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E a mulher inventou a estrada

Entrevista com a cantora Isis Ferreira revela a trajetória da artista em São João del-Rei e os detalhes do lançamento do seu single em homenagem à região.


Isis, mulher negra, cabelo black power, estende sua mão sobre um fusca.
Isis posa para a foto de divulgação do seu single. Foto editada sobre original de Vitória Labrudi

A multiartista Isis Ferreira carrega a poesia de quem nunca se desligou da terra onde nasceu e o ritmo de quem aprendeu a domar as estradas. Ela escolheu marcar o tempo com batida, organizar as lembranças com compasso e fazer soar palavras que ganham amplidão percussiva.


Hoje, 27/06, exatamente às 16h, a mesma em que nasceu há quatro décadas, essa canceriana lança o single “BR 265: De Santa Bárbara do Tugúrio a São João del-Rei”. Isis pegou a estrada por onde passa toda semana para trabalhar e fez dela uma trilha sonora que estará disponível no Spotify e também em videoclipe no YouTube.


Mas essa é só a primeira canção. Vêm aí mais quatro músicas, todas contempladas pela Lei Paulo Gustavo. A cantora e atriz está em fluxo, em criação contínua, se desdobra em múltiplas formas e é uma vertente entre tantas deste campo fértil de nascentes.


Sem se deixar corromper pelos tempos superficiais e ligeiros, Isis ocupa o mundo com sentido, intenção e a delicadeza firme de quem também é mãe, doula e educadora. Canta como quem celebra e denuncia. Como quem costura passado e presente com os fios da música e da memória. Seu som é atravessado por espaços e histórias que não cabem numa só biografia.


Por isso, ela quer compartilhar. Porque sabe que a natureza, a palavra, o tambor de festa e de protesto são elos que unem muitas mulheres.


Filha das Vertentes, essa região mineira em que tantas histórias se entrelaçam, a cantora é parte do que faz esse território significar, além da geografia, um lugar de transformação e de toque profundo no outro.


Hoje, ao cantar sua estrada, Isis nos lembra: toda mulher é vertente. E talvez seja por isso que essa região tenha justamente esse nome... Campo das Vertentes.


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O que mais te sinalizava que você partiria para esse caminho da arte? Foi um fato? Foi um dia, uma visão? Foi o quê?


Eu sempre cantei desde muito pequena, cantava em casa, copiando as cantoras que apareciam no rádio.


Que cantoras?


Quando eu era menina, lá nos anos 1990 (risos), tocava muito Marisa Monte, Elis Regina, Alcione, Beth Carvalho... Tocava muito a música Caipira também, Almir Sater, Sérgio Reis. O meu pai é um homem que sempre escutou muito rádio. Lá em casa o rádio reinava muito. E eu tinha o costume de pegar uma fitinha, colocar no toca-fitas e gravar as canções que apareciam no rádio e depois tentar reproduzir elas, igualzinho as cantoras.

A minha família é bastante musical, apesar de não termos muitos parentes que são profissionais da música. Todos os meus parentes cantam, sempre cantaram em igreja, tocavam instrumentos de sopro, saxofone, trombone, clarinete. Eu participei de muitas atividades no colégio também, como teatros dentro da escola. Eu sempre tava metida em alguma atividade artística.

Até formar no ensino médio, eu tinha bem fixo que eu ia ser veterinária. Como eu venho de uma família pobre, meu pai queria muito que eu trabalhasse em alguma profissão que me desse um resultado financeiro mais rápido e que, depois, eu seguisse qualquer caminho que eu quisesse de sonhos.

Nesse meio tempo, eu trabalhei bastante em várias outras coisas. Mas em 2000 e 2004, eu conheci o teatro através de um projeto que circulou em Barbacena...


Qual projeto?


Era um projeto de lei de incentivo... Chamava Bairro em Cena que eu participei por cinco anos e era coordenado pela companhia ‘Elas por Elas’, com uma atriz muito conhecida aqui da nossa região que é a Cláudia Valle.

Aí eu conheci o teatro com uma profundidade maior, com um teor mais profissional, diferente dos teatros que a gente fazia na escola. Em Barbacena sempre tiveram muitos grupos de teatro, mesmo amador, sabe? Eu lembro que nos anos 1990 existiam vários grupos e o Ponto de Partida já existia também. Era uma referência grande, né?

Mas eu não via muitas mulheres negras, artistas que eu pudesse me referenciar nesse sentido, tipo... 'nossa, aquela mulher negra é uma artista foda'... Só conheci a Dani Black, nossa querida Dani Black aqui de Barbacena, que Deus a tenha... Ela era uma inspiração para mim.

Quando o projeto finalizou, decidi com muita seriedade a fazer isso da minha vida, trabalhar com teatro, com arte.

