O olhar da doula negra
- Daniela Mendes
- 21 de jul.
- 11 min de leitura
Atualizado: 21 de jul.
Fabrícia Dias fala de como a Linha Nigra Coletiva coloca São João del-Rei na agenda do julho das pretas e se organiza para levar mulheres negras para marcha nacional em Brasília.

Há um testemunho escrito na pele da mulher negra e indígena deste país que traz todo o arco narrativo da criação de um povo. O mesmo pode ser extraído de outras etnias, mas nenhuma de forma tão central como a das mulheres com a pele tingida pela originalidade desta terra e perversidade da colonização. Elas trazem também a profundidade de uma ancestralidade que atravessa os tempos a despeito de registros escritos dominados pelos homens brancos. E fazem isso dentro de uma metodologia muito própria.
Existe um símbolo Adinkra originário da cultura Akan, na África Ocidental, representado por um pássaro que olha para trás, carregando um ovo no bico, disse a professora e doula Fabrícia Dias da Silva, nossa anfitriã neste assunto que foi a doulagem das mulheres negras.
Sankofa, como é chamado esse símbolo, ensina Fabrícia, traz a necessidade de reconhecer e aprender com as experiências passadas para construir um futuro mais promissor. É uma tecnologia de conexão com a ancestralidade usada por mulheres negras e, por isso, ao escutarmos uma única história atentamente, faz com que um coro de outras tantas preencha nosso entendimento ou desperte o passado para o presente.
E foi em um domingo, que descobrimos que uma entrevista pode ser feita apenas com uma pergunta: “O que é a Linha Nigra?”. Porque a resposta de que era uma coletiva de justiça reprodutiva, alimentar e climática para mulheres negras e periféricas em São João del-Rei, veio sankofada, resultando nessa experiência do enunciado em camadas.
Entenda
“Hoje, nenhuma mulher dá conta de estar em nenhum movimento social. Ninguém que está em movimento social está porque tem tempo para doar. Isso não é uma realidade. Porque a gente mudou a característica das mulheres em movimento social”, começa Fabrícia.

Fabrícia lembra a imagem da mulher branca, que fazia filantropia e vendia como movimento social. Para ela, um certo tempo que não faz sentido mais porque ele não é o que sobra. Ele não tem a espera da vítima. O momento capturado por quem precisa de ajuda tem características tão distintas como as demandas que se apresentam cotidianamente com um apertar de campainha na porta da sua casa.
Ela chegou a São João del-Rei com 25 anos, em 2010, de Vitória, Espírito Santo, chancelada pela sua porção mineira no sangue. “Nasci e fui criada no Morro da Fonte Grande, que é uma favela, uma periferia no centro de Vitória. É uma periferia mãe, um quilombo urbano. E eu vivi, cresci lá mais de 20 anos”.
De lá, começou a acumular-se, palavra escolhida por ela. “Trago os acúmulos da minha periferia, dos movimentos sociais, das minhas articulações de onde eu vim. Fui gerente de ONG lá... Quando eu chego em São João, obviamente venho com o fogo na roupa. Encontrei um cenário aqui muito caótico”, lembra.
A Lei de Cotas, conhecida também como Lei 12.711, só foi aprovada dois anos depois, em 2012. Com ela, todas as instituições de ensino superior federais do país precisaram, obrigatoriamente, reservar parte de suas vagas para alunos oriundos de escolas públicas, de baixa renda, negros, pardos e índios. E como acontece sempre, toda mudança tem uma crise, um certo caos.
“Eram as entradas do movimento Lula, quando a gente começou a encher a universidade, com as cotas, buscávamos um lugar de protagonismo da diversidade”. Mas, no entanto, não era suficiente para Fabrícia. Só entrar não bastava.
“Às vezes, eu ia conversar temas de periferia dentro da universidade e ouvia que a sala de aula não era aquele programa ‘Casos de Família’. Parecia que era um tema individual, uma luta que cada um leva. Era um cenário hostil. Eu comecei a adoecer mesmo, principalmente dentro da academia pelas questões de epistemicídio. Então eu fui para Bahia”.
E lá ficou cinco anos na Universidade Federal da Bahia, UFBA.
Uma escola chamada Bahia
"O divisor de águas" foi a expressão escolhida por Fabrícia. Uma metáfora retirada da geografia que se refere a uma linha imaginária, um risco usado para separar duas bacias hidrográficas. E, pensando em territórios, de fato, os estados cruzados por ela também são divididos por águas, que é a bacia do Jequitinhonha. Água das emoções, da sensibilidade, da intuição e conexão com o mundo espiritual:
“Lá foi o divisor de águas pela observação do território e pela condição que eu tive de estar envolvida. Os estudos em torno da performance e do teatro negro foi encontrando outros lugares de resistência na Bahia, porque lá a resistência é com arte, sabe?”
Quando Fabrícia fala de observação do território, é um olhar sobre uma vida diferente do sudeste. “Quando você vai ver quem protagonizou algo muito transformador, vai ver que é uma mulher negra, um homem negro. Então esses processos também me chamaram a atenção lá, que eu vejo gente preta em todos os lugares. Ah, eu vou no banco, vou conversar com o gerente - gerente é preto. Esse cenário muda a nossa cognição sobre a representação, sobre o Brasil que vemos e queremos continuar vendo”.

A Bahia é o estado com maior proporção de pessoas autodeclaradas pretas e pardas do Brasil, com quase 80% da população se identificando com pretos e pardos, com base em dados do IBGE.
Fabrícia fez o que chama de alianças na Bahia. Estabeleceu diálogos com artistas negros que, por sua vez trouxeram outras alianças, outras mulheres negras na política e em cargos estratégicos. Dentro da universidade, ela destaca os professores, ainda que poucos, mas comprometidos com o antirracismo e “não apenas ocupando uma vaga”, provoca.
Para ela, a Bahia é a nossa grande África no Brasil. “Eu acho que o primeiro divisor é a desconstrução da narrativa sudeste, do que é ser negro. Tu quer vivenciar isso, tu quer protagonizar. Então, fui para um território onde a resistência, a luta é muito grande. Ensina muito”.
Mas São João del-Rei, apesar de tudo, não descarta afeto
Com o Golpe contra o governo de Dilma Rousseff, Fabrícia lembra que o Nordeste ficou insustentável. “Por exemplo, tinha um mercado do lado da universidade. Eu ia nele antes do golpe, todo mundo feliz. Depois, a gente via carrinhos em fileiras. A gente começou a ver o aumento de moradores de rua, de recessão de financiamento de bolsa”, descreve.
Ela estava no auge da produção acadêmica. Com a professora Evani Tavares Lima e outros companheiros, participou do Primeiro Fórum Negro de Artes Cênicas da UFBA. Um movimento que se estendeu a outros cursos e que aumentou a circulação de docentes e o protagonismo negro na universidade.
Mas no meio da prestação de contas do evento, o sobrinho filho dela foi assassinado na saída de um bloco de carnaval após um desentendimento. “Eu estava lá na Bahia, no meio de todo esse debate, quando os meus ruíram”, lembra.
Na leitura dela, estar em São João del-Rei permitiria que ela vivenciasse o luto e terminasse o curso mais perto da família. Então voltou porque a cidade tinha um custo de vida melhor e, acima de tudo, não tinha os índices de violência urbana de capitais como Salvador e Vitória, que ameaçam tanto as pessoas negras.

E também a morte muda o rumo das pessoas. Ela mexe com as estruturas, tira do lugar. Fabrícia precisava ressignificar sua relação com a academia e com suas raízes. São João del-Rei dava o espaço adequado pra isso. “Eu era mais feliz na favela do que dentro de uma universidade. E eu não fui para a universidade buscar felicidade. Eu estava ali como uma ação, um projeto, um incentivo, querendo ver os meus também podendo estudar. Eu sou a primeira mulher negra da minha família com um diploma. Então isso [a morte do sobrinho] atravessa muitas coisas e me fez voltar pra cá”.
Em 2018, Fabrícia retorna a São João del-Rei para concluir o curso de licenciatura em Teatro. “As amizades, as vizinhanças, o que você deixou, quando você volta está no mesmo lugar. São João não é uma cidade que descarta afeto. Isso não aconteceria em Vitória, isso não aconteceria em São Paulo. Você ficaria dez anos fora de São Paulo, quando você voltasse, você tá começando completamente do zero. E aqui os afetos, eles não se desmoronam não”.
