O que te mata a fome nutre?
- Daniela Mendes
- 9 de ago.
- 7 min de leitura
Ketchup artesanal, fermentados caseiros, comer conscientemente: três mulheres mostram como é possível desafiar a lógica dos ultraprocessados e manter viva a comida de verdade.

A Coca-Cola, o prato de batata frita palito e um frasco de ketchup provavelmente te trazem uma lembrança afetiva. As cores reforçam essa sensação. O amarelo, estimulante e otimista, está ligado à jovialidade e à recreação. Ao lado dele, o vermelho evoca sentimentos de paixão, felicidade e aventura. E a Coca-Cola? Poderíamos escrever um livro inteiro sobre uma simples lata ou garrafa desse refrigerante.
Isso porque a comida carrega um valor simbólico e cultural profundo. Às vezes, positivo. Outras, não nos permite ver relações de consumo e de poder nem sempre saudáveis. Comer é tão entranhado nos nossos códigos sociais que sofre uma naturalização. Como alerta o jornalista Jean-Baptiste Malet no livro O Império do Ouro Vermelho, “o frasco de ketchup, ao lado da garrafa de Coca-Cola, é um dos símbolos mais famosos da americanização do mundo”.
Exagero? Pois um minúsculo refil de ketchup pode sim nos levar a uma questão complexa de colonização alimentar. Estudos mostram como hábitos alimentares reproduzem relações coloniais, baseadas na imposição de sistemas artificiais e industriais, que ignoram contextos culturais e apagam saberes tradicionais.
E para quem acha que isso é viajar na batatinha, vale lembrar: este consumo afeta diretamente a saúde, a exploração de recursos naturais e a perpetuação de estruturas sociais e econômicas. E, claro, o apagamento de riquezas ancestrais da cozinha brasileira.
Por sorte, na contramão dessa lógica, mulheres da Região das Vertentes, em Minas Gerais, têm revalorizado ingredientes locais, práticas sustentáveis e modos de preparo tradicionais. A resistência está na mesa, mulheres! E com uma criatividade que é uma delícia.
Ketchup decolonial

No restaurante Plano B, em Tiradentes, se você pedir fritas vai encontrar de acompanhamento um ketchup decolonial (nomeado assim neste texto por pura travessura de quem escreve). O molho é feito ali com ingredientes frescos e curry, pela chef Mariana Cavalcanti e suas fiéis escudeiras, Elizangela Alves Lima e Yessenia Maria Cedeno Figueroa.
A chef procura, tanto quanto possível, preservar o preparo artesanal das refeições. O cardápio do almoço do restaurante é majoritariamente livre de ultraprocessados. Os ingredientes vêm de produtores locais, como orgânicos do mercado municipal de São João del-Rei. A exceção fica por conta de alguns itens de grande demanda, como a batata frita congelada e a mostarda industrial. Contudo, ainda assim, a cozinheira prioriza o artesanal para fugir dos ultraprocessados.
Para ter essa qualidade, Mariana afirma que o tempo de preparação e a conservação das matérias-primas são os grandes desafios dela na cozinha. Já que esses fatores, quando otimizados, garantem tanto a cozinheira profissional quanto a dona de casa certa praticidade. E ao falar sobre isso, ela começa uma reflexão: "Foi justamente aí que a indústria encontrou argumento, a brecha, para substituir saberes ancestrais por produtos prontos e empacotados com aditivos e conservantes químicos".
Cozinhar e planejar

Há uma conexão histórica entre a entrada da mulher no mercado de trabalho e a ascensão dos alimentos ultraprocessados no Brasil e no mundo, afirma Mariana. Embora o assunto seja documentado em livros, pouco se pensa no cotidiano.
“Quando a mulher passa a trabalhar fora, a indústria enxerga nisso uma oportunidade. Antes, cozinhar era um trabalho pesado: acender o fogão a lenha, matar a galinha, preparar tudo do zero. Com a rotina mais acelerada, surgem produtos que prometem praticidade”, explica, mas lembra do preço: pratos tradicionais foram perdendo espaço para preparos cada vez mais adaptados com aditivos químicos da indústria alimentícia.
O desafio, para ela e muitas mulheres preocupadas com a qualidade do que se põe à mesa, é manter uma alimentação saudável em meio à correria cotidiana. “Comer bem exige planejamento. É preciso organizar a semana, cozinhar e porcionar. O tempo é o maior tempero da comida”, afirma.
Ela sugere cozinhar feijão e arroz para a semana, investir em congelamento e incluir alimentos fermentados, que duram mais e beneficiam a saúde intestinal. Entre os exemplos, cita panquecas de fubá com aveia e chia, jiló e beterraba, tudo fermentado. Depois, mostra na geladeira da sua casa as conservas em potes de vidro organizados.
Mariana, no entanto, destaca que nem todo industrializado é ultraprocessado e recomenda sempre ler os rótulos. Tem farinhas boas, por exemplo, e farinhas muito modificadas com aditivos. Por isso, o mais acertado talvez seja optar pelo cuscuz, tapioca, mandioca cozida ou fermentada.
A bruxa da fermentação

Trocas entre mulheres são verdadeiros tesouros. E foi em um curso com a confeiteira Marina Barbosa que Mariana aprendeu os truques da conservação natural de alimentos. Marina mergulhou nos estudos da fermentação natural já há alguns anos. Conta que a motivação inicial da aprendizagem era o que estamos repetindo aqui desde o começo: evitar os ultraprocessados.
No sítio onde mora, ela produz seu próprio iogurte, pão e utiliza bastante a técnica de fermentação de vegetais. “Assim eu encho minha geladeira de sabores, cores e valores nutricionais diferentes.”, comemora.

A fermentação, difundida há milhares de anos, serve para conservar alimentos. “O mais incrível é que as bactérias ‘cozinham’ o alimento para você. Nós, seres humanos, atuamos como mediadores dessa relação, acrescentando temperos e formas de uso”, brinca Marina.
Vegetais comuns como beterraba, cenoura e mandioca ganham novos sabores quando fermentados. A mandioca, por exemplo, pode ser base para receitas mais complexas. “Basta separar uma manhã da semana, um domingo, por exemplo, para liberar a criatividade na cozinha. Você precisa apenas de um pote de vidro, algum conhecimento básico sobre as bactérias, descascar e cortar os vegetais da forma correta e deixá-los fermentar por alguns dias.”
Prazer de compartilhar
Para incorporar a fermentação no dia a dia é preciso um tempo para aprender, algo que Marina tem o maior prazer em compartilhar. Esporadicamente, ela oferece cursos no sítio onde mora. As datas são divulgadas nas redes sociais. “As aulas apresentam técnicas de fermentação lática e acética, trazendo mais autonomia e diversidade para a cozinha do dia a dia com praticidade. É possível formar turmas exclusivas para grupos de, no mínimo, oito pessoas.”
Durante o curso, os participantes experimentam os alimentos fermentados em um café da manhã de boas-vindas, recebem a parte teórica com material didático, assistem ao preparo prático e terminam com um almoço que tem receitas de opções fermentadas.

Marina reforça que a alimentação deixa de ser monótona com a fermentação natural. Fica mais nutritiva, saborosa e prática. “O tempo de preparo é curto, mas a durabilidade é longa. Por ser uma técnica de conservação, o alimento fermentado permanece vivo e em constante modificação, podendo ficar muito tempo na geladeira.”
Tudo, menos comida

A nutricionista da Secretaria de Saúde de Tiradentes, Kellen Alessandra Silva Castelo Branco, é categórica: o ultraprocessado nem deveria ser considerado comida. “É um produto alimentício. A matriz dele são commodities como milho e soja transgênica. Dali saem amidos modificados e óleos que servem de base para quase tudo que está nas prateleiras.”
Ela lembra que a indústria modifica receitas para reduzir custos, aumentar durabilidade e tornar produtos mais “palatáveis”. “Um biscoito água e sal de 30 anos atrás não é o mesmo de hoje. Antigamente ainda havia algum nutriente. Hoje, o que mais se vê são listas enormes de aditivos, conservantes e realçadores de sabor.”
Segundo o Guia Alimentar para a População Brasileira, os alimentos se dividem em quatro categorias: in natura ou minimamente processados, processados, ultraprocessados e ingredientes culinários. “Processados ainda podem fazer parte da dieta com moderação. Já o ultraprocessado não é indicado”, reforça.

Crianças na mira
O consumo excessivo começa cedo. Muitas crianças já não sabem identificar alimentos frescos. “Atendemos uma mãe de dois filhos pequenos que contou que só ela come feijão em casa. É preocupante, porque arroz e feijão juntos formam uma combinação perfeita de aminoácidos essenciais e fonte de ferro. Sem isso, aumenta o risco de anemia.”
O impacto é também cultural: “Hoje, doces de festa, biscoitos coloridos e salgadinhos substituem o prato de comida. Corremos o risco de criar uma geração que mata a fome, mas não se nutre.”
O problema não se restringe aos aditivos. A produção em larga escala envolve transgênicos e alterações genéticas que afetam o solo e a qualidade nutricional. “O trigo de hoje não é o mesmo do pós-Segunda Guerra. Alterações para aumentar produtividade mudaram a composição do glúten, que se tornou pró-inflamatório para parte da população.”
Cultura que prejudica
Para Kellen, é preciso senso crítico na hora de comer. A diferença entre comida de verdade e ultraprocessados vai além do sabor. Quem mantém o hábito de comer baseado em alimentos naturais não sofre com inchaço nem fome constante. “O corpo se regula. Já os ultraprocessados interferem até na frequência e compulsão alimentar. É isso que a indústria quer: criar essa dependência.”
Ela alerta que muitas pessoas acreditam estar se alimentando, mas estão apenas matando a fome. “É caloria vazia, sem nutriente. E o pior é a forma como isso está normalizado. Crianças crescem achando que suco de caixinha é suco, que biscoito recheado é lanche e que macarrão instantâneo é ‘comida rápida’.”

A resistência à mudança é comum. “Quando sugerimos reduzir ou cortar, muitos dizem: ‘ah, mas tudo hoje faz mal’ ou ‘é mais barato’. Mas não é só uma questão de dinheiro, é de hábito e de cultura. A indústria investe pesado para tirar o arroz e feijão da rotina e colocar o pacotinho no lugar. É mais prático? É. Mas e o custo para a saúde lá na frente? Quem paga é a gente.”, alerta.
No fim, o que está em jogo vai muito além de um frasco de ketchup ou de um pacote de salgadinhos. Trata-se de recuperar o tempo, o conhecimento e a autonomia sobre o que colocamos no prato. Entre o vermelho vibrante do molho e o amarelo das batatas fritas, há uma história de escolhas. E, como mostram Mariana, Marina e Kellen, sempre há espaço para resgatar o sabor e o valor da comida de verdade, antes que ele desapareça da nossa mesa e faça sumir nossas reservas de saúde.
Serviço
Para saber dos cursos da Marina: @maricotaconfeitaria @marina.barnog
Contato: 32 999909352
Plano B
@planobtiradentes
Rua Ministro Gabriel Passos, 79
Tiradentes - MG
Aqui estão outras dicas das três entrevistadas.











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