E aí eu fui pesquisar na nossa região, um lugar mais próximo que teria um curso de teatro profissionalizante para eu me ingressar. E eu descobri que existia o Grupo Teatro da Pedra, que antigamente era Companhia Teatral Manicômicos, né?


Eu lembro!


É, existia esse grupo em São João del Rei, que vinha de São Paulo... E dava o curso de teatro profissionalizante por 2 anos e era gratuito.

E depois desse curso você já podia tirar o seu DRT*, que é o seu seu registro de ator, de atriz. Então eu logo quis ir para São João del-Rei e fui... Fiquei nesse translado por um ano, pedindo muita carona na BR para chegar a São João, duas, três, quatro vezes na semana, mas ainda assim eu voltava para Barbacena. E aí em 2010, com a chegada do Reuni*, abriu aquele monte de novos cursos, né?

Dentro dessa leva abriu o curso de bacharel e licenciatura em teatro na Universidade Federal de São João del-Rei. Foi aí que eu decidi também ingressar na universidade e fazer teatro. Depois disso, a minha vida de cantora deslanchou, porque na mesma época que aconteceu o curso de teatro, aconteceu o curso de música também. Então chegaram muitos músicos em São João.

Eu conheci essa galera, que também era das artes... Comecei a cantar nos barzinhos, nos eventos e nunca mais parei. Então eu sou cantora profissional mesmo, que eu me considero, desde 2010. Antes disso era mais voltada para o teatro. Depois eu comecei a pensar mais na música com seriedade e na profissão de cantora mesmo, porque eu me encantei por isso.

 

Eu estava vendo que nas suas redes sociais, tinha uma expressão... Você usou assim: viver São João do Rei, né? São João del-Rei na pele... Eu queria saber se você consegue traduzir isso.


Viver São João do Rei, para mim, diz muito respeito à minha pretitude. Em São João, eu me identifiquei como uma mulher negra. Eu me aceitei. Eu já tava nesse processo, o teatro me despertou muito para isso, para essas outras vertentes, inclusive para buscar teatro negro e pesquisar sobre o teatro negro, né? O que era ser uma artista negra...

Viver São João me trouxe essa diversidade de possibilidades. Não só uma diversidade cultural, mas também política e social, de me encontrar nesse lugar do pertencimento negro, das vivências de preconceito...

E foi aí em São João que eu desenvolvi toda essa questão política, de participar de movimentos sociais, de movimentos voltados para mulheres, para mulheres negras especificamente, de poder vivenciar um Congado, uma Folia de Reis, com outro olhar, né?

Porque em Barbacena também tem grupos de Congado, mas eu acho que eu era muito menina, ainda não tinha esse conhecimento político muito entranhado nas minhas vivências. Em São João del-Rei, eu comecei a participar de muitas outras influências políticas e sociais. Então isso também diz muito a respeito da minha trajetória artística, né?

Porque eu comecei cantando samba, que era desde já um estilo, um ritmo muito escutado por mim. Meu pai escutava muito samba em casa. Então, eu já tinha isso.

O teatro acabou me trazendo para um outro estudo, o da MPB... Chico Buarque, Milton Nascimento, Caetano, com muito mais voracidade. Eu engoli mesmo o teatro com tudo que ele podia me oferecer... Mas em São João eu me descobri sambista e gostei muito de fazer isso, muito. Eu me entendi nesse lugar de sambista, de mulher do samba e o samba é muito preto, né? Isso foi viver São João para mim.


E a BR da sua poesia, a BR 265, você acha que ela vai te levar para onde?


Ah, eu espero que a BR 265 me encaminhe para outras BRs desse nosso Brasil. Essa música ela soa para mim como uma retomada desse pertencimento também da raiz. Traz saudade, traz o que eu adquiri fora das minhas raízes.

São João traz essa saudade, né? Tem muitos artistas que cantam São João da saudade. Eu acho que todo mundo que passa por São João del-Rei tem uma parte da sua história remexida e saudosa depois que sai daí, né?

E eu nunca saí de São João, né? Por mais que eu tenha que vir muitas vezes aqui para terra da minha mãe, ficar aqui um tempo, eu estou sempre retornando para São João. Semanalmente eu estou lá tocando, trabalhando. É o meu lugar de trabalho, a minha cidade do coração. Tanto que eu digo que eu sou sanjoanense, eu me sinto muito sanjoanense, de verdade!


A vida de artista é muito difícil, né? No dia-a-dia, muito trabalho, pouco reconhecimento financeiro... Você não optou pelo plano mais estável. Como é que é ser artista com todas essas dificuldades, essas coisas do nosso país?


Olha, eu carrego muitos adendos dentro da minha história. Eu sou uma mulher, eu sou uma mulher negra, eu sou uma mulher negra mãe solo, eu sou uma mulher negra mãe solo, artista independente e todos esses adendos dificultam às vezes a nossa trajetória na arte.

