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“A falta de recurso te faz criativa”

  • Foto do escritor: Daniela Mendes
    Daniela Mendes
  • 13 de jul. de 2022
  • 11 min de leitura

Com essa frase, Jenny, professora de línguas e DJ, conta como desenvolveu aulas diferenciadas com base nas vivências dela no ativismo e nas festas que produz.

jenny à esquerda com olhos fechados oferece o ombro carinhoso a moliane ue também está de olhos fechados
Musgo e afeto no quintal de Jenny (esq.) e Moliane (dir.)/Jéssica Carvalho

No bairro Bela Vista, em São João del-Rei, MG, tem um quintal com concreto irregular, mas que bem poderíamos dizer que ali brota afeto além de musgo. Mora nesta casa a professora de línguas e DJ, Jennifer de Souza Teixeira, a Jenny, e sua namorada, a fotógrafa Moliane Cirilo. Quando o portão se abre, os cachorros vêm sorridentes para farejar a visita.


No caminho para a cozinha, tem-se que passar pelo quintal, que é como uma imensa sala de visitas. Nele, enfeites de festas, fitas coloridas, parecem dispostos como bobagens arqueológicas, tranqueiras íntimas cúmplices de muitos momentos. A fotógrafa, que é também barbeira, Moliane, espera com porte elegante e tímido na cozinha.


Em tempos de retrocessos políticos e pandemia, aquele terreno tem algo especial. Junto das plantinhas, as cadeiras de praia oferecem um lugar ao sol precioso neste inverno. São assentos para compor intervalos de descanso e “quentá” o corpo. Além de oferecerem uma imagem figurada de tronos na Pasárgada de Jenny e a namorada. Pareceu incrível que outrora, naquele mesmo espaço, tivesse tanta gente há dias atrás e um palco capaz de testemunhar espetáculos de música e dança.

Moliane e jenny estão sentadas em cadeiras de praia no quintal com um litrão no chão.
Um litrão e a alegria no quintal da Casa Graviola/Jéssica Carvalho

A Casa Graviola


Essa singela casa ganhou página no Instagram e é conhecida como Casa Graviola. No dia 14 de maio, após a data que se comemora - com aspas - a abolição da escravatura, aquele endereço abrigou em seu quintal uma grande festa. Não fazia parte dos eventos do Movimento Negro na cidade. Sem bandeira definida, Jenny e Moliane criaram um espaço e as pessoas simplesmente sabiam que poderiam aparecer e se expressar ali.


A festa chegou a ser apelidada de Festival Sarará de São João, em alusão ao festival de maior porte de Belo Horizonte, já que teve uma diversidade de público e atrações pouco vistas nos espaços convencionais da noite sanjoanense.


"O que foi que deu errado da gente não fazer disso aqui um país branco, a Europa nos trópicos? O que deu errado? A nossa resistência. A gente combinou também de não morrer desse jeito assim do jeito que vocês estão querendo". Sueli Carneiro

Teve apresentação de dança afro, venda de artesanato local, performance, maracatu Raízes da Terra, pintura de mural ao vivo, pista comandada por várias DJ’s mulheres pretas, comidinhas rápidas pra segurar a onda da galera e rodada grátis de cravinho e cachaça.


Tudo isso sem a pretensão de se tornar uma empresa, um bar, um point ou empreendimento definido. Jenny e Moliane têm muitas ideias, que vão de teatro a cinema. Mas avaliam cada passo com cuidado porque ambas tem suas profissões em paralelo.


“Não existe amor em essepê”.


Jenny não começa a contar sua história pelo início da vida como costumam fazer a maioria das pessoas. E até terminar de traçar seu caminho, o que ela conta, bem lembra uma reflexão da filósofa e ativista antirracista, Sueli Carneiro, quando foi ao podcast de Mano Brown (Mano a Mano).


Pergunta a intelectual: “Como foi que nós sobrevivemos se não fosse empreendendo? (...)O que foi que deu errado da gente não fazer disso aqui um país branco, a Europa nos trópicos? O que deu errado? A nossa resistência. A gente combinou também de não morrer desse jeito assim do jeito que vocês estão querendo. E chegamos até aqui”.

Moliane simula um atendimento na barbearia a Jenny
Moliane e Jenny na barbearia da fotógrafa que funciona na Casa Graviola/Jéssica Carvalho

A professora chegou a São João del-Rei com uma ideia muito vaga do que seria a cidade mineira. Morava em capital paulista numa casa coletiva, a Casa Amarela, em Perdizes, com vários artistas e Dj’s. Ela adorava a antiga casa, mas estava num relacionamento abusivo com um francês e procurava um jeito de sair daquela situação.


