O tareco de Marina
- Daniela Mendes
- 5 de ago. de 2020
- 6 min de leitura
Atualizado: 10 de ago. de 2020
Veja como os modos mineiros se misturam a uma quitanda nordestina e outra húngara.

Na família da Marina, ela é a que mais gosta de tareco, um biscoito doce de massa mais endurecida, bom para mergulhar no café, como ela sugere aos risos. Comia na casa da avó paterna e, agora, está toda feliz porque a Maria, a ajudante da casa e maestrina tarequeira, lhe passou a receita. Numa pesquisa rápida que fez, descobriu que trata-se de uma quitanda muito popular no nordeste, sem saber exatamente de qual estado.
Quando postou a foto do biscoito no Instagram, uma amiga do sul de Minas Gerais disse que, por lá, o tareco é um tipo de biscoito salgado que parece uma panquequinha. E assim começou a entrevista, numa reflexão de como “essas coisas” viajam, se espalham e sofrem suas próprias mutações. “A Maria chama de cacareco”, lembrou do detalhe para falar do potencial de transformações do alimento enquanto passava o café.
“vai variando as quantidades mas um monte de receita tem essa mesma base. E muita açúcar!”. Marina Barbosa.
Marina Barbosa é confeiteira e cozinheira num restaurante de Tiradentes, MG. Ela que inaugurou nossa modalidade de entrevista no quintal. Já que, por conta da pandemia, seria imprudente ficar na sala de visita ou na cozinha. Numa mesa na área de serviço, sentamos distanciadas para tomar um cafezinho e comer tareco (claro), que ela trouxe numa lata de alumínio enorme.
Enquanto a tardinha caia e as garças faziam um traço imaginário na Serra de São José com seu vôo, ela explicava que as quitandas geralmente tem uma mesma base: farinha de trigo, açúcar, uma gordura, pouquinho de ovo... dileit(*), fermento... “vai variando as quantidades mas um monte de receita tem essa mesma base. E muita açúcar!”, concluiu com um sorriso sapeca de quem está mais preocupada em ser feliz do que com calorias.

Em busca de causos de Tareco
Marina quis saber mais sobre sua quitanda preferida. Deu uma lata para uma tia levar para a avó materna em Juiz de Fora depois de um encontro familiar em Conselheiro Lafaiete e ficou sabendo mais dos causos envolvendo o biscoito.
A tia materna comia muito tareco na infância em Capela Nova, a 67km de Conselheiro Lafaiete. Lá, a matriarca da família, já no final da vida, comandava a casa da cama. Pedia para levar as latas de biscoitos caseiros para o quarto e ficava com o tareco, biscoito polvilho e outros tipos junto a ela.
“Aí a galera ia pra lá... Conversar, pedir benção... Às vezes era uma forma dela deixar todo mundo perto também, né? Pra comer tinha que ir pro quarto da Dindinha”, revela a alcunha da bisavó que, na verdade, não deixava ninguém chama-la de vovó.

Da variação e riqueza de quitandas
O tareco era uma quitanda comum na roça e que, ao pesquisar, Marina não encontrou muitos registros. Nem tampouco o viu a venda em padarias de Tiradentes ou Juiz de Fora. Às vezes encontra o biscoito na mesma forma da rosquinha que é enformada com um trançado e é até parecida no sabor. Mas no formato mais retangular (ver foto abaixo), “de travesseirinho”, Marina não viu. E o jeito que enforma é importante. “Muda o gosto um pouco, muda a consistência...”.
(No fim, concluímos que a riqueza das quitandas é a variação cultural na forma de fazer e nomear. Talvez mais do que nos ingredientes das receitas. Felipe, o amigo que divide a casa com Marina e é maranhense escutou o bate papo e acrescentou bons exemplos que nos levaram a esta hipótese. Por exemplo, biscoito polvilho na sua terra chama peta).
“Quando a gente vai entrar no meio profissional da gastronomia, um biscoito seco desses não é valorizado, né? Tanto que eu já escutei muitas pessoas falando... Ah, é legal a cozinha afetiva. Eu fico emocionado quando eu como, sei lá... batata gratinada da minha mãe. Mas a minha mãe faz errado”, diz Marina ao lembrar uma entrevista do chef Ferrán Adria e solta uma gargalhada de quem costuma profanar a santidade da rigidez das receitas também seguindo a tradição subversiva das cozinheiras tradicionais.
“o afeto faz esse outro percurso, toca a gente e ao mesmo tempo a gente tá trabalhando com uma série de outras relações". Marina Barbosa
O sentido da cozinha
Para ela a construção do paladar é um ato político. É importante saber o que se come, mas não como quem procura respostas numa bula. Trata-se de reviver a iguaria de uma ancestral vaidosa, por exemplo, que ela nem conheceu e atraía a atenção e respeito dos familiares com quitandas guardadas em latas no seu quarto.
“Quando a gente faz um caminho pela comida para chegar na nossa ancestralidade, quando a gente vai caminhando pelas histórias da família, a gente vai se interessando, o afeto faz esse outro percurso, toca a gente e, ao mesmo tempo, a gente tá trabalhando com uma série de outras relações”, revela sem cerimônias sua intenção.
O bolo húngaro.