A gente sabe que o mercado da arte, como vários outros mercados, ainda é muito dominado pelos homens, né? É um mercado que abre portas, mas abre portas específicas assim para mulheres, então nem sempre a gente tem mulheres em todas as áreas da música, em todas as áreas do teatro, mas a gente vem desbravando todos esses lugares com muita destreza, com muita expertise.

Eu faço tudo sozinha, sou eu que marco os meus shows, sou eu que convido os músicos para tocar comigo. Raramente eu sou convidada para tocar com alguém, porque tem esse lugar do intérprete, do cantor também. O instrumentista, ele tem muitas bandas, muitas formações. Pro cantor é mais difícil.

Então eu me desdobro nesse lugar da maternidade, da família, de estar presente aqui com uma mãe já idosa, uma tia já idosa, poder partilhar mais tempo com elas, de ter que transladar entre cidades... Porque atualmente eu fico também muito em Santa Bárbara do Tugúrio, que é a terra natal da minha mãe, e aqui eu não tenho campo de trabalho. É uma cidade menor, com 4 mil habitantes.

Eu preciso me deslocar na Região das Vertentes. I

sso tudo é um reinventar-se, né? Eu costumo dizer que a gente pode ser artista em qualquer profissão que a gente tenha. Basta você ter forças para se inventar todos os dias. E assim eu sigo nessa caminhada como cantora profissional há 17 anos já.

Eu tiro meu sustento semanal da música, especificamente da música mesmo. É um ato de resistência, passar tanto tempo investindo num negócio, né? Um micro empreendimento muito autônomo que não me trouxe até agora nesses meus 40 anos de vida, que eu completo hoje, uma estabilidade financeira. Mas me trouxe muitos outros retornos positivos para minha caminhada existencial mesmo.


Eu queria que você contasse para as leitoras, para a gente te acompanhar, né? Eu queria que você falasse como é que vai ser? Você vai lançando single por single? Como é que a gente vai te acompanhar daqui dessa estreia em diante?


Eu tive a coragem de pela primeira vez me inscrever num edital de fomento. Eu achava que eu não tinha essa capacidade. Às vezes a gente passa muito ainda por esse lugar de achar que não tem essa condição, mas eu meti as caras e me inscrevi.

Eu me inscrevi no edital da Lei Paulo Gustavo de São João do Rei e me inscrevi também no do Estado de MG. Então na municipal eu passei com um single com videoclipe. E no edital do Estado de Minas Gerais eu passei com com quatro músicas.

Agora, no dia 27, hoje, eu vou lançar o primeiro single que é do edital de São João del-Rei com videoclipe no YouTube que vocês vão poder acompanhar através das minhas redes. Você acessa o meu Instagram @isisferreira.arte, e vou colocar os links lá.

No mês que vem dia 25/07, no dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, no Júlio das Pretas, eu lanço o EP Pretuminância, com quatro sambas autorais. Todas músicas autorais, gravadas por artistas da nossa região, das Vertentes, com alguns convidados especiais.


Uai, cita os nomes. Dá uma adiantadinha.


Nesse single do BR 265, nós temos a direção musical do Guilherme Faria, a gravação aconteceu no El Ninho Estúdio e Laboratório Criativo, que também tá com projetos contemplados na Lei Paulo Gustavo e tá exibindo esses projetos na Rede Minas, que é o “Em Vivo”, né? Que também exibe vários compositores autorais da nossa região. Eu já tive a honra de gravar pro “Em Vivo” também lá quando eles começaram.

Convidei o Lucas Batista pro baixo... Um monte de companheiros de anos e anos de de caminhada. Em mais de 10 anos eu toco com essas pessoas. Convidei a Maria Anália para as percussões, ela é uma criadora de instrumentos musicais gigantescos... Convidei a Raquel Baeta para tocar piano e teclado também. E aí aBR 265 tem essa configuração musical. Tem também de Juiz de Fora o Caetano Brasil, indicado do Grammy Latino. De Belo Horizonte, o Gilson, percussionista da Adriana Araújo.

E quem ficou por conta do videoclipe das gravações foi a “Sobradinho” audiovisual com a Vitória Labrudi e a Elisabete Ramos. Produção executiva da Danielle Rodrigues, minha amiga parceira do “Pretas Produtoras”, que a gente tem esse micro empreendimento também aí em São João de Pretas Produtoras.


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*DRT significa Delegacia Regional do Trabalho, mas é comumente usado para se referir ao registro profissional emitido por essa instituição, especialmente para artistas e técnicos em espetáculos de diversões. Ter um DRT significa que o profissional está devidamente registrado e autorizado a exercer sua profissão legalmente. 


*REUNI é o programa governamental brasileiro (Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais) que aconteceu durante o governo petista.


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