Como havia cursado letras e dava aula desde os dezenove anos, trabalhava também numa escola para crianças ricas, no que Jenny enfatiza a definição: “muito, muito, ricas”. O cenário era da reeleição da presidenta Dilma, de intensa polarização. Todo dia ela estava imersa num ambiente de trabalho em que se falava mal, não apenas do governo de esquerda, mas de pobre, pessoas gordas, entre outros machismos e classismos em geral. “Eu estava de saco cheio”, resume.


Era uma chácara né? Tinha piscina, tinha pomar. Pensamos: cara, muito barato. Em São Paulo isso aqui seria dez mil. Tá suave dividir nós três”. Jenny

Também em 2014, os paulistanos enfrentaram a pior crise hídrica já vivenciada. Isso afetou em cheio a população que se viu obrigada a economizar água e acompanhava diariamente as medições de nível do principal sistema de abastecimento de São Paulo, o Cantareira. Estamos falando de 6 milhões de habitantes só na região metropolitana e 5 milhões de pessoas nas bacias dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí. Itu, no interior do estado, chegou a ficar 30 dias sem água nas torneiras.


Tomando água do volume morto, Jenny enfiou uma ideia na cabeça: precisava ir embora. “Eu gostava muito de Minas, porque meu pai é mineiro. Gostava de Ouro Preto na época... Aí uns amigos falaram: Vamos pra São João (del-Rei) que é tipo Ouro Preto, mas é mais perto.”, lembra.


Êxodo paulistano.


Esses amigos com Jenny eram três. Mas, atrás deles, vieram mais um monte de gente, ela narra. Muitos atraídos pela faculdade. Outros por qualidade de vida mesmo. Um movimento de pessoas jovens que a professora chama de êxodo paulistano, uma brincadeira com a qual o grupo gostava de se definir.


O ano era 2015. Alugaram uma casa de mil e quinhentos reais nas Águas Santas. Ao comparar com os preços da metrópole paulista, acharam que ia ser moleza manter aquele valor. “Era uma chácara né? Tinha piscina, tinha pomar. Pensamos: cara, muito barato. Em São Paulo isso aqui seria dez mil. Tá suave dividir nós três”, recorda as primeiras impressões.


Jenny acaricia um cachorro nos trilhos de trem.
Jenny nos trilhos de Minas/Moliane Cirilo

Não passou muito tempo para eles descobrirem que não tinha a mesma oferta de emprego em São João del-Rei como em São Paulo. Começaram a ficar sem dinheiro e decidiram fazer uma festa para pagar o aluguel. Avisaram a vizinhança e daí nasceu a primeira “Quizumba”, uma palavra de origem africana que significa conflito em que se envolvem numerosas pessoas, uma confusão.


Apesar do nome, Jenny lembra que não havia nenhum interesse em direcionar a festa para uma temática racial. Mesmo porque quando chegou em São João del-Rei, tinha uma consciência rasa. A festa era só uma forma de levantar dinheiro mesmo.


Como tinha dificuldade de se desvencilhar por completo do namorado abusivo, ele acabou vindo para festa na condição de amigos para tocar como DJ. Contudo, segundo ela, no auge da patuscada, as músicas dele ficaram muito desanimadas e “bad vibes”. O que fez com que algumas pessoas fossem embora.


Ela, que sempre se sentia inibida de assumir a cena como DJ, a pedido dos amigos, removeu o cara do som e assumiu. “Eu disse: sai. E aí foi a minha primeira festa como DJ. Foi quando eu estreei”, marca o momento de forma bem pontual.


Em São Paulo é muito diferente, os gostos, os estilos... Muito remix, as pessoas criam as músicas, ficam só na batida a festa inteira. Eu acho muito interessante, mas prefiro selecionar mais do que ficar nessa de DJ de criação”. Jenny

Nasce uma DJ.

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DJ Jenny uma das faces da professora/Moliane Cirilo

Na Casa Amarela, em São Paulo, Jenny vivia num ambiente de produção de baladas. “Eu tinha uma vida dupla. Porque a escola que eu dava aula era muito burguesa”. Ali ela viu nascer várias festas famosas e descontruídas do cenário paulistano, muitas em lugares abandonados, trilhos de trem, por exemplo.


Embora não fosse DJ, ela estava muito inserida neste movimento. Quando não estava no trabalho ou na produção destas festas, em casa ficava brincando e aprendendo com os DJ’s que moravam lá. Eles viam potencial nela, incentivavam-na a tocar, mas Jenny sempre dava um jeitinho e fugia. “Eu tinha muito medo, tinha muita gente, muito DJ, muita técnica”, justifica.


