O corpo que sustenta a escrita
- Daniela Mendes
- 10 de nov.
- 11 min de leitura
Ela atravessou o Oceano Atlântico para falar sobre as empregadas domésticas de Tiradentes. Carla de Jesus é resistência.

A última vez que a Carla de Jesus esteve nesta revista, ainda fazia o curso de Psicologia (2020). Não foi a história de superação usada para acalentar a “Casa Grande”. Ela surpreendeu as leitoras de Tiradentes quando deu nome ao seu abusador na infância. E seu enredo foi a de uma “senzala” que transformou uma trajetória de abusos e abandono em um caminho de emancipação pela educação.
Foi nos estudos que ela encontrou uma rota de fuga. Criou sozinha dois filhos e enfrentou a pobreza, o racismo e o machismo. Atuou em projetos sociais voltados a mulheres e trabalhadoras, um deles promovendo escuta e consciência política através do artesanato. Sem aceitar para si o rótulo fácil de “símbolo de resistência”.
Pois o desejo individual dela é o de representatividade da mulher negra e igualdade de oportunidades. E um rótulo trivializa a trajetória, deixa de fora o potencial, o traço original de quem, apesar das marcas profundas da violência, faz do trabalho e da maternidade instrumentos de libertação e transformação coletiva.
Hoje voltamos a falar com Carla que retornou há quinze dias de Portugal, onde foi apresentar um artigo que faz parte do projeto de mestrado que desenvolve na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), no curso de direito: “Escrevivências de empreguetes mães negras: narrativas infames como direito de resistência na cidade de Tiradentes, Minas Gerais”.
Uma psicologia inclusiva
A trajetória de Carla de Jesus não se define só pela dor, mas também é marcada por uma busca constante por conhecimento e por uma prática profissional comprometida com a inclusão. Se formou em psicologia com ênfase tanto em Psicologia Clínica e Saúde Mental quanto em Processos Psicossociais e Socioeducativos.

Nem bem havia terminado a graduação e já fazia uma especialização em Psicologia Clínica pela UNIPAC, em Barbacena, com abordagem fenomenológica existencial. As aulas eram intensivas e quinzenais, ocupando dias inteiros. Pouco depois, fez também uma especialização em Qualidade de Vida nas Organizações, que lhe chamou a atenção pela ementa voltada aos determinantes sociais da saúde.
A pandemia teve lá sua participação ao interromper a rotina presencial. Mas também marcou o período em que começou a participar do MUSA (Mulheres Sonhando Alto), um coletivo voltado à atuação social e política de mulheres e pode realizar muitas atividades on-line.
Carla, que sempre gostou de cursos de curta duração, aproveitou o período para se aprofundar em novas formações como Escuta Especializada, Atenção Integral à Saúde da Mulher em Situação de Violência, Prevenção ao Suicídio, entre outros.
Ressignificar para resistir

Se a vida tem se revelado em conquistas, não foi de graça e não sem muito esforço e luta. Ela lembra a vulnerabilidade que a atingiu na pandemia: Carla e os filhos tiveram de se mudar para uma moradia precária, “um lugar que parecia uma senzala”, como ela descreve.
A colação de grau, realizada no aniversário do pai de sua filha, falecido anos antes, foi também emblemática: uma forma de ressignificar o medo e o ciúme que ele nutria em relação à sua formação. Conta isso sorrindo, como um samba na cara da sociedade, segundo a fala popular.
Em um novo momento profissional, foi aprovada em um processo seletivo para trabalhar com a população atingida pela barragem de Brumadinho, atuando remotamente em Juatuba, cidade ribeirinha. Depois, foi aprovada em outro trabalho e atuou com comunidades atingidas de Antônio Pereira, distrito de Ouro Preto. Embora nesse segundo grupo a barragem local não tenha rompido, ela enumera os profundos impactos sociais, ambientais e psicológicos provocados pela mineração.
O atendimento remoto, no entanto, trouxe novos desafios.
“Precisei trabalhar muito a questão da autoestima e da imagem”, lembra. “Sempre tive dificuldade de me ver na tela, e isso exigiu terapia e autoconhecimento”.
Mesmo em meio às dificuldades de todas as ordens, sempre atuou em movimentos sociais, como o Fórum de Mulheres das Vertentes e a Marcha Mundial das Mulheres, fortalecendo redes de solidariedade e articulação política. Carla é coletiva.
Desde o início da trajetória acadêmica, compreende a Psicologia como ferramenta de transformação social. Pessoas em situação de rua, dependentes químicos, população em situação de prostituição, crianças acolhidas institucionalmente, além de mulheres em vulnerabilidade sempre tiveram sua atenção e foram a bússola de seus estudos.
Para ela, a Psicologia precisa, mais do que nunca, olhar para fora dos consultórios e romper com a lógica que historicamente a manteve distante das camadas populares. “A Psicologia ainda é muito elitizada, marcada por uma lógica eurocêntrica, patriarcal e branca”, afirma. “Por isso, meu compromisso é estar onde o serviço não chega, com as pessoas que mais precisam”.
Da psicologia ao Direito
O mestrado na UFOP é do programa: "Novos Direitos, Novos Sujeitos". O foco é analisar e desenvolver conhecimentos para garantir direitos a grupos e comunidades muitas vezes invisibilizados na sociedade.
A ligação dela com o Direito vem de um sonho de criança. A Psicologia se colocou na frente porque não tinha o curso na UFSJ. Para ela, as áreas se unem quando observa que muitos transtornos e condições psicológicas de uma camada da população existem e são instaurados justamente pela não efetivação de direitos básicos dessa população.
“Essa falta de acesso a direitos básicos causa, sim, um adoecimento, cada qual na sua proporção”, afirma.

