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O que te mata a fome nutre?

Ketchup artesanal, fermentados caseiros, comer conscientemente: três mulheres mostram como é possível desafiar a lógica dos ultraprocessados e manter viva a comida de verdade.


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A Coca-Cola, o prato de batata frita palito e um frasco de ketchup provavelmente te trazem uma lembrança afetiva. As cores reforçam essa sensação. O amarelo, estimulante e otimista, está ligado à jovialidade e à recreação. Ao lado dele, o vermelho evoca sentimentos de paixão, felicidade e aventura. E a Coca-Cola? Poderíamos escrever um livro inteiro sobre uma simples lata ou garrafa desse refrigerante.


Isso porque a comida carrega um valor simbólico e cultural profundo. Às vezes, positivo. Outras, não nos permite ver relações de consumo e de poder nem sempre saudáveis. Comer é tão entranhado nos nossos códigos sociais que sofre uma naturalização. Como alerta o jornalista Jean-Baptiste Malet no livro O Império do Ouro Vermelho, “o frasco de ketchup, ao lado da garrafa de Coca-Cola, é um dos símbolos mais famosos da americanização do mundo”.


Exagero? Pois um minúsculo refil de ketchup pode sim nos levar a uma questão complexa de colonização alimentar. Estudos mostram como hábitos alimentares reproduzem relações coloniais, baseadas na imposição de sistemas artificiais e industriais, que ignoram contextos culturais e apagam saberes tradicionais.


E para quem acha que isso é viajar na batatinha, vale lembrar: este consumo afeta diretamente a saúde, a exploração de recursos naturais e a perpetuação de estruturas sociais e econômicas. E, claro, o apagamento de riquezas ancestrais da cozinha brasileira.


Por sorte, na contramão dessa lógica, mulheres da Região das Vertentes, em Minas Gerais, têm revalorizado ingredientes locais, práticas sustentáveis e modos de preparo tradicionais. A resistência está na mesa, mulheres! E com uma criatividade que é uma delícia.


Ketchup decolonial


Mariana Cavalcanti, foto divulgação do Plano B
Mariana Cavalcanti, foto divulgação do Plano B

No restaurante Plano B, em Tiradentes, se você pedir fritas vai encontrar de acompanhamento um ketchup decolonial (nomeado assim neste texto por pura travessura de quem escreve). O molho é feito ali com ingredientes frescos e curry, pela chef Mariana Cavalcanti e suas fiéis escudeiras, Elizangela Alves Lima e Yessenia Maria Cedeno Figueroa.


A chef procura, tanto quanto possível, preservar o preparo artesanal das refeições. O cardápio do almoço do restaurante é majoritariamente livre de ultraprocessados. Os ingredientes vêm de produtores locais, como orgânicos do mercado municipal de São João del-Rei. A exceção fica por conta de alguns itens de grande demanda, como a batata frita congelada e a mostarda industrial. Contudo, ainda assim, a cozinheira prioriza o artesanal para fugir dos ultraprocessados.


Para ter essa qualidade, Mariana afirma que o tempo de preparação e a conservação das matérias-primas são os grandes desafios dela na cozinha. Já que esses fatores, quando otimizados, garantem tanto a cozinheira profissional quanto a dona de casa certa praticidade. E ao falar sobre isso, ela começa uma reflexão: "Foi justamente aí que a indústria encontrou argumento, a brecha, para substituir saberes ancestrais por produtos prontos e empacotados com aditivos e conservantes químicos".


Cozinhar e planejar


Cozinhar em fogo baixo até atingir a consistência desejada.
Cozinhar em fogo baixo até atingir a consistência desejada.

Há uma conexão histórica entre a entrada da mulher no mercado de trabalho e a ascensão dos alimentos ultraprocessados no Brasil e no mundo, afirma Mariana. Embora o assunto seja documentado em livros, pouco se pensa no cotidiano.


Quando a mulher passa a trabalhar fora, a indústria enxerga nisso uma oportunidade. Antes, cozinhar era um trabalho pesado: acender o fogão a lenha, matar a galinha, preparar tudo do zero. Com a rotina mais acelerada, surgem produtos que prometem praticidade”, explica, mas lembra do preço: pratos tradicionais foram perdendo espaço para preparos cada vez mais adaptados com aditivos químicos da indústria alimentícia.