No dia da festa que ela foi comandar o som, na verdade, nem foi uma decisão. Ela se viu sem saída para ocupar o lugar do fiasco do ex-namorado. Mas logo tomaria gosto pela coisa, já que seu set ganhou fama na cidade. Iria também aprimorar suas escolhas num gosto mais popular. “Em São Paulo é muito diferente, os gostos, os estilos... Muito remix, as pessoas criam as músicas, ficam só na batida a festa inteira. Eu acho muito interessante, mas prefiro selecionar mais do que ficar nessa de DJ de criação”, define.

Assim como os brancos não precisam falar ‘essa festa é de branco’, eu também não falava que era festa para enaltecer pretos. Era só a Quizumba contratando pessoas negras. Queria que fosse uma questão natural e orgânica”. Jenny

Uma outra “Quizumba”.


Cedo a casa das Águas Santas se desfez e cada morador foi para um lado. Ainda em 2015, Jenny entrou num coletivo. Este grupo feminista já atuava desde 2013. Promovia manifestações artísticas, culturais, grupos de estudo e intervenções em geral. O objetivo era discutir questões ligadas à situação da mulher negra na sociedade e ao racismo.


Como consequência, Jenny foi morar com duas integrantes do grupo. Através daquela experiência e dos estudos no coletivo, começou a reconhecer micro agressões diárias sofridas em sua vida. Morando com companheiras do ativismo, sua vida mudou. A cidade passou a ocupar um outro lugar.

A “Quizumba”, com permissão dos colegas da casa da Águas Santas, passou a ser uma festa dela e ganhou várias edições e uma conotação mais consciente, no sentido de enaltecer o povo preto da cidade. Mas Jenny sempre deixou essa questão racial mais implícita no discurso. “Assim como os brancos não precisam falar ‘essa festa é de branco’, eu também não falava que era festa para enaltecer pretos. Era só a Quizumba contratando pessoas negras. Queria que fosse uma questão natural e orgânica”, explica a estratégia dela.


Cancelamento


Para Jenny, esta experiência com o Coletivo foi fundamental na sua vida, mas também um fator de adoecimento. Em 2017, ela saiu do grupo sem interesse de voltar a ter uma experiência igual. “Às vezes a gente tinha dois reais na carteira e queria abraçar o mundo”, ilustra para tentar começar a explicar a complexidade daquele momento.


Hoje, mais madura, avalia que o erro foi morar junto e fazer da moradia a militância. Isso fez com que as coisas saíssem do controle, segundo ela. O grupo ficou simbiótico sem a individualidade das participantes. A casa virou uma instituição, não um lar. Qualquer pessoa preta, jovem, LGBTQIA+, em vulnerabilidade, era encaminhada para aquela espécie de república.


A minha humanidade foi cancelada. Não tinha humanidade, eu era só uma festa, uma militante e era a mais velha. Isso pesa também”. Jenny

Nesse processo de acolhimento institucional, sem nenhuma estrutura e sem mesmo ser uma instituição, problemas de saúde mental foram se acumulando ali. As integrantes começaram a ser cobradas por um posicionamento do grupo frente a outros fatos raciais que surgiam na cidade. “Eu não trabalho pra branquitude que quer resumir o racismo deles com outras pessoas fazendo atos e eles indo lá fazendo faixinha. As pessoas tinham que entender o corre nosso de todo dia”, se posiciona.


Para deixar tudo ainda mais complexo, as relações afetivas entre as pessoas envolvidas não facilitou a complexa e intensa vivência do grupo. E quando Jenny vacilou, ela foi “rachada” pelo grupo, expressão que ela própria usa.


Essa foi a definição dela: “Eu não queria ser exemplo pra ninguém”, afirma ao lembrar da cobrança que sentia sobre si e completa: “A minha humanidade foi cancelada. Não tinha humanidade, eu era só uma festa, uma militante e era a mais velha. Isso pesa também”. Jenny tinha 27 anos na época e as outras eram mulheres de 20 a 23 anos.


A professora de línguas


As festas e militâncias sempre fizeram parte da vida de Jenny, mas a profissão de professora de línguas era uma constante também. Chegou a São João del-Rei em janeiro de 2015, com 25 anos e uma boa bagagem didática.


Depois de terminar os créditos na faculdade e trabalhar durante este período acadêmico, ela mal havia se formado e estava desencantada com o sistema educacional. Por isso, resolveu ir ser babá no exterior. “Entrei na faculdade com aquela ideia: vou mudar o mundo, vou revolucionar. Aí veio a realidade, bateu aquela depressão e falei: mano, vou sair fora!".


Essa saída também foi uma busca de entender o Brasil vendo-o de fora, além do aprimoramento linguístico. Morou na Holanda, mas confiando no inglês, sua língua base, como ela mesma diz, além do português. Então, teve sorte porque assim que chegou em São João del-Rei, o projeto de extensão da UFSJ “Expressions” estava precisando de professor.


Jenny falava um “francês de conversação” e era professora formada de inglês. Mas a coordenação do projeto entendeu que ela daria conta de dar as aulas para iniciantes. Ela hoje avalia o que foi esta experiência: “Foi muito bom pra mim esse projeto porque eu era muito livre e também porque ali formalizei meus estudos em francês”, avalia com gratidão.


Porque ela aprendeu o francês das ruas, falando, lidando com pessoas. Muito empírica, ela ri e diz que vai “absorvendo”. Na medida que dava aula, estudava a gramática. Como num processo de construção que se dá a partir da resposta a demandas. “Não era minha pretensão ser professora de francês. Foi São João nas condições de pobreza”, afirma rindo.


São Paulo tinha muito oferta para dar aula e assim ela conseguia sempre se sustentar. Mas, em São João del-Rei, além de ser poucas escolas, estas ainda pagavam mal e não remuneravam as férias. Sem falar que os diretores não permitiam que o professor lecionasse em outras concorrentes. “No recesso escolar a gente se fode porque não tem dinheiro”, contextualiza.


Jenny e moliane estão na barbearia de moliane sorrindo.
Jenny e Moliane na barbearia que funciona no quintal/ Jéssica Carvalho

O método Jenny

Num cartaz amarelo jenny aparece entre um homem negro e outro decabelo amarelo. ela tem cabelo rosa
Cartaz de uma aula da Jenny Idiomas/instagram

Jenny avalia que a escassez de trabalho na cidade foi um celeiro de ideias. Além da Quizumba, do seu empoderamento como DJ, de adicionar o francês a seu rol de ensino, ela aprendeu a fazer produtos naturais e até vendeu cachaça. “Eu acho foda sobreviver em São João del-Rei mas teve também muita efervescência criativa”, conclui.


Sem falar, que apesar das garantias de São Paulo, as vivências de racismo não eram sacrifícios aceitáveis: “As crianças muito, muito ricas, ficavam puxando meu cabelo. Eu tinha cabelo black. Elas guardavam lápis no meu cabelo, sabe? Esse tipo de constrangimento”, descreve.


No “Expressions”, os alunos eram universitários e mais plurais, mas ainda maioria caucasianos. Um dia, quando foi dar aula de dança de maracatu numa escola com mais crianças pretas e pardas nas Águas Santas, viu um trabalho com colagens de revistas. Percebeu então que não havia nas imagens pessoas iguais aos alunos, somente brancos. A partir de então começou a refletir sua pedagogia.


Aliada a esse pensamento que veio se construindo, ela achava os conteúdos da aula de francês muito cafona, centrado muito em Paris e imagens estereotipadas. Para ela, estas lições ignoram outras culturas dentro até da própria França e outros países que falam a língua. “O francês não é só para você ir lá ver Torre Eiffel, sabe? Ele te abre portas para outras culturas. São Paulo tem uma comunidade enorme de haitianos e senegaleses”, exemplifica.


Quero que meus alunos se sintam representados no Jenny Idiomas e que fiquem felizes”. Jenny

Tudo isso a fez refletir na forma dela ensinar. Em mostrar para os seus alunos inúmeras culturas a partir da língua. Visando não apenas o exterior, mas o de ser um agente de inclusão dos imigrantes que aqui chegam.


O problema é que sua abordagem não era bem vista em escolas tradicionais. Ao ser demitida da última em que trabalhou, mais uma vez, diante da escassez de possibilidades, começou a elaborar o seu método de aulas on-line e criou uma escola de línguas virtual. Agora, levando em consideração, com total liberdade, a realidade do aluno.

Para tanto Jenny foca em questões de representatividade e de antirracismo. “Pra que uma pessoa tem que ir para a escola e se sentir tão inferior?”, questiona. “Quero que meus alunos se sintam representados no Jenny Idiomas e que fiquem felizes”.


Além dessas considerações, ela também cobra um preço justo para garantir a democratização da língua. “Hoje, no Brasil, não é realidade da maioria das pessoas racializadas pagarem para ter aula de línguas. Uma ou outra consegue”, estima. Com essa visão, seus alunos são na maioria racializados e LGBTQIA+. Porque Jenny acredita que estas pessoas se sentem seguras em fazer aulas com ela.


E mais: garante que com preço justo não ficou mais pobre. Ela já conseguiu oferecer bolsas e até turmas on-line. Hoje só tem duplas e trios. Comemora os resultados e até avalia dar aulas presenciais na Casa Graviola. “A minha militância, para além de eu democratizar o acesso às línguas, é eu me manter viva. Eu preciso da minha autonomia financeira. Se eu cobrasse o que as outras pessoas cobram com aulas particulares, talvez eu estivesse muito bem. Mas eu estou bem, de boas, tranquila”, avalia.








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