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Sem mulher não há agroecologia

  • Foto do escritor: Daniela Mendes
    Daniela Mendes
  • 5 de ago. de 2020
  • 6 min de leitura

Atualizado: 11 de ago. de 2020

A educadora popular Conceição Maria da Costa, a Tutuca, nos deu um panorama da agricultura e do ativismo em favor da alimentação de qualidade na região.

Perfil Tutuca/ São João del rei
Foto de Natália Chagas/Coletivo Estria

Costumamos nos identificar com a roça. Talvez porque, não raras vezes, carros disputam espaço nas ruas com charretes e bois fujões. Teve um ano que uma vaca até ficou presa dentro de uma agência bancária. Não me peçam para explicar. A gente convive bem com certos absurdos.


Mas só com alguns. Outros são difíceis de aceitar. Como, por exemplo, o de viver com medo que a fome chegue de forma avassaladora nesta região do Campo das Vertentes, em Minas Gerais. Esta que já é realidade para alguns, se constitui um absurdo se considerarmos o fato de estarmos tão próximos do setor agrícola, responsável pela alimentação. Setor este que, mesmo numa época com a economia estagnada pela pandemia de Sars-Cov-19, recheiam noticiários com índices otimistas.

Dispensei o discurso acadêmico para refletir sobre esse desequilíbrio e a qualidade da nossa alimentação. As análises econômicas com seus gráficos cheios de arte estão longe da nossa realidade. Precisamos mesmo é de um bom papo com alguém que conhece a vida no campo. Além de boas histórias, ali, quem sabe, estejam as respostas para nossas inquietações.


Vidro frio de celular na bochecha


“Bom dia” e desculpas por ter se atrasado para hora combinada ao telefone foram as primeiras falas de Tutuca... Era a filha que trabalha na Austrália o motivo. Nada chique, ela ponderou minha brincadeira. Apenas uma trabalhadora do outro lado do mundo precisando do amor de mãe. Explicou com sua voz feminina e timbre que carrega 62 anos alegres e conscientes do seu papel neste planeta.

Mãe de cinco mulheres, Conceição Maria Costa Souza, a Tutuca tem como princípios básicos na sua missão a igualdade e a dignidade, já revelada na primeira pergunta. Começou a semeá-los como ativista, nos anos 1990, dos movimentos populares da Ação da Cidadania, do sociólogo Herbert de Souza, o Betinho.


"Cada um alimenta o que está na sua alma". Tutuca

São traços que ela atribui naturalidade. "Eu não sei nesse universo qual a minha classificação. Eu sou uma mulher e penso que todos os seres humanos, homens e mulheres, nesse mundo tem uma missão de trabalhar a igualdade e a oportunizar as pessoas no mundo, na qualidade de vida, no direito humano a alimentação”, revela e pauta: “Cada um alimenta o que está na sua alma”.


Tutuca tem o mana de que essa revista fala: “Eu acredito muito no desenvolvimento territorial. O território onde você mora é o lugar onde você atua. Onde você está, você tem que incentivar o bem viver. E eu tento fazer isso, junto com a mulherada, é claro”.


Em casa e no espaço público.


No distrito do Rio das Mortes, de 2.746 habitantes e há 11km de São João del Rei, Tutuca fez a opção de morar há alguns anos. A barbacenense adiciona o coração a uma frase de Frei Beto para explicar a escolha: “Sua cabeça e seu coração está onde seus pés estão”.


O objetivo dela era entender a realidade do povo da roça e por isso se mudou pra lá.

Em sua casa, Tutuca produz algumas hortaliças no quintal, faz pão e participa do coletivo Meninas de nhá, que resgata a culinária artesanal, com receitas dos ancestrais da região. Ela já trabalhava com essa ideia em Barbacena (a 58km dali). “São biscoitos e quitandas que no mercado não tem”, ressalta a exclusividade dos produtos, os quais a produção ela define como rústica e afetuosa.


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Para Tutuca, as mulheres tem mais facilidade em aderir a políticas responsáveis de cuidado com a terra. Ela atribui essa vantagem a intuição e sensibilidade de perceber que a agricultura vai além do lucro. “Eu entendo pouco de economia, mas é a percepção do olhar, do território e da convivência com as mulheres que vão mostrando isso pra gente”, aponta.