O desafio, para ela e muitas mulheres preocupadas com a qualidade do que se põe à mesa, é manter uma alimentação saudável em meio à correria cotidiana. “Comer bem exige planejamento. É preciso organizar a semana, cozinhar e porcionar. O tempo é o maior tempero da comida”, afirma.


Ela sugere cozinhar feijão e arroz para a semana, investir em congelamento e incluir alimentos fermentados, que duram mais e beneficiam a saúde intestinal. Entre os exemplos, cita panquecas de fubá com aveia e chia, jiló e beterraba, tudo fermentado. Depois, mostra na geladeira da sua casa as conservas em potes de vidro organizados.


Mariana, no entanto, destaca que nem todo industrializado é ultraprocessado e recomenda sempre ler os rótulos. Tem farinhas boas, por exemplo, e farinhas muito modificadas com aditivos. Por isso, o mais acertado talvez seja optar pelo cuscuz, tapioca, mandioca cozida ou fermentada.


A bruxa da fermentação


Marina Barbosa, a bruxa da fermentação/Foto: Acervo Marina
Marina Barbosa, a bruxa da fermentação/Foto: Acervo Marina

Trocas entre mulheres são verdadeiros tesouros. E foi em um curso com a confeiteira Marina Barbosa que Mariana aprendeu os truques da conservação natural de alimentos. Marina mergulhou nos estudos da fermentação natural já há alguns anos. Conta que a motivação inicial da aprendizagem era o que estamos repetindo aqui desde o começo: evitar os ultraprocessados.


No sítio onde mora, ela produz seu próprio iogurte, pão e utiliza bastante a técnica de fermentação de vegetais. “Assim eu encho minha geladeira de sabores, cores e valores nutricionais diferentes.”, comemora.


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A fermentação, difundida há milhares de anos, serve para conservar alimentos. “O mais incrível é que as bactérias ‘cozinham’ o alimento para você. Nós, seres humanos, atuamos como mediadores dessa relação, acrescentando temperos e formas de uso”, brinca Marina.


Vegetais comuns como beterraba, cenoura e mandioca ganham novos sabores quando fermentados. A mandioca, por exemplo, pode ser base para receitas mais complexas. “Basta separar uma manhã da semana, um domingo, por exemplo, para liberar a criatividade na cozinha. Você precisa apenas de um pote de vidro, algum conhecimento básico sobre as bactérias, descascar e cortar os vegetais da forma correta e deixá-los fermentar por alguns dias.


Prazer de compartilhar


Para incorporar a fermentação no dia a dia é preciso um tempo para aprender, algo que Marina tem o maior prazer em compartilhar. Esporadicamente, ela oferece cursos no sítio onde mora. As datas são divulgadas nas redes sociais. “As aulas apresentam técnicas de fermentação lática e acética, trazendo mais autonomia e diversidade para a cozinha do dia a dia com praticidade. É possível formar turmas exclusivas para grupos de, no mínimo, oito pessoas.


Durante o curso, os participantes experimentam os alimentos fermentados em um café da manhã de boas-vindas, recebem a parte teórica com material didático, assistem ao preparo prático e terminam com um almoço que tem receitas de opções fermentadas.


Curso que Marina deu em Conselheiro Lafaiete  (MG)/Foto: Wal Barbosa
Curso que Marina deu em Conselheiro Lafaiete (MG)/Foto: Wal Barbosa

Marina reforça que a alimentação deixa de ser monótona com a fermentação natural. Fica mais nutritiva, saborosa e prática. “O tempo de preparo é curto, mas a durabilidade é longa. Por ser uma técnica de conservação, o alimento fermentado permanece vivo e em constante modificação, podendo ficar muito tempo na geladeira.


Tudo, menos comida


Kellen discursando na câmara municipal/foto de arquivo Revista Mana
Kellen discursando na câmara municipal/foto de arquivo Revista Mana

A nutricionista da Secretaria de Saúde de Tiradentes, Kellen Alessandra Silva Castelo Branco, é categórica: o ultraprocessado nem deveria ser considerado comida. “É um produto alimentício. A matriz dele são commodities como milho e soja transgênica. Dali saem amidos modificados e óleos que servem de base para quase tudo que está nas prateleiras.