Fabrícia voltou mais “acumulada” e reconhece que em São João del-Rei tinha uma base. Quando foi embora era a solitude que a movia. Mas quando voltou encontrou inquietude, gente querendo reagir, botar a cara no sol. No meio de um golpe, no governo Temer ela encontra uma São João del-Rei cheia de coletivos.
Mas logo depois vê essa efervescência esfriar por conta da ascensão da extrema direita ao poder com a eleição de Jair Bolsonaro seguida de uma pandemia, um vírus que atingiu em cheio as camadas mais pobres. “As mulheres negras foram decaindo nas suas ações, nas suas sustentabilidades. Eu mesma passei por isso. Tive a infelicidade de ser despejada, grávida”, revela Fabrícia e cita que a ação foi movida por uma família conhecida que, inclusive, tem um antepassado com nome de rua.
Doulagem periférica: Linha Nigra
A trajetória de Fabrícia com a doulagem começou a partir de uma inquietação que amadureceu com o tempo. Em 2015, ainda na Bahia, ela já sonhava em se tornar doula, mas esbarrava no elitismo do campo: cursos inacessíveis, majoritariamente em São Paulo, com altos custos e voltados para a realidade de mulheres brancas, casadas e com ensino superior.
“Esse sonho tá difícil. Por que que eu quero ser doula?”, perguntava-se. A resposta vinha com peso: porque ela é uma mulher negra, tem o direito a sonhar, de maternar e não morrer ao parir. “Eu queria ser mãe, mas eu não queria entrar na estatística de violência e morte que cerca a obstetrícia hoje.”
Ao descobrir a palavra “doula”, viu nela uma figura feminista e histórica. Se uniu a outras mulheres com preocupações parecidas, como Ananda Amado e Isis Ferreira. Juntas começaram a mapear o cenário de São João del-Rei.
O cenário de estudo de doulagem mudou um pouco com oportunidades novas na cidade. Mas os relatos de mulheres negras que desejavam uma doula e não conseguiam acessar esse serviço começaram aparecer mais e revelavam uma estrutura excludente. “As mulheres que se formam vão atender parentes, amigas, fazem reuniões em universidade para atrair clientes. Isso para nós, mulheres negras, não serve como projeto. O que uma doula preta vê é diferente do que uma doula branca vê.”, explica.
A proposta que nascia era clara: acessibilidade, informação e desvio da violência obstétrica. Um projeto com base na educação popular e perinatal. “Uma mulher com informação sabe recorrer, sair disso, tomar uma decisão. E a tomada de decisão é uma ação antirracista de consciência”, afirma Fabrícia.
Mas era o governo Bolsonaro, período em que as doulas foram proibidas em hospitais, formações foram atacadas, cesarianas forçadas aumentaram e mulheres negras seguiram morrendo sem alarde. “Quando uma mãe preta morre na Santa Casa, ninguém fica sabendo. As pessoas acreditam que ninguém morre aqui.”
Foi nesse contexto que a Linha Nigra foi fundada, em 2020, como resposta coletiva a esse silêncio. Fabrícia se formou doula na Bahia, em um curso com conteúdo político, antirracista e engajado.
Ao buscar se cadastrar na Santa Casa de São João del-Rei, viu colegas brancas sendo recebidas com tranquilidade, enquanto ela sofreu discriminação. Mesmo com os mesmos documentos, teve que insistir para ser reconhecida. Não viu também indignação por parte das colegas brancas e ficou mais claro que era preciso se organizar de forma diferente com as suas iguais.
Em paralelo, construiu com outras doulas o projeto de lei municipal, mas apesar de toda luta e da aprovação, uma legislação pouco alterou a realidade da cidade.
O método do acúmulo
Depois de sankofar, Fabrícia explicou a coletiva Linha Nigra como um grupo que articula mulheres com formações diversas, muitas delas também terapeutas ou integrantes de redes que discutem aborto. Um tema tabu entre as doulas brancas, mas realidade cotidiana entre as negras. “Esse assunto bate aqui, toca a campainha.”, relata.