Por isso, define uma premissa política muito simples: “sem mulher não há agroecologia” e diz que isso é um grito de guerra. “A mulher puxa tudo”, segundo ela. O trabalho doméstico, o cuidado com a família, o serviço na propriedade, a reunião na igreja, a organização dos grupos, enfim. “São as cuidadoras. Cuidam dos homens, da família e da terra de uma maneira harmoniosa”.


Ela lembra das mulheres que tocam suas propriedades hoje. “E quando não estão a frente, estão ao lado”, afirma e atesta com crítica de tons feministas “não há heroísmo não. Há sobrecarga de trabalho”.


Muito além do quintal.


As atividades de Tutuca são muitas e por elas a gente tem uma ideia das atividades que contemplam a agroecologia na mesorregião. Ela é conselheira representante do Campo das Vertentes no Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e participa do projeto de extensão da Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ) Diálogos dos Saberes.

De quinze em quinze dias, o projeto também distribui alimentos para os catadores de lixo da Associação de Catadores de Lixo (Ascas) em São João del Rei. Os produtos vêm da Associação da Agricultura Familiar e Agroecologia (AAFAS) da mesma cidade, onde ela também é associada e atua no projeto chamado Cestas Programadas. Neste, através de um aplicativo, as pessoas compram os produtos sem veneno e de quitandas artesanais, que recebem em casa.

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"Eu sou uma mulher e penso que todos os seres humanos, homens e mulheres, nesse mundo tem uma missão de trabalhar a igualdade e a oportunizar as pessoas no mundo, na qualidade de vida, no direito humano a alimentação". Tutuca

A Agroecologia é uma construção que não vem de ontem na mesorregião do Campo das Vertentes. Por isso, Tutuca faz uma análise positiva do avanço das ações. Além das atividades citadas, ela lembra a Rede Trem Natural comprometida com a transformação do sistema agroalimentar em Barbacena. “Este grupo vem trabalhando na certificação de alimentos, promove vários cursos, intercâmbios nas propriedades levando técnicos agrônomos para conversar com agricultores os modelos de plantio que não agridem o solo”, enumera. Contudo, embora cite tantos projetos, aponta para a falta de incentivo por parte do Estado, que considera pouco.


Não existe pragas, mas desafios.


Quem não entende nada de agroecologia, pode com Tutuca ver o princípio básico através de uma fala simples dela: "não existem pragas, mas insetos que devem ser controlados". Outro exemplo ilustrativo é a alternativa do gado ser tratado por homeopatia. Apenas duas, entre tantas ações e modo de ver a produção rural, que contribuem para uma vida melhor. “A Agroecologia só traz benefícios. Tanto para quem produz quanto para quem consome, além do bem para o meio ambiente. Uma política universal nesse sentido traria segurança a todos”, afirma.


Algumas semanas antes dessa conversa, os jornais locais trouxeram notícias otimistas. Apesar da pandemia e da crise econômica que vem como consequência, o setor agrário estaria crescendo e gerando mais empregos, segundo dados do Cadastro Geral de Empregos (Caged), divulgados pelo Ministério da Economia.


O fato, para leigos como eu, apontaria para um crescimento de oportunidades no campo. E esta foi a pergunta que fiz, se não era hora das pessoas começarem a fazer o caminho contrário do registrado pela história brasileira, da cidade para o campo.


“A Agroecologia só traz benefícios. Tanto para quem produz quanto para quem consome, além do bem para o meio ambiente. Uma política universal nesse sentido traria segurança a todos”. Tutuca

Afinal, em 7 de julho, dia do produtor rural mineiro, comemorava-se também o fato de Minas Gerais ter 607,5 mil estabelecimentos agropecuários, quase 12% do total do país. O que significaria mais de 1,8 milhão de cidadãos ocupados numa época em que o desemprego avança sobre a realidade e ameaça a todos nós.


Mas para uma pessoa como Tutuca há tanto tempo no ativismo, manchetes assim não enchem tanto os olhos. “Uma pessoa que hoje faça a opção de viver da terra, ela tem que ter terra, ela tem que ter água, ela tem que ter assistência técnica”, lista mostrando as lacunas da questão agrária no país e, de forma cautelosa, conclui que a zona rural ainda não pode ser uma alternativa para todas as pessoas.


Na realidade, Tutuca nