Carla de Jesus é a ação que afirma vida.
- Daniela Mendes
- 5 de ago. de 2020
- 11 min de leitura
Atualizado: 9 de jun.
De uma criança abandonada dentro de um táxi a uma mãe e profissional dedicada. Ela quer mudar o mundo e é o testemunho de como ações afirmativas se fazem necessárias.

A psicóloga Carla de Jesus deu uma entrevista por três horas seguidas aproximadamente. No dia seguinte, ainda ligou para deixar bem claro sua posição mais uma vez. “Eu não quero ser modelo de resistência pra ninguém. Eu quero é ter representatividade nos lugares, entendeu? Olhar pro lado e ver que não estou sozinha. Não é um lugar meu. É um lugar que todas as pessoas tem que ter direito de conseguir”, afirma.
A história de sua vida, como Carla de Jesus mesmo diz, mostra que na sociedade “o buraco é mais embaixo”. Principalmente quando o assunto é políticas afirmativas no ensino público, as chamadas cotas raciais. E ela nem vai tão longe, chama atenção para Tiradentes (MG) onde viveu grande parte da vida. Um fato bem ilustrativo diz respeito ao almoço de família que protagonizou.
“A gente é tão acostumada a receber migalha, que, quando acha que recebeu o mínimo, pensa que é o máximo. Mas não é assim, não”. Carla de Jesus
Já adulta, mãe de uma menina de pele clara, fruto de uma união estável com o rapaz pelo qual se apaixonou, foi encontrar num restaurante a família toda branca que a havia adotado quando criança. Amamentava a filha na mesa e uma senhora fez um comentário achando lindo ainda existir amas de leite.
E isso é um detalhe perto de tudo que viveu. Carla literalmente comeu o pão que o diabo amassou. Não passava fome, mas o homem que ficou com sua guarda a estuprava constantemente dos onze aos 18 anos. “Eu tinha bicicleta do ano, eu tinha o dvd do ano, tinha a televisão. Não faltava nada nesse quesito. Eu tive acesso à cultura, a leitura, entendeu? Fui criada dentro de um meio artístico.”, enumera para mostrar o quão complexa é a questão.
Ser feliz é resistência
Abandonada dentro de um táxi no Rio de Janeiro, foi deixada sob encomenda para esse homem, em Nova Friburgo. A mãe biológica a deixou no banco traseiro com o endereço do destino. Parte da infância, contudo, passou numa espécie de orfanato católico. O homem, que se dizia padrinho, só vinha busca-la nos fins de semana e a deixava aos cuidados de uma empregada a quem lembra com afeto.
Sua natureza é de uma força incrível. Ri do trauma que tem das freiras rigorosas que não aceitavam seu jeito moleca, ao mesmo tempo que lembra das brincadeiras, como o canteiro de azaleias onde se escondia do mundo. “Eu era uma criança feminista”, resume com alegria.