Ela lembra que a indústria modifica receitas para reduzir custos, aumentar durabilidade e tornar produtos mais “palatáveis”. “Um biscoito água e sal de 30 anos atrás não é o mesmo de hoje. Antigamente ainda havia algum nutriente. Hoje, o que mais se vê são listas enormes de aditivos, conservantes e realçadores de sabor.


Segundo o Guia Alimentar para a População Brasileira, os alimentos se dividem em quatro categorias: in natura ou minimamente processados, processados, ultraprocessados e ingredientes culinários. “Processados ainda podem fazer parte da dieta com moderação. Já o ultraprocessado não é indicado”, reforça.


clique no quadro para aumentá-lo no celular
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Crianças na mira


O consumo excessivo começa cedo. Muitas crianças já não sabem identificar alimentos frescos. “Atendemos uma mãe de dois filhos pequenos que contou que só ela come feijão em casa. É preocupante, porque arroz e feijão juntos formam uma combinação perfeita de aminoácidos essenciais e fonte de ferro. Sem isso, aumenta o risco de anemia.”


O impacto é também cultural: “Hoje, doces de festa, biscoitos coloridos e salgadinhos substituem o prato de comida. Corremos o risco de criar uma geração que mata a fome, mas não se nutre.


O problema não se restringe aos aditivos. A produção em larga escala envolve transgênicos e alterações genéticas que afetam o solo e a qualidade nutricional. “O trigo de hoje não é o mesmo do pós-Segunda Guerra. Alterações para aumentar produtividade mudaram a composição do glúten, que se tornou pró-inflamatório para parte da população.


Cultura que prejudica


Para Kellen, é preciso senso crítico na hora de comer. A diferença entre comida de verdade e ultraprocessados vai além do sabor. Quem mantém o hábito de comer baseado em alimentos naturais não sofre com inchaço nem fome constante. “O corpo se regula. Já os ultraprocessados interferem até na frequência e compulsão alimentar. É isso que a indústria quer: criar essa dependência.


Ela alerta que muitas pessoas acreditam estar se alimentando, mas estão apenas matando a fome. “É caloria vazia, sem nutriente. E o pior é a forma como isso está normalizado. Crianças crescem achando que suco de caixinha é suco, que biscoito recheado é lanche e que macarrão instantâneo é ‘comida rápida’.


A típica comida brasileira ainda é a mais nutritiva das opções.
A típica comida brasileira ainda é a mais nutritiva das opções.

A resistência à mudança é comum. “Quando sugerimos reduzir ou cortar, muitos dizem: ‘ah, mas tudo hoje faz mal’ ou ‘é mais barato’. Mas não é só uma questão de dinheiro, é de hábito e de cultura. A indústria investe pesado para tirar o arroz e feijão da rotina e colocar o pacotinho no lugar. É mais prático? É. Mas e o custo para a saúde lá na frente? Quem paga é a gente.”, alerta.


No fim, o que está em jogo vai muito além de um frasco de ketchup ou de um pacote de salgadinhos. Trata-se de recuperar o tempo, o conhecimento e a autonomia sobre o que colocamos no prato. Entre o vermelho vibrante do molho e o amarelo das batatas fritas, há uma história de escolhas. E, como mostram Mariana, Marina e Kellen, sempre há espaço para resgatar o sabor e o valor da comida de verdade, antes que ele desapareça da nossa mesa e faça sumir nossas reservas de saúde.


Serviço


Para saber dos cursos da Marina: @maricotaconfeitaria @marina.barnog

Contato: 32 999909352


Plano B

@planobtiradentes

Rua Ministro Gabriel Passos, 79 Tiradentes - MG

Aqui estão outras dicas das três entrevistadas.


Livro: Quem vai fazer essa comida? Bela Gil.
Livro: Quem vai fazer essa comida? Bela Gil.
Guia alimentar para a população brasileira
Guia alimentar para a população brasileira









Aplicativo Desrotulando
Aplicativo Desrotulando










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