Essa perspectiva, amplia uma noção que retira o caráter assistencialista para uma escuta ativa. E aí sentiu a necessidade de pesquisar algo com essa ênfase. Que também atravessa questões sociais, como o tempo em que foi trabalhadora em Tiradentes. “É um sistema que existe, mas é pouco falado. As pessoas falam de tudo, mas não falam das más condições de trabalho, da precariedade, do trabalho escravo moderno, que ainda existe e ainda permeia a cidade”, denuncia.
Essa escravidão, para ela, apesar de ser uma cultura nacional, tem características próprias numa cidade pequena como Tiradentes. “Por ser uma cidade pequena demais, as pessoas acabam escravizando os seus”. Dessa forma, Carla traz essas experiências, principalmente dentro do trabalho doméstico, onde está localizado o objeto do seu projeto de mestrado.
“Foi muito difícil pensar e escrever esse projeto. Mexeu comigo em diversos sentidos. O processo seletivo tinha prova escrita, e eu me vi tendo que estudar Direito pra passar bem, porque no curso o acesso à bolsa não é por condição socioeconômica”, critica.
O programa trabalha com perspectivas de sujeitos invisibilizados e vulneráveis. Mas Carla questiona: como pensar a permanência desses corpos outros se não há uma política de cotas sociais para definir quem recebe a bolsa?
Mas, apesar do desafio ser grande, Carla passou no processo seletivo e consegui a bolsa pela FAPEMIG que hoje é a sua fonte de renda.
De repente Portugal
Com este histórico, Carla encontrou o conceito de “direito de resistência”. “É um conceito cunhado por um jurista brasileiro chamado Márcio Túlio Viana. Diz do direito de um empregado se recusar a cumprir uma ordem do empregador quando essa ordem é abusiva ou ilegal”, explica. “Trata-se do último argumento, a última cartada do empregado, quando ele vê os seus direitos violados. E eu trago a forma como as mães negras trabalhadoras domésticas de Tiradentes encontram um jeito de usar este direito”.
Sua dissertação, como ela mesma define, nasce da sua vivência. Transforma sua experiência em um lugar de observação onde cristaliza ideias com recorte acadêmico. Com isso, obtém um caráter inédito. “E foi por isso que a minha orientadora, maravilhosa, Flávia de Souza Máximo Pereira topou entrar nessa comigo”, atribui.