Depois, este homem, que já tinha uma família, mudou-se para Tiradentes aos sete anos dela. Primeiro, Carla ficava com ele nas férias. Depois, veio morar com 10 anos de idade.
É bom ouvir seu relato da cidade, a história das pessoas antes do processo de gentrificação, do boom turístico de Tiradentes. Mas os detalhes da vida doméstica deixam qualquer mulher arrasada só de escutar, imagina viver.
O que muitos dizem ser época das vacas magras, para ela é um tempo idílico onde se podia nadar no riacho que corta parte do centro histórico e, hoje, é um corredor de esgoto. Sofria em casa os abusos, mas não deprimia. Saía de casa à noite escondida para ir para os bailes dançar, tinha amigos e companheiros de molecagens. Era só dançar e extravasar, ela afirma.
No entanto, é uma mulher muito consciente. “A gente é tão acostumado a receber migalha, que, quando acha que recebeu o mínimo, pensa que é o máximo. Mas não é assim, não”, larga o tom romântico e joga o cabelo para voltar à realidade e me contar sua vida. "Pera lá que já te falo de cota", fala ao menor sinal de minha impaciência.
Liberdade pela educação
Carla explica que o que tinha em casa não era sexo, mas estupro. Uma diferença que a sociedade tem dificuldades para fazer. Sexo foi ter aos 18 anos, quando se libertou do homem que a criava e conheceu o pai de sua filha, que ela diz ser o amor da sua vida.
Como o tutor e dono de sua guarda legal, a que ela se refere como padrinho, exigia a excelência, não menos do que isso, tudo era motivo para espanca-la. Uma espécie de sadismo travestido de rigor que faziam surdas e mudas as pessoas daquela época. “Será que as pessoas não sabiam ou achavam melhor não saber? Porque a gente dá sinais. Às vezes, eu faltava uma semana de aula”, lembra.
“Aí eu subi de vida. Tinha cinco empregos. Tiradentes, né? Você só sobe de vida se tiver cinco empregos”, Carla de Jesus.
A cada "não" às investidas sexuais e mínimo deslize era espancada e coberta de ameaças. Por isso, sempre foi bem na escola e viu uma oportunidade de sair daquela vida através dos estudos. Assim, do mesmo martírio de apanhar por tirar nove e não dez, juntou forças para sair daquela situação.
Convenceu o padrinho, através de um combinado, a estudar na Escola Agrotécnica Federal de Barbacena e morar numa pensão. Eram 42,86 kms de distância dele. Mas o homem aceitou. “Eu lembro que eu não saía pra nada. Fiquei estudando igual uma louca”, diz ao demonstrar como estava decidida a passar na escola técnica para viver livre.
E Carla passou em segundo lugar e foi a primeira mulher de Tiradentes a estudar na Escola Agrotécnica. “Foi aí que eu caí na vida mesmo! Foi a melhor época da minha vida!”, fala comemorando. Nessa época, também conheceu o pai de sua filha, Maria Julia.
A sobrevivência
Num fim de semana, nessa época, veio a Tiradentes e conheceu o amor, a quem descreve como uma pessoa totalmente desestruturada mas pelo qual se apaixonou. “Aqueles olhos azuis, foi a paixão da minha vida”, recorda.
Faltando dois meses para se formar largou a escola e veio morar com o namorado. Eles não deram certo, tiveram a Maria Júlia e se separaram. De repente, se viu sozinha com uma criança de três anos para criar. “Tinha o berço, meu colchão, as minhas roupas e as roupas dela. O resto larguei tudo”. É o que contabiliza ao descrever o quartinho onde foi morar.
Mesmo assim não recorreu ao padrinho abusivo. Depois, ele teve esclerose múltipla e ela ainda foi cuidar dele a noite depois de trabalhar de dia. Essa rotina foi até o dia que ele morreu.
Chegou a acumular cinco funções. Quatro do tipo quebra galho e um fixo, com Maria Júlia o dia inteiro na creche. Ainda arrumava tempo para fazer cursos do Senac num programa onde as aulas aconteciam numa carreta.
Carla foi se ajeitando como pôde, mas livre. “Aí eu subi de vida. Tinha cinco empregos. Tiradentes, né? Você só sobe de vida se tiver cinco empregos”, faz piada com crítica mas sem nenhum traço de rancor. Talvez um pouco de ranço que divide com o olhar generoso.
“Qualquer pessoa que passou por tudo que eu passei era pra estar enfiada dentro de um buraco”. Carla de Jesus.
Num destes empregos, ela namorava o pai do João, seu segundo filho. Quando dois destes estabelecimentos onde trabalhava fecharam, se viu novamente grávida. “Eu fui contar para ele [o pai do menino] que eu tava grávida, ele disse ‘se vira, não tenho nada a ver com isso não”, recorda. Descobriu a gravidez já com quatro meses.
Devido à pressão dos estigmas de uma cidade pequena onde passou a vida, resolveu ir morar em Carrancas, a 91km, onde quase ninguém a conhecia. Ficou lá por dois anos com a ajuda de Milu, uma mulher gentil, hoje madrinha de seu filho João Artur. Milu lhe chamou para tocar uma loja de artesanato na cidadezinha.

No entanto, o filho nasceu muito doente e Carla não conseguia trabalhar. Por isso, retornou a Tiradentes. Pra piorar, nessa época, a única referência afetiva de mãe que tinha, uma dentista carioca, Tânia Boccaletti, faleceu. Esta mulher fez de tudo para adotá-la mas não conseguiu devido a interferência do padrinho.
Carla gosta de usar o sobrenome da mulher nas suas redes sociais e lembra com tristeza deste dia. Pois não pôde ir em seu velório porque estava há um mês com o filho internado no hospital. “Foi o pior dia da minha vida. Eu acho que foi esse”, definiu.
De novo, a educação na vida de Carla.
A vida parecia ser aquilo mesmo, tinha retornado a Tiradentes, agora com dois filhos, um deles muito doente. Voltou à rotina de ter um emprego, um monte de bico e ainda dava aulas de boneca de pano voluntariamente na Associação de Moradores e Amigos da Torre, AMAT.
Ao lembrar disso, Carla faz uma reflexão: “Qualquer pessoa que passou por tudo que eu passei era pra estar enfiada dentro de um buraco”, e ri. Carla não recusava trabalho nenhum e ia levando a vida na correria. Até que o sobrinho do ex-marido lhe incentivou fazer o Exame Nacional do Ensino Médio, Enem.

Ela nem sabe dizer qual foi a ação afirmativa que usou. O sobrinho que fez para ela a inscrição sem nem falar nada, foi um empurrão.
Como não tinha terminado o segundo grau, tirou pelo próprio exame em 2011. É que até 2016, quem não estava matriculado em uma escola regular podia usar o Enem para obter o certificado do ensino médio. Ainda se fazia o vestibular depois também e foi tudo tão conturbado que ela nem lembra direito do processo. Somente que foi aprovada em julho de 2012.
Entrar para a Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ) mudou sua vida. Carla ficou com a nona vaga das nove reservadas aquele ano para candidatos declaradamente negros. Ela lembra que resistiu muito a ideia com o sobrinho. Afinal, pensava em como arranjaria tempo para frequentar uma faculdade enquanto criava dois filhos, um deles muito doente?
Jornadas mil e o calo apertado.
Psicologia nem era sua primeira opção. Ela tinha uma ideia vaga da profissão. Mas sabia que entrar na faculdade foi um grande feito. Por isso, levou Maria Júlia e João Artur no primeiro dia. “Eu não sabia o que era nada, nem o que era um ambiente acadêmico. E eu vejo que agora eu tenho toda essa visão social mais aguçada, tenho toda essa percepção do que é ser negra, porque passei por lá”, analisa.
Ia trabalhar 7h da manhã e chegava meia noite da faculdade, quando ainda ia limpar casa e cuidar dos serviços domésticos. Foi levando essa vida até se mudar para um porão perto da faculdade em São João del Rei e conseguir os 400 reais da assistência estudantil. Vendia calcinha para as colegas, continuou trabalhando em Tiradentes, fazia pão para vender e foi se apaixonando pela psicologia social.
“A faculdade não tem uma política que abrace os filhos das universitárias. Eles não estão no estatuto, que é de um tempo que a mulher não estudava. A mulher negra então, mãe solteira? Ih, meu bem, ferrou!”, Carla de Jesus.
Então era o batidão do trabalho, a faculdade, os filhos para cuidar, os estágios e, ainda, no meio do curso, a descoberta de que João Artur tinha que operar o coração de qualquer jeito. Teve que arrumar um jeito para fazer a cirurgia do menino, que corria risco de morte. Recorreu a uma campanha na internet e conseguiu a operação no hospital da Beneficência Portuguesa, em São Paulo.
É claro que com isso tudo não conseguiu acompanhar o curso, um dos mais longos na área de humanas e com mais matérias na instituição. A faculdade não aceitou o atestado para ela ficar com o filho. E ela precisava estar três meses cuidando de perto do menino, pois foi uma cirurgia de peito aberto.
Para conseguir o atestado, só se ela mesma estivesse doente. “A faculdade não tem uma política que abrace os filhos das universitárias. Eles não estão no estatuto, que é de um tempo que a mulher não estudava. A mulher negra então, mãe solteira? Ih, meu bem, ferrou!”, critica. E foi assim que perdeu o 2016 acadêmico para cuidar do filho.
A vez de Maria Júlia.

Carla nem bem tinha terminado a graduação, quando a filha Maria Júlia terminou o terceiro ano com o sonho de ser arquiteta. Não passou, a princípio, na universidade federal, mas Carla não é de abaixar a cabeça para os empecilhos. Negociou com a instituição particular onde já fazia uma pós graduação em fenomenologia existencial, em Barbacena, e lá foi Maria Júlia estudar arquitetura.
Como se não bastasse a dificuldade para pagar a faculdade e a van, Carla sofreu com as preocupações que as mães tem com os filhos na situação de Maria Júlia. “Eu não dormia por que ela ia e voltava de van, de noite, nessa estrada”, recorda. E ainda tinha que encontrar a moça onde o transporte parava, pelo ponto ser escuro e longe da casa onde moram.
“Não entra na minha cabeça, uma menina que trilhou toda a trajetória de uma menina negra, aí corre o risco de não passar porque ela é preta branca”, Carla de Jesus.
Contudo, Maria Júlia foi selecionada na chamada presencial. Um tipo de recurso que a UFSJ faz de acordo com a classificação no Sistema de Seleção Unificada (Sisu). As vagas que não são preenchidas na matrícula com os selecionados, podem ser ocupadas por alunos que não foram classificados inicialmente por ordem de pontuação.
“Eu posso colocar como um dos pontos mais felizes da minha vida”, recorda Carla emocionada. Porque ela mesma aprendeu a importância de se ter um curso superior. Acha que os filhos a tem como exemplo e fica feliz que eles tenham essa mesma forma de pensar.
Parda
A psicóloga também não esquece a tensão que ela e a filha passaram por conta da diferença da cor da pele. O pai de Maria Júlia era branco e a menina também. E logo depois da aprovação, a filha de Carla teria que passar pela comissão de heteroidentificação. Uma amigo havia alertado a elas que o processo poderia emperrar nesse ponto.
“A maria Júlia é branca, com esse cabelo escorrido dela... Mas Maria Júlia é filha de negra!”, afirma com um certo tremor de indignação como quem reclamasse a maternidade da menina. “Não entra na minha cabeça, uma menina que trilhou toda a trajetória de uma menina negra, aí corre o risco de não passar porque ela é preta branca”, questiona com a voz um pouco embargada por lágrimas.

Maria Júlia se defendeu, sozinha porque a mãe não entrou na sala. O que Carla conta foi o que a filha lhe descreveu. Primeiro, ela corrigiu os entrevistadores: não era negra, nem branca, mas parda. Parda porque sentiu o racismo a cada vez que a mãe ia na escola, a cada vez que perguntaram para ela se era filha adotiva, cada vez que via o irmão ser tratado diferente por ser negro e isso fazia dela uma pessoa parda.
A filha também lembrou à banca que o pardo é a mistura que vem do estupro de mulheres negras durante o período escravagista. E, ao me contar isso, Carla conclui: “A gente vira mãe é pra aprender mesmo. Mais pra aprender do que pra ensinar, eu acho”, concluiu orgulhosa. E Maria Júlia conseguiu a vaga sonhada.
Psicóloga, enfim, mãe de estudante de arquitetura.
Hoje, olhando para sua trajetória, Carla vê com preocupação a situação dos trabalhadores na cidade. “Eu fico pensando em quantas pessoas são silenciadas da mesma forma que eu fui e a gente não sabe. Porque querendo ou não é uma cidade que está preocupada com a evolução. Não é uma cidade que está preocupada com o que está acontecendo dentro da casa do outro”, analisa.
No ano passado, ainda na reta final da graduação, foi convidada pela presidente da AMAT, Sônia Úrsula, a desenvolver um trabalho de identidade com as mulheres que já se reuniam lá para fazer artesanato.
“As questões de umas servem para outras e todo mundo trabalha em diferentes contextos”, Carla de Jesus.
Já alimentava muita vontade de trabalhar com aquelas pessoas e o convite caiu como uma luva. Depois de uma análise e levantamento de demandas, traçou o projeto “Fuxicos e fuxicos”.
Mestre em transformar dificuldades em desafios, o dela agora é fazer com que as pessoas entendam a atuação do psicólogo além da clínica. Apaixonada pela psicologia social, desenvolve esse trabalho onde escuta as mulheres enquanto elas trabalham com o fuxico. “As questões de umas servem para outras e todo mundo trabalha em diferentes contextos”, explica.
Com esse trabalho, ela assume o protagonismo de uma psicologia que foge da tradicional visão elitista. O objetivo não é só o artesanato. “A gente conversa muito sobre política. Porque a gente estar vivo já é um ato político. A gente fala sobre a desvalorização da mulher, fala de tudo. De acordo com a fala delas eu entro como psicóloga", explica.
Carla teve muitos avanços nesse tempo de projeto. Tem muitas ideias de ações mas depende de incentivos financeiros. Faz o que pode com o que tem em mãos, mas teme ter que um dia abandonar o trabalho que tanto a realiza porque precisa sustentar os dois filhos.
Sem falar que está na pós-graduação de Qualidade de Vida nas Organizações no Instituto Federal Sudeste em São João del Rei, onde desenvolve também um trabalho com empregadas domésticas. Seu desafio, agora, é fazer com que tudo isso seja sustentável.
Ela está sempre em trabalhos sociais, corta São João del Rei e Tiradentes na sua motinha. Já passou pelas obras do Vovô Faleiro, Fraternidade Sagrado Coração de Jesus, Associação de Assistência aos Condenados Masculina, ONG Atuação, além de estágio de atendimento clínico no Serviço de Psicologia Aplicada do SPA. Já até realizou um documentário e ainda faz pão com grife, o @pretademinas. Ou seja, é diploma na mão, luta que segue e mil ideias para melhorar o mundo que poderiam te ocupar um dia inteiro numa boa conversa.







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