Pão de Banana Verde e outros saberes.
- Daniela Mendes
- 4 de out.
- 6 min de leitura
Entre a história oral, o conhecimento ancestral e a inovação, uma receita para Neide Rigo é também convite para repensar o que chamamos de comida e cultura.

Convidada pelo Núcleo de Pesquisa Sobre Alimentos e Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, o SAL UFMG, a nutricionista Neide Rigo esteve em Tiradentes na celebração dos dez anos do grupo na cidade. Além de festivo, o evento no primeiro dia do mês de outubro foi também uma oportunidade de mergulhar em reflexões sobre a comida, a terra e os vínculos culturais e poéticos que criamos em torno da alimentação.
No palco do Teatro de Bonecos da Companhia de Inventos, Neide começou contando sua história, marcada pela vivência na zona rural. Disse que, ainda menina, ao visitar o sítio dos avós, assim que chegava não corria para dentro da casa, mas para o quintal. Queria primeiro saber quais ervas haviam brotado e procurar os frutos ofertados pelo campo.
Esse gesto simples, repetido tantas vezes, foi o início de uma curiosidade que a acompanharia por toda a vida e a conduziria mais tarde à escrita e à pesquisa sobre alimentos pouco conhecidos. Aqueles que quase ninguém vê, mas que sustentam tradições inteiras.

Hoje, reconhecida como uma das principais vozes no pensamento da comida vegetal, Neide se tornou também uma das maiores divulgadoras das Plantas Alimentícias Não Convencionais, as PANCs. O nome foi dado pelo botânico Valdely Kinupp e pela nutricionista Irany Arteche para plantas resistentes, que brotam em quintais, hortas e vias públicas, sem depender de cuidados sofisticados, sobrevivendo à estiagem e às variações do clima.
Se para alguns estas plantas são apenas matinhos, para estudiosos são o alimento de futuro. Neide lembrou que, enquanto 90% da alimentação mundial se apoia em apenas 20 espécies, o mundo já catalogou cerca de 35 mil plantas comestíveis. E o Brasil, sozinho, abriga 10% dessa imensa biodiversidade.
Para ela, as PANCs não são apenas a promessa de um cardápio mais variado e saudável, mas um recurso estratégico para enfrentar as mudanças climáticas. É por isso que insiste em vê-las incluídas nas hortas urbanas, nas cozinhas comunitárias e até nas merendas escolares.
Ela também compartilhou experiências de suas viagens às comunidades originárias pelo Brasil. Ali, testemunhou a perda de variedades tradicionais, como o cará e a mandioca, pressionadas pelo desmatamento, pela monocultura, pelas alterações do clima e até por ataques de animais.
Falou de como instrumentos antigos, usados na produção de farinha, se perdem junto com o costume. Mas mostrou também o lado da reinvenção: a banana verde, o jatobá e o cajuzinho virando pães e biscoitos, adaptados ao cotidiano das aldeias.
Para ela, preservar a biodiversidade é preservar também a cultura, porque a comida não é só nutrição, é também gesto, ritual e memória. Quando uma planta desaparece, leva consigo um modo de preparo, uma palavra, uma história de família.
Ao longo da conversa, Neide reforçou que o futuro da alimentação depende dessa recuperação do fio que liga cultura, território e biodiversidade.
No dia seguinte, ao sair pelas ruas de Tiradentes com os participantes de sua oficina, mostrou que a abundância está mais perto do que se imagina. Nas frestas das calçadas, nas praças e nos quintais crescem temperos e vegetais que muitos ignoram, mas que fazem parte da nossa herança alimentar. A cada parada, ela revelava um cheiro, um uso, uma lembrança, um tempero.
Para a Revista Mana, Neide deixou como presente uma receita de Pão de Banana Verde e a inspiração para pensarmos a mesa como espaço de diversidade, saúde e também de afetos.
Revista Mana: Queria saber um pouco da sua relação pessoal com o alimento. Como começou seu interesse?
Neide Rigo: Eu venho de uma família de agricultores, mas fui criada na cidade grande. Meus pais tiveram cinco filhos em São Paulo e depois voltaram para a roça. A gente ficou aqui, mas com alma caipira. Passávamos as férias no sítio dos meus avós. Desde muito nova eu me interessava por plantas comestíveis. Chegava correndo para a roça, para ver os matinhos que nasciam e aprender com meu pai, minha avó, minha mãe.
Na periferia de São Paulo, onde cresci, havia muitos migrantes de várias partes do Brasil. Eu sempre ia às cozinhas das vizinhas para ver o que elas traziam de suas terras: farinhas, castanha de caju, feijão-de-corda, rapadura, manteiga de garrafa. Sempre fui muito curiosa sobre o que havia para comer, de onde vinha, como era preparado. Começou assim, e depois só aumentou.
Revista Mana: E como foi esse pulo do interesse pessoal para se tornar uma referência na culinária?

Neide Rigo: Eu comecei estudando Jornalismo, porque gostava de escrever. Depois fui para Artes Plásticas, porque também gostava de desenhar. Mas percebi que nenhuma dessas áreas seria minha profissão. O interesse pela comida estava sempre ali, latente. Pensei: “Do que eu gosto? Gosto de saber sobre alimentos, de cozinhar”. A área mais próxima era nutrição, então fui fazer o curso.
Mesmo na faculdade, meu interesse era pela cozinha experimental. Depois, comecei a escrever para a Revista Caras sobre ingredientes, não receitas. Fiz isso por 20 anos. Foi uma grande escola: toda semana eu pesquisava, escrevia, organizava um arquivo para mim mesma. Mas chegou uma hora em que percebi que queria escrever sobre comida comum, sobre plantas que não estavam no mercado, como a serralha, por exemplo. Esse tipo de assunto não cabia numa revista mais elitizada.
Então criei um blog, onde eu mesma era a editora. Ali podia escrever sobre o que quisesse. Foi a partir do blog Come-se que conheci pessoas, fui convidada para escrever no caderno Paladar, participei do Slow Food, e depois chegou o Instagram. Hoje o blog é mais um arquivo, mas no Instagram compartilho meu olhar sobre a comida, viagens, oficinas e meu dia a dia.
Revista Mana: Você falou sobre vizinhos... No mundo cada vez mais individualista, queria que comentasse essa importância que você dá à comunidade.
Neide Rigo: Para mim, viver na cidade só faz sentido com comunidade. Onde quer que eu esteja, o entorno é fundamental. É o que me faz sentir presente, conformada e feliz até em São Paulo, que muitas vezes não é uma cidade gentil. Procuro colaborar para que meu entorno seja feito de boas relações. Quando há casas para alugar, divulgo tentando trazer boas pessoas. Busco estar presente. Não é fácil, mas mesmo que sejam poucos vizinhos, são relações potentes.
Revista Mana: Você também fala sobre “mistura”. Muita gente não usa mais esse termo. Explica para quem não conhece o que é a “mistura” e qual a sua preferida?
Neide Rigo: Tenho orgulho desses termos caipiras, como “mistura” e “janta”. Tem gente que corrige, fala que é jantar... Mistura é basicamente o que hoje chamam de “proteína”. Na minha casa, podia ser carne, ovo, verdura refogada. Fizemos oficinas sobre isso e vimos que varia de região para região, mas todo mundo entende. É parte da nossa cultura alimentar.
Nossa comida não é “entrada, prato principal e sobremesa” como na tradição europeia. É arroz, feijão, mistura, refogado, salada. Essa é a base. Quanto à mistura preferida, não tenho uma só. Cada semana me apaixono por algo diferente, depende das influências e das viagens.

Revista Mana: Muita gente tem curiosidade sobre PANCs. O que são e como reconhecer? A gente sai e vai provando as plantinhas?
Neide Rigo: PANC é a sigla para Plantas Alimentícias Não Convencionais. São plantas que não estão no mercado formal, mas nos quintais, em comunidades tradicionais, indígenas, quilombolas, caiçaras. Muitas vezes foram consumidas pelos nossos avós ou vieram de fora e ainda não têm cultivo comercial.
Não dá para olhar uma planta e saber se é comestível. A gente aprende pela cultura, pelo repertório formado em família, com vizinhos, em livros e feiras. Livros como os de Kinupp ou Guilherme Ranieri ajudam muito. Mas o principal é estar exposto a essas plantas, frequentar feiras e conversar com quem cultiva. Se há dúvida, o cuidado é não comer.
Revista Mana: Você acha que estamos resgatando hábitos mais saudáveis em detrimento dos ultraprocessados?
Neide Rigo: É um trabalho de formiguinha. Os ultraprocessados têm campanhas de marketing muito fortes. Parecem práticos, mas custam caro no fim, em termos de saúde: aumentam doenças crônicas como diabetes, hipertensão, câncer. Felizmente, há uma narrativa forte hoje em defesa da alimentação saudável. Acredito que pode melhorar, mas precisa de políticas públicas: regular alimentos processados para crianças, incentivar frutas e hortaliças, e começar pelas escolas.
Revista Mana: Pensando em Tiradentes, que não tem feira agrícola, que alternativas existem?
Neide Rigo: Uma feira de trocas de mudas e sementes é um bom começo. Atrai quem se interessa, estimula o plantio e gera excedente que pode virar feira. Não precisa ser na rua: pode ser em salão paroquial, espaços comunitários. Já vi muitas iniciativas assim pelo Brasil.
Revista Mana: Muitas hortas urbanas não dão certo. O que é preciso mudar?
Neide Rigo: O problema é não pensar horta apenas como espaço de alface, tomate, brócolis. Isso demanda muito tempo e água. Uma horta de PANCs é diferente: espécies resilientes, perenes, que exigem pouco cuidado. Tenho uma horta comunitária em São Paulo há 10 anos, sem torneira, que sobrevive ao inverno seco. Lá temos manjericão, urucum, baunilha, pitanga, chaya, moringa, entre outras. São espécies que resistem bem na cidade.
Revista Mana: E a iniciativa privada? Como restaurantes podem ajudar?
Neide Rigo: Restaurantes poderiam ter hortas próprias e incluir esses alimentos no cardápio. Também podem apoiar cozinhas comunitárias. Cito o festival de Igarapé, em Minas, que reúne mestras cozinheiras com receitas ancestrais. Isso aproxima a comunidade, valoriza ingredientes e tradições. Acho que iniciativas assim são muito importantes.

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