E lá estava Carla, em sua escrevivência. Que é um conceito de Conceição Evaristo para significar a escrita a partir da vivência, transformando a experiência pessoal e coletiva em texto. Como se não bastasse a construção ascendente de sua carreira, a história dela ganharia um capítulo ainda melhor e a memória seria laureada com um fato inédito para uma trabalhadora negra de Tiradentes, agora mestranda, como ela.
Quando ficou sabendo do 10º Congresso Internacional de Direitos Humanos da Universidade de Coimbra, Portugal, Carla se animou imediatamente. “Achei aquilo do caralho”, contou, rindo.
“Pensei: já fui pra lá, já fui pra cá, agora vou chegar em Portugal. Faço questão absoluta de apresentar o meu trabalho presencialmente na terra dos colonizadores. ”, afronta.
Ela queria marcar presença. “Olha, querido, vocês não mataram a gente. E tem uma pessoa aqui que saiu do trabalho doméstico, que agora tá no mestrado e que resolveu meter a cara e falar pra vocês: tá vendo como a gente resistiu? Que direito de resistência maior, que deboche maior do que esse? Não tem, uai. ”
Mesmo duvidando que como mulher negra fosse escolhida, enviou o artigo mesmo assim. Tinha, no entanto, muita confiança na integridade do seu trabalho. “Eu falei: é impossível que esse povo não vá querer o meu. Se o meu trabalho não for escolhido num simpósio de memória, lutas e resistências de mulheres, posso desistir dele, porque tá tudo errado. ”
E ela estava certa, o texto foi selecionado, mesmo sem ela saber como conseguiria o dinheiro para fazer a viagem. “Mas eu falei: vou sim. Se eu não tenho dinheiro, faço financiamento coletivo. O que eu tenho é disposição. ”
O aquilombamento

Quando Carla foi selecionada para apresentar seu trabalho em Coimbra, o feito deixou de ser apenas uma conquista individual. À medida que a notícia se espalhava, ela começou a perceber o tamanho do impacto que sua trajetória tinha entre muitas pessoas de São João del-Rei e Tiradentes.
Enquanto organizava a viagem e arrecadava fundos por meio de uma rifa, os amigos de São João del-Rei e Tiradentes se sensibilizaram. A campanha correu pelas redes e pelas ruas. Um dia, ao fazer compras em um supermercado e uma senhora a reconheceu na fila: “Vai dar tudo certo na sua viagem! Assim que eu receber minha aposentadoria, vou mandar um dinheirinho pra você! ”, Carla lembra emocionada.
Percebeu assim que não era só ela quem embarcaria para Portugal. E a prova disso foi quando retornou à Tiradentes. Recebeu muitas parabenizações, tantas que até a data desta entrevista ainda não tinha conseguido responder a todas as mensagens de WhatsApp. Lembrou de todas as mulheres que lhe serviram de rede apoio muito antes até de sonhar cursar psicologia. “Minha avó estaria muito feliz de te ver onde você chegou”, ouviu de uma amiga de infância.
Carla fez questão de destacar que não foi a Portugal para falar por ninguém, mas com a consciência de representar muitas. “Eu fui sozinha fisicamente, mas nunca estive sozinha. Dentro desse sentido de força e coletividade, eu não só não fui sozinha pra Portugal, eu nunca estive sozinha nem um dia.”
Para ela, o que aconteceu foi uma forma de aquilombamento, essa união ancestral que mantém vivas as comunidades negras diante da opressão.
“Quando a gente fala de aquilombamento, a gente não tá sozinha”, disse. “E se eu já tinha amor pelas pessoas da minha cidade, agora é quinhentas vezes maior. Eu tenho certeza absoluta de que tô no caminho certo. ”
Uma deficiência visual que vê além.
Nada vem de graça mesmo para Carla e paralela a esta história profissional brilhante ela recebeu um diagnóstico de glaucoma. Pesquisadora, ela se viu diante de uma pergunta que a atravessou por inteiro: “O que eu vou fazer da minha vida? ”.
O Congresso em Portugal veio em meio a esse turbilhão de emoções. Juntou a notícia ruim do diagnóstico, o medo de andar sozinha, de se perder, de não conseguir atravessar um aeroporto desconhecido e o medo mais intenso: o medo de voar.
Ainda assim, foi. Com o coração disparado, entrou no avião, sentou-se na janela e segurou firme, como se as mãos agarradas na poltrona pudessem manter a aeronave no ar. “Fui eu que pilotei o avião até Lisboa”, diz, entre o humor e a coragem de quem sabe rir da própria vulnerabilidade. A viagem, de nove horas, foi uma travessia literal e simbólica: um mergulho no medo e uma vitória sobre ele.
Apesar de conseguir enxergar, o glaucoma traz limitações: fotofobia, a dificuldade com degraus, com o relevo das ruas, com a noite que se torna um espaço mais incerto. Só que isso não significa uma completa invalidez.
“É! A Carla dança forró, né? Claro! A minha deficiência é visual e não é física! ”, pontua.
Coimbra pelo olhar de Carla.
A chegada de Carla a Portugal foi marcada por uma mistura de medo, curiosidade e olhar crítico. Desembarcou sozinha em Lisboa, ainda de madrugada, e esperou o dia clarear no aeroporto antes de seguir viagem para Coimbra.
Por conta da deficiência visual e da própria prudência, evitava andar sozinha à noite e só se deslocava acompanhada. Quando o sol nasceu, pegou o “autocarro”, o nome português para ônibus, e começou a notar as diferenças linguísticas, culturais e sociais que atravessariam toda a sua experiência.
Conheceu também muitos brasileiros que viviam em Portugal havia anos, muitos em empregos subalternos, sustentando famílias, mas também reproduzindo um certo desprezo pelo próprio país. Carla se irritava com isso.
Percebeu também que, mesmo em outro continente, o corpo negro seguia sendo lido de forma subalterna. Para ela, Portugal é um país bonito, cheio de monumentos e estruturas que impressionam, mas também um lugar que carrega em suas paredes a memória da exploração colonial.
“Tudo aquilo foi construído com o suor e o sofrimento dos nossos antepassados”, reflete.

