daniele Muffato que luta pelos direitos das pessoas no espectro autista em São João del Rei e contra o Câncer com o qual foi diagnosticada.

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Daniele não vê dificuldades, mas desafios a superar. Selfie feita por ela.

Daniele me disse que talvez fosse possível eu não a ver mais com cabelo até a data de publicação da revista. De fato. E ainda mais porque demoramos cerca de dois meses para publicar esta matéria. É que na semana seguinte àquela videoconferência entre nós, ela começaria seu tratamento contra o câncer.


Seria, mais ou menos, a passagem da Mana do setembro azul e verde, para o outubro rosa. Assim como foi a virada de chave na vida de Daniele Muffato. Mas devido à fusão da revista com o Instituto Musa, Mulheres Sonhando Alto (detalhamos depois), chegamos só em novembro com Daniele em plena batalha contra a doença. É a dança das cores de movimentos de luta e conscientização mês a mês na história desta mulher.


Portanto, não nos vem essa imagem de uma mulher numa sala de quimioterapia. Mas a de uma pessoa que sabe, ao contrário do poema de Cassiano Ricardo, que cada minuto de vida é sempre mais, nunca menos. E mais não apenas para ela, mas pra muita gente que está ao seu lado!


Lute como uma mãe

"Nossos meninos não precisam ficar escondidos. As famílias não precisam ficar sem ir num restaurante, né?”. Daniele Muffato

Daniele, nasceu em São João del Rei (MG), se casou aos 24 anos com o pai do seu filho mais velho e foi morar em Teresópolis (RJ). Ela fazia faculdade de direito e interrompeu por causa da gravidez. Quando retornou ao curso, já no finalzinho, veio o primeiro diagnóstico do filho Pedro com uma síndrome que é um tipo de epilepsia grave que leva ao estado vegetativo. Então ela abandonou de vez aquela faculdade para cuidar do filho.


Esta síndrome, chamada de West, foi o fator desencadeador de autismo de Pedro, explica Daniele. E desde este diagnóstico ela se dedica por inteiro ao filho. Em 2011, se separou e voltou para Minas Gerais. Mas, antes de voltar, se apaixonou pelo seu segundo marido e se casou com ele. Desta união, somou-se à família a filha do companheiro e, depois, nasceu sua caçula.


De volta à cidade natal e com nova família, Daniele fez cursos de designer gráfico técnico e investiu em uma empresa de comunicação visual. Até que, ano passado, ela se viu num conflito: recebia muitos elogios no trabalho mas não se sentia realizada. “Aquilo não me enchia os olhos, eu não dizia, ai eu adoro isso que eu fiz. Aí eu falei: ó André [o marido] esse ano de 2019 vai ser decisivo na minha vida. Eu preciso ver o que eu vou fazer”, lembra.


Comece Descobrindo Seus Iguais



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Foto de Daniele Muffato cedida por ela.

Desde que chegou em São João del Rei, Daniele convivia com o receio de não encontrar tratamento e educação especializada para o seu filho. O que se tem, para os conceitos dela de tratamento da pessoa com deficiência, não atendia. A ideia da criança inferiorizada pela sua condição é uma leitura que ela se recusava a aceitar.

Então, quando Daniele entrou para um grupo de whatsapp com familiares de autistas ainda no início do ano, sentiu que alguma coisa mudaria. “Ali, naquele momento, eu tive a primeira fagulha de esperança, de alegria, de saber que tinham pessoas iguais a gente. Que passavam as mesmas coisas que a gente, as mesmas dificuldades”, lembrou.

Neste grupo, eles organizaram o primeiro encontro de conscientização de autismo na Praça da Biquinha, em São João del Rei. Daniele recorda que quando todas as crianças brincavam dentro da quadra, a psicóloga do seu filho, Silvana Santos, disse a ela: “Olha para a quadra, você não sabe quem é criança autista e quem é criança típica. Isso é inclusão”.


Naquele momento Daniele entendeu sua missão. “Eu falei: é isso que eu quero pra mim! É isso que eu quero fazer”, relata e explica em outras palavras: “Nossos meninos não precisam ficar escondidos. As famílias não precisam ficar sem ir num restaurante, né?”.


Para completar, no encontro da praça da Biquinha, percebeu que foram vendidas mais de 200 camisas com dizeres sobre o dia de conscientização. Foi aí que chamou a atenção dos pais: “Ou nós temos muitos autistas nessa cidade, ou a sociedade está muito receptiva para nós. Tem alguma coisa nessa cidade que está chamando a gente. E aí fomos descobrir o que é”, lembrou.


Logo depois, Daniele começou a receber ligações de outros pais de autistas e a criação da Associação de Pais de Autistas, Aspas, se tornou inevitável.


A Aspas

"O câncer veio para me ressignificar também. Porque a Aspas veio pra me ressignificar profissionalmente. E aí eu dei uma parada para cuidar de mim”. Daniele Muffato

Daniele largou o trabalho e foi cuidar da fundação e funcionamento da Aspas. Em junho de 2019 saiu a documentação. Os pais começaram a se reunir, criar projetos, promover atendimentos e se aliaram a algumas iniciativas da universidade. “O primeiro projeto a sair do papel foi com o curso de Educação Física. Começou em fevereiro, mas aí veio a pandemia. Tinha inglês inclusivo e muitos outros”, diz com um pouco de pesar pela interrupção forçada pela ameaça da Covid-19.


Foi um tempo de muita intensidade e ação. Venderam caixas, chaveiros, copos e estruturaram a associação até conseguirem alugar um espaço. Para manterem a sede, os pais se revezam desde escalas de limpeza até reuniões a fim de decidirem sobre as diretrizes de ação da Associação.


Daniele confessa que é um processo muito difícil. Devido a diversidade de processos terapêuticos, os pais ainda se dividem em opiniões e é por isso que o trabalho tem uma maior complexidade. Então, além de todas as tarefas demandadas, está sempre estudando incansavelmente sobre o autismo. Inclusive, formalmente. Agora, se especializa em educação especial e complementa com muitos outros cursos.


Ela também chama a atenção para um tempo em que São João del Rei se destacava nacionalmente no tratamento e estudo do autismo, junto ao professor da Universidade Federal de São João del Rei, Raimundo Faccion, em duas clínicas: uma em São João del Rei e outra em Tiradentes, aqui em Minas Gerais. Ambas tinham tratamento especializado para autistas.


Preocupada, Daniele acredita que é preciso um novo tempo para a cidade. “Se esses meninos ficam sem fazer nada, mais problemas comportamentais eles vão ter”, adverte.


Pausa: Aprendendo a cuidar de si mesma


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Foto feita por Daniele para a este perfil.

Não havia como retomar as atividades ainda este ano: alguns meninos não conseguem usar máscaras, levam muito a mão aos olhos e têm hábitos difíceis de controlar dentro de um protocolo. Constituem um grupo de risco, portanto. Então, Daniele aproveitou para cuidar de si mesma depois de adiar por muito tempo seu tratamento. “Eu tô travando uma luta, agora... Foi que eu te falei que eu estava aprendendo a cuidar de mim. Eu tive que parar pra cuidar um pouquinho de mim”, confessa.


Daniele, hoje, analisa que vinha de um processo de ansiedade muito grande. Teve duas crises fortes. “Eu nunca tinha tido isso. Eu não acreditava que existia, não. Eu sempre fui de correr atrás e nunca tinha passado por isso. Aí, um dia eu virei pro meu marido e falei: eu tô sem ar, eu não consigo respirar. E aí eu vi que estava demais pra mim”.

A atitude de Daniele, ao receber o diagnóstico, foi, primeiro, de tentar se encontrar. “Quando o câncer me parou eu falei, peraí... O que que eu vou fazer com isso. Como é que eu vou lidar com isso e o que eu vou fazer com isso? Eu precisava de uma cura interna. Eu não estava cuidando de mim mesma. O câncer veio para me ressignificar também. Porque a Aspas veio pra me ressignificar profissionalmente. E aí eu dei uma parada para cuidar de mim”, revela e complementa: “O câncer me deu uma facada que me ensinou o quanto é preciso a gente olhar pra gente. Eu estou com um nódulo de um tamanho gigantesco porque eu fui adiando. Fui adiando, adiando e quando eu vi estava com um nódulo enorme”.


Hoje, ela não esconde a doença nem faz disso um tabu. Contou para as mães e pais da Aspas, para os amigos e compartilha sua experiência nas redes sociais. “Eu falo que uma das coisas que mais me deixou emocionada foi a quantidade de amor que eu recebi. O tanto de amor que eu tive de volta. Então, se eu dei um pouquinho, eu tive isso muito multiplicado. Eu me sinto feliz, eu me sinto preenchida, eu me sinto acolhida. Cada mensagem que eu recebo, sabe?”.


Nos parece que o amor de Daniele põe leveza nos seus desafios. “Eu falo de autismo com muito amor, com muito orgulho. Eu quero muito bem para estes meninos. Eu quero muito bem para estas famílias e isso me realiza muito mais, sabe? Eu me sinto muito bem comigo. Outro dia brinquei com a psicóloga do Pedro: se a minha missão nesse mundo foi abrir a Aspas, eu estou realizada. Lógico, eu quero muito mais, mas estou realizada. Minha vontade é transformar São João del Rei de novo referência no tratamento de autismo”.


Pessoas Invisíveis


“O que os meninos têm hoje é uma terapia de 30 minutos uma vez por semana. Não tem neurologista pediatra na cidade. A gente tem psiquiatra infantil, mas nem no plano de saúde tem atendimento. Com faculdades de medicina no município? A gente tem que trazer esse povo pra cá”. Daniele Muffato

Só no grupo de whatsapp, são mais de 120 famílias. Cadastradas na Aspas tem 80, de 2 a 38 anos. Daniele sabe que muitas famílias se quer se registram em alguma entidade ou instituição, o que é uma dificuldade. “Preciso ter esse número pra lutar por política pública. Muitos que estão ali são de baixa renda. Eles precisam de atendimento. Urgente! A maioria das famílias tem apenas um atendimento de meia hora, uma vez por semana”, reclama.


Fora esse problema, ainda tem a dificuldade do diagnóstico. “A gente tem um número enorme de adultos sendo diagnosticados agora. Os pais dos adolescentes... A faculdade está cheia de autista... Ficam todos escondidos. Então, quando a gente chega, a gente fala, eles vão aparecendo”, diz e relata um fenômeno curioso: “Muitos pais de autistas tiveram o diagnóstico depois dos próprios filhos. São subdiagnosticados”.


As mulheres são um caso muito específico para ela. “Os índices são: de cada cinco autistas, quatro são meninos e uma é menina. Esses números não são verdadeiros. As meninas são subnotificadas. Porque quando elas têm autismo, ou é muito grave ou é tão sutil que passa despercebido a vida inteira”, revela.


Missão da Aspas


Daniele afirma que a teoria comportamental é a ideal no tratamento de autistas e, de acordo com o que aprendeu, pensa que a prioridade da instituição é dar um tratamento personalizado aos seus associados, respeitando a singularidade de cada família mediante um problema grave na cidade de São João del Rei. E relata um problema sério: “O que os meninos têm hoje é uma terapia de 30 minutos uma vez por semana. Não tem neurologista pediatra na cidade. A gente tem psiquiatra infantil, mas nem no plano de saúde tem atendimento. Com faculdades de medicina no município? A gente tem que trazer esse povo pra cá”, sugere.


A visão dela é diferenciada. Muito mais que apenas reunir pessoas com a mesma dificuldade, Daniele parece querer revolucionar o tratamento que a sociedade dá aos autistas. “Tenho pavor dessa coisa de anjo, mãe azul. Meu filho não é anjo, não. Meu filho é como qualquer outro. Eu sou uma das criadoras da Aspas, mas meu objetivo é que amanhã eles presidam a Aspas. Eu quero estes meninos capazes de fazer isso. Meu objetivo de vida é que eles sejam capazes de estar no mercado de trabalho, que sejam bem remunerados”, dispara.


Para tanto, ela chama a atenção para que a sociedade assuma a responsabilidade social de incluir na escola. “Ele aprende de uma forma diferente. A responsabilidade da escola é incluir a pessoa com deficiência”, cobra e compara para argumentar o que não tem desculpas: “todas as famílias não estavam preparadas para receber estes meninos e estão aí lidando com seus filhos”.


Um problema social a ser enfrentado.


Embora as pessoas tenham direito a um benefício do Estado, este, muitas vezes, não é destinado ao tratamento das crianças, por serem de famílias com muitas carências além do tratamento. Quando possível, Daniele orienta para que se faça um plano de saúde com este benefício “E mesmo no plano de saúde é uma luta. Porque quem não está especializado no autismo não consegue atender o autista , principalmente por causa dos problemas comportamentais. Tem mães na fila do plano há mais de dez anos. Sendo que, segundo a ANS (Agência Nacional de Saúde), teria que ter dez dias para atender”, denuncia.


Por São João del Rei também não ter atendimento especializado para a pessoa autista, uma das pautas da luta da Aspas é dar atendimento especifico e qualificado para estes meninos e meninas, da infância à idade adulta. “Atendimento personalizado no sentido de dar vida adulta funcional. Dar independência”, frisa Daniele.


O tom de indignação dela chega até mim como um despertar. “Somos criados a ver as pessoas com deficiência como subpessoas”, destaca e explica que, por isso, estas pessoas sempre terão um subemprego. O que é, uma injustiça. “Eles dão muita conta. Quando eles tem oportunidade eles são os melhores funcionários porque eles são super rígidos com as disciplinas dos ambientes”, garante.


A Aspas tem novo endereço. Está de mudança para a rua Pedro Ernesto 147, Dom Bosco. Mas você pode também acompanhar a instituição pela e Instagram (inserir link).


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