A partir de 2021, com a redução das restrições da pandemia, as integrantes voltaram a se encontrar presencialmente. O coletivo cresceu como espaço de articulações cada uma com sua frente, sua luta, seu território. A resistência virou método. A doulagem, ferramenta. O cuidado, política. E em 2023, Fabrícia concluiu formação em economia do cuidado pelo Instituto Lula, fortalecendo um discurso que o grupo já carregava.
“Nós não somos aquele coletivo que todo mundo faz a mesma coisa ao mesmo tempo, no mesmo lugar. Cada uma tem uma ação, um acúmulo, desenvolve o piso no território. Então, isso é também uma característica nossa”, afirma.
Ela explica que a rede que sustenta essas ações não está em organogramas institucionais, mas em alianças construídas na prática, com base na confiança e no compromisso com a vida. Cuidar de outras mulheres, garantir acesso à informação, oferecer presença nos momentos mais vulneráveis: tudo isso é produção de resistência.
Já que, ao contrário do que esperavam da formalização, a lei municipal aprovada para garantir a presença de doulas nos hospitais da cidade não representou uma abertura real. A estrutura segue excludente, marcada por disputas raciais, por um perfil de doula normativo e pela recusa de saberes tradicionais. “A gente não cabe ali. A gente precisa de outro lugar.”
Assim, o coletivo Linha Nigra virou esse outro lugar. Um espaço onde cada mulher atua no seu tempo, no seu território, com sua frente de luta. Mas o vínculo permanece. “Quando a gente vai falar, por exemplo, de justiça reprodutiva e climática, a gente precisa da atuação de outras mulheres ali também compondo essa discussão. Nós somos oito mulheres, oito alianças com mulheres que para nós elas são lianigras, mas como elas não tem disponibilidade para um cenário organizativo, para viver organicidade coletiva, são as nossas alianças, são as nossas parcerias. Aí nos dividimos e nos unimos no interesse pela justiça reprodutiva e no fato de que todas somos educadoras. Não é um grupo pra fazer tudo junto. É um grupo de acúmulo. A gente vai acumulando. ”.
"Acúmulo" é uma palavra recorrente em Fabrícia e que surge como potência de cuidado, formação política, produção de conhecimento, denúncia e pulsão. Há quem esteja nas escolas, outras nos territórios, algumas na política institucional. Mas todas partem da mesma certeza: ser doula, para uma mulher negra, é muito mais do que acompanhar um parto. É enfrentar estruturas, romper silêncios, proteger umas às outras, inclusive quando ninguém quer ver.
Agenda

Existem outros grupos em São João del-Rei. Tem o Movimento Negro, o Quilombo Urbano, toda uma geração na academia fazendo uma UFSJ mais negra e também os grupos de expressões culturais afrodescendentes como produtoras, congados, folias e escolas de samba. Mas um grupo só de mulheres, específico nos assuntos de justiça reprodutiva e economia do cuidado da mulher negra, é o Linha Nigra que trata. A agenda delas contempla e conversa com todos os outros grupos citados e trabalha em regime de muita colaboração com mulheres negras também de associação de bairros e outras iniciativas pela cidade, Estado e país.
Do seu jeito, com as suas tecnologias e formas de se organizar muito próprias para não deixar que as exigências cotidianas se tornem obstáculos, a Linha Nigra se consolida como o primeiro coletivo que fez a agenda de Julho das Pretas dentro de São João del-Rei.
Com isso, elas colocam na cidade uma iniciativa nacional que celebra este mês como um período de luta e resistência das mulheres negras no Brasil, com foco no Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, celebrado agora no dia 25, também Dia de Tereza de Benguela.
O julho das pretas busca dar visibilidade à agenda política dessas mulheres, promovendo ações de incidência política, rodas de conversa, debates, oficinas e outras atividades. Este ano, o foco da Linha Nigra é todo na organização para participar da II Marcha das Mulheres Negras em Brasília, no mês de novembro.
Dia 25 de julho, sexta-feira, tem o Encontro Regional do Comitê São João del Rei e Região rumo à II Marcha das Mulheres Negras às 14h no Centro Histórico com a Linha Nigra Coletiva e Marcha Mundial das Mulheres Núcleo São João del Rei e Região.
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