Entre os rostos que mais a marcaram estavam os de mulheres de Guiné-Bissau, que trabalhavam em aeroportos, restaurantes e serviços de limpeza. “São mulheres esculpidas, parecem pinturas. Nunca vi tanta beleza junta”, disse, admirada e indignada ao mesmo tempo por perceber que essas mulheres, de uma força e beleza exuberantes, ainda são tratadas como inferiores.
Ver de perto essa herança a fez pensar sobre a continuidade das hierarquias raciais e econômicas, uma economia que, segundo ela, “segue sendo construída com a exploração dos corpos dos países de terceiro mundo”.
A experiência, para Carla, foi mais do que uma viagem acadêmica. Foi um reencontro com a história e com as feridas abertas do colonialismo. Em meio às diferenças de idioma, aos olhares de desconfiança e às descobertas de beleza e resistência, ela entendeu que sua presença ali era, por si só, um gesto político: o corpo de uma mulher negra, brasileira e com deficiência, ocupando com dignidade o espaço que outrora fora reservado apenas aos colonizadores.
Academia dos colonizadores

Carla aprendeu, na pele e na experiência, que o saber não é neutro. Ao participar do congresso internacional de direitos humanos em Coimbra, ela não pode deixar de notar a contradição de estar em um espaço que discute negritude, pobreza e vulnerabilidade, mas que é majoritariamente ocupado por pessoas brancas e de classes sociais privilegiadas.
Para ela, eram essas pessoas que produziam o conhecimento sobre os corpos subalternizados, sem jamais terem vivido o que significa ocupar esse lugar. Falar da pobreza ou da exclusão tornou-se um exercício “chique” dentro da academia, uma forma de prestígio intelectual, mas esvaziado dos atores a quem realmente importam estas questões.
Por isso, Carla entende que levar o próprio corpo até aquele espaço foi um ato político. Ela não estava ali apenas para apresentar um trabalho, mas para afirmar uma presença. “Fiz questão de ir à terra dos colonizadores”, disse, consciente da dimensão simbólica daquele gesto. Sua fala traz a resistência cotidiana de uma mulher negra, mãe solo, vinda do trabalho doméstico e agora mestranda. Estar ali, diante de uma plateia europeia, era subverter o papel imposto, deixar de ser objeto de estudo e tornar-se sujeito do saber.
Durante a apresentação, notou o silêncio respeitoso da plateia e o impacto que sua trajetória causava. Não houve perguntas, apenas elogios e convites para prosseguir a pesquisa em universidades do Brasil e do exterior. Ela compreendeu, então, que o simples fato de ocupar aquele espaço já era uma ruptura. Sua presença dizia mais do que qualquer teoria.
De volta ao Brasil, Carla passou a refletir sobre o que significa permanecer na academia. Falou das pressões psicológicas, das cobranças de produtividade e da dificuldade de traduzir sua oralidade em escrita acadêmica. Mas o que mais a desafia é o esforço constante de existir ali como um corpo dissidente, que carrega todas as vulnerabilidades: mulher, negra, pobre, mãe solo e com deficiência visual.
Ela conta que um amigo do mestrado brinca dizendo que ela está “em quase todas as cotas”, e ela ri, mas sem perder a consciência do peso que isso carrega. Entre o silêncio imposto e a fala conquistada, constrói seu caminho. Ela sabe que o lugar que ocupa não lhe foi dado; foi tomado com coragem. E talvez esse seja o maior gesto de resistência: transformar o próprio corpo, tantas vezes visto como limite, em fonte de conhecimento e em território de poder.







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