E é esse tipo de relação que Marina traz para cozinha. Uma espécie de integridade que se revela no sabor de tudo o que ela cozinha. Sua trajetória profissional tem a ver com o seu posicionamento. Começou um pouco tarde, embora ela sempre acompanhou desde criança a mãe na realização das receitas. “Porque lá em casa somos todos muito doceiros”, revela.
Ela fazia mestrado de Ciências Sociais em Juiz de Fora e tinha uma turma de amigos em casa. A mãe de Marina serviu bolo húngaro para a turma naquele dia, uma receita muito adorada e já conhecida das festas de família. Trata-se de uma massa de pão doce que dona Wal resolveu incrementar de forma brilhante com doce de leite.
“A forma foi passando na rodinha igual baseado”, contou com gargalhadas a confeiteira. É que a iguaria dispensa faca. A pessoa vai tirando espécies de gomos recheados de doce de leite, como se vários minicupcakes formassem um bolo grande. “Cada hora um ia lá e tirava uma bolinha”. Ela narra e rimos muito, feito bruxas, porque o doce é mesmo como uma espécie de feitiço. E eu já provei...
Marina também foi atrás de histórias da receita do bolo com formato de flor. “Parece que na Hungria tem uns pãezinhos doces cobertos de açúcar e canela em formato de mola que você vai comendo... Comida de rua. Tem muita doçaria dessa região com muitas especiarias”, explica e diz que no original o bolo húngaro é um pão de celebração com forte influência árabe. Agora, com toque mineiro também, né?
O fato é que os amigos ficaram enlouquecidos. Foram até a casa da avó dela atrás de mais bolo, pegaram outro inteirinho sem cerimônia na casa da família e alguém lhe aconselhou como quem avisa de uma missão: “você tem que fazer pra vender”.
A partir daquele momento, ela começou a atender encomendas, participou de feiras, empenhou projetos, a renda com bolos ultrapassou a de professora e Marina chegou a abrir uma lanchonete, a Maricota, até decidir vir para Tiradentes trabalhar num restaurante.
A fermentação natural
A confeiteira nos revela que no restaurante também cozinha entradas. Contudo, o que ela gosta é de mexer com massas e doces. Mais pela questão estética mesmo. Possui certa facilidade em visualizar uma receita de doce pronto. Embora também goste demais de empratar suas entradas.
Autodidata, quando resolveu fazer o curso de gastronomia já levava a cozinha muito a sério há algum tempo. Ela resolveu não terminar, inclusive. Pois o ensinado na academia estava indo por caminhos que não tinham muito a ver com ela.
“Você vai colocar um jeito certo e um jeito errado de produzir comida. E um jeito certo é um jeito tecnicista. É muito mais um jeito que não contempla milhões de milhões de outras coisas. Geralmente, vai cair na gentrificação da comida, da cidade e...”, critica ela sem dar continuidade a um pensamento profundo e abrangente que sabe que não caberia na entrevista. Então ri, com mistério e molecagem agora.
Mas começa a rir como quem tem um trunfo nas mãos e a promessa que parece ter feito para si mesma: a de contribuir para a sua comunidade. Ela gosta dos processos. Não segue a risca da cozinha macrobiótica, ou cozinha viva, ou vegetariana, ou seja lá qualquer denominação dessas alternativas, ao mesmo tempo que flerta com todas.
“Por exemplo, o pão de fermentação natural que eu faço pra vender... Eu gosto dos processos mais realistas. O fermento biológico simula uma fermentação... Uma fermentação lenta, em etapas, uma cultura viva e real que aconteceu espontaneamente que vão dar um sabor muito específico”. Explicou.
Essa é tão somente uma receita que resume tudo que Marina é: a de uma pessoa que foi se formando naturalmente, buscando elementos de sua realidade, de forma lenta, sem apelos mercadológicos e que se constituiu numa célula cultural bem realista de beleza, sabores e aromas.
(*É o mineirês)







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