O grito da arte preta
- Daniela Mendes
- 26 de nov. de 2020
- 8 min de leitura
Atualizado: 23 de abr. de 2021
Com a performance Mil litros de Preto: A Maré Está Cheia, Lucimélia Romão traça um plano de fuga da arte hegemônica e propõe uma performance que estabelece diálogo com o público.

“Se um dia eu precisar cantar para falar sobre algo que me é muito caro, eu vou cantar. Se precisar dançar, eu vou dançar”, explica Lucimélia Romão. Para ela, o diploma de teatro que conquistou na Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ), não é o limite, mas o começo. Finca o discurso no lugar de artista preta e revela que a proposta dela para o mundo é diluir as fronteiras da arte. “Geralmente, eu trabalho com questões urgentes. E aí eu busco encontrar dentro destas questões, uma forma de dialogar com o público”.
Matemática, poesia, água, sangue, raça, vida e morte convergem em vertentes que se encontram na performance instalação de Lucimélia, Mil Litros de Preto: A Maré Está Cheia. Fala do sangue que jorra do couro preto quando se retira a vida humana para se incorporar a morte no cotidiano das pessoas periféricas. Explana a tragédia brasileira colocando em diálogo a performance nas artes visuais para sensibilizar e conversar com os visitantes.
A instalação e performance estreou em janeiro de 2019 no Centro Cultural da UFSJ. Durante 60 horas consecutivas, Lucimélia jogava, a cada 25 minutos, um balde com o nome de uma vítima de homicídio policial e sete litros de sangue cenográfico numa piscina.
Depois, em setembro do ano passado, Mil Litros de Preto: A Maré Está Cheia partiu para São Paulo capital. No Largo da Batata, 30 mulheres do Movimento Mães de Maio participaram da performance com Lucimélia. Um alto-falante anunciava, seguidamente, nome, idade de uma vítima do Estado e terminava com “homicídio policial”.
Agora, a partir de hoje, os moradores de Tiradentes e quem mais passar por aqui terão a oportunidade de visitar Mil Litros de Preto, num formato adaptado para o Sesi Centro Cultural Yves Alves. Lucimélia Romão veio convidada pelo Festival Artes Vertentes e a Mana conversou com ela minutos antes da performance instalação começar a ser montada.
Uma matemática sombria.
“Uma das formas do genocídio da população preta, pobre e periférica é que elas não sejam remuneradas pelos trabalhos que elas fazem”. Lucimélia Romão
Movida pelo termo “teatro negro”, em 2017, a artivista, como Lucimélia mesma se define, fez mobilidade acadêmica. Trata-se de um programa em que os alunos da graduação podem cursar até dois semestres letivos, consecutivos ou não, em outra Instituição. Foi morar então na capital, atraída pelo trabalho do professor do curso de teatro da Universidade Federal Minas Gerais (UFMG), Marcos Alexandre, que trabalhava com essa temática.
Contudo, durante o ano que passou em Belo Horizonte, não teve a oportunidade de estudar com o professor, que estava de licença para fazer pós-doutorado. Mas o tempo não foi perdido. “Eu tive contato com a arte negra na cidade, na Segunda Preta, no FAN (Festival de Arte Negra), nos grupos que tem lá, fora do ambiente acadêmico”, recorda.
Voltou para São João del Rei com a temática do teatro negro mais amadurecida através das vivências que acumulou e começou um projeto de iniciação científica, que é um tipo de pesquisa desenvolvida por alunos de graduação nas universidades brasileiras em diversas áreas do conhecimento. Através desta atividade, teve contato com os livros “Genocídio do Negro Brasileiro”, de Abdias Nascimento, e “Racismo Estrutural”, do Sílvio de Almeida.
As duas obras trazem dados concretos da morte da população preta no Brasil pelas mãos do Estado, o que configura um genocídio. Nascimento, com uma perspectiva histórica, e Almeida, com uma análise do Brasil recente, comoveram Lucimélia que foi buscar números mais atuais.
No início da pesquisa, ela esbarrou ainda com a morte de Marcos Vinícius que tinha sido assassinado pela polícia na Favela da Maré. O adolescente de 14 anos foi morto com um tiro na barriga dentro da escola onde estudava.
Desde fevereiro daquele 2018, o Rio de Janeiro estava sob intervenção federal. Um levantamento divulgado pelo Observatório da Intervenção, criado para monitorar as ações das forças de segurança, apontava que o número de tiroteios havia aumentado 20% depois do decreto de intervenção federal. Além disso, 12 chacinas deixaram 52 mortos em todo o estado.
Pesquisando teoria e comparando com a prática, Lucimélia descobriu as Mães de Maio. Trata-se de um movimento que surgiu depois de maio de 2006, quando pelo menos 564 pessoas foram mortas no estado de São Paulo num período de oito dias.
O levantamento foi feito pela Universidade de Harvard (EUA), e mostrou a participação de policiais nas mortes. A maior parte dos casos, apontaram os pesquisadores, fazia parte de uma ação de vingança dos agentes de segurança do Estado contra os chamados ataques da facção Primeiro Comando da Capital (PCC).
Além do movimento, Lucimélia teve contato com o Atlas da Violência, um portal que reúne, organiza e disponibiliza informações sobre violência no Brasil, bem como organiza publicações do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) sobre violência e segurança pública. Criado em 2016, o portal também tem colaboração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
Outro estudo, do Mapa da Violência, trouxe para a pesquisa de Lucimélia, a evolução dos homicídios por armas de fogo no Brasil no período de 1980 a 2014 e, também, a incidência de fatores como o sexo, a raça/cor e as idades das vítimas dessa mortalidade em 27 estados, capitais e os municípios com os mais elevados níveis de mortalidade causada por armas de fogo.
Daí surgiu a matemática fúnebre. Segundo o Atlas de 2019, a cada 25 minutos morre uma pessoa pobre, preta e periférica pela mão do estado brasileiro. “Aí eu fiquei assustada e falei... Isso tem que ser falado de alguma maneira”, Lucimélia lembra sua reação.
Iniciação científica e artística.

A reflexão tomou um rumo mais profundo quando a artivista começa a se enxergar nesta sociedade. “Uma das formas do genocídio da população preta, pobre e periférica é que elas não sejam remuneradas pelos trabalhos que elas fazem”, pontua. Lucimélia lembra que fazia teatro há muito tempo sem ser remunerada artisticamente e, para se manter na universidade, dava muito duro em outras ocupações porque a arte não a sustentava. “Então eu tinha, assim, uma jornada tripla né?”, resume.
Com foco na perspectiva do teatro negro, que é sócio-política, Lucimélia se viu diante do seguinte problema: tinha que gerar um produto que abordasse o genocídio dos negros no país, mas também que mudasse a realidade dela: estudante, atriz, preta, pobre. Ou seja, ela tinha que obedecer uma temática, mudar a própria realidade e deixar uma instalação.
Com a ajuda de uma amiga bióloga, calculou-se a média da quantidade de sangue de um corpo, que é de sete a nove litros, e o número de horas que ela levaria para encher uma piscina de mil litros de sangue. “Então eu falei: vou usar o número sete que sete é o número da perfeição”. Lembra sorrindo para explicar como fechou uma nova matemática: a cada 25 minutos jogaria um balde de sete litros de sangue até encher a piscina de mil. Toda a performance duraria, por fim, 59 horas, mais de dois dias, segundo cálculos da amiga.
“Se eu fosse chegar para um festival e apresentar a minha ideia, eles não iam comprar”, afirma ainda para criticar o mercado da arte e ressaltar a importância da universidade pública para introduzir artistas no mercado.
O cinismo do racismo estrutural
“A gente fala o tempo inteiro de várias mortes. Para além dessa que é a mais dolorosa que é a de perder um filho”. Lucimélia Romão
A abertura da instalação em 2019 coincidiu com a Mostra de Cinema de Tiradentes. Lucimélia notou pouca presença dos moradores da cidade de São João del Rei no Centro Cultural da UFSJ. Contudo, sentiu uma presença maior de turistas com os quais ia conversando sobre o genocídio da população preta quando eles visitavam a performance instalação.
Um fato que lhe chamou atenção foi um diálogo que teve com um artista da cidade. Ele chegou com a esposa e perguntou o significado da performance. Depois que ela explicou, ele questionou se o fato das pessoas serem envolvidas com o tráfico não justificaria a morte destas. Lucimélia explicou o que muitas vezes as pessoas não se atentam: “Um por cento da periferia tem relação com o crime organizado. Vamos lá, de dez, uma pessoa. As outras pessoas são trabalhadores normais como eu e você. E aqui (nos nomes das vítimas nos baldes) tem várias crianças”.
A artivista também lembrou para ele que o papel da polícia não é matar, mas deter. E ainda completou para o visitante que ali também se encontravam nomes de vítimas de apenas dois anos de idade. Ao que ele insistentemente rebateu com o argumento de que os pais eram marginais. Por fim, ela disse que conseguiu, convencê-lo de que, na guerra da polícia contra o tráfico, vidas negras inocentes não valiam nada. E que aquilo não estava correto.
A ideia de ficar no espaço de instalação é também o de dialogar com o público literalmente. A doação da artista não é somente física, mas psicológica e pedagógica.
Mãe.

Quando as mulheres tem filhos, também vivem uma espécie de luto. De forma que a simbologia do sangue e da água é cíclica para Lucimélia, de vida e morte. “A gente fala o tempo inteiro de várias mortes. Para além dessa que é a mais dolorosa que é a de perder um filho”, explica.
Ao saber que Lucimélia tinha sido aprovada no edital, a mãe da artivista ao lado da tia saiu de São Paulo e veio até Minas Gerais para assistir a performance da filha. Chegando aqui, embarcou na ação. Se recusou a assistir a filha só durante o dia e retornar para casa.
Com o pretexto de ser expectadora, acompanhou toda a performance. Mesmo durante as noites, quando Lucimélia ficou sozinha no Centro Cultural da UFSJ fechado e tinha que acordar a cada 25 minutos para completar a performance, lá estava sua mãe de 62 anos e sua tia para apoiá-la.
“E eu falando, tia faz alguma coisa. E a minha tia concordando com a minha mãe: nós vamos ficar, a gente veio para assistir as 60 horas de apresentação e a gente vai assistir as 60 horas”, relembra Lucimélia a teimosia das duas. E o mais curioso. Preocupada com o tempo ocioso da performance da filha, a mãe lhe deu um livro de caça-palavras com tema de nomes de bebês para passar o tempo de 60 horas mais rápido.
Valeu a pena
Quando questionada sobre o significado de se apresentar numa cidade que conservou o colonialismo tanto na arquitetura quanto nos costumes, como é o caso de Tiradentes, Lucimélia Romão surpreende mais citando a performer Musa Mattiuzzi, a quem ela disse ter acabado de assistir uma aula: “Eu trabalho o plano de fuga”.
Para fugir da ideia hegemônica como um todo, para não criar pensando em contra-atacar, enfim, anulando totalmente a ideia hegemônica, ainda citando Mattiuzzi, a artivista nos ensina: “O plano de fuga que eu criei já foi. Se vocês usarem ele, vocês serão pegos. Se eu usar a estratégia que Zumbi usou, o Zumbi já foi assassinado... Então vocês tem que traçar outros planos de fuga para que daqui a vinte anos a gente não esteja falando desses assuntos. Para que os nossos que virão não precisem falar desses mesmos assuntos. Que as urgências deles sejam outras. Aí nesse sentido eu vejo que o meu plano de fuga deu certo quando eu consigo apresentar em Tiradentes. Eu vejo Tiradentes como um plano de fuga que deu certo. Pela primeira vez estou vindo a um festival apresentar meu trabalho e estou recebendo por isto.”, arrepiamos nós.
Mil litros de preto: A Maré Está cheia
Local: Centro Cultural Yves Alves
Data: 26 de novembro a 6 de dezembro
Horário: 10h às 19horas
Ficha técnica:
Concepção: Lucimélia Romão
Performer: Lucimélia Romão
Trilha Sonora: Matheus Correa e Lucimélia Romão
Produtora Executiva e Biológa: Liliane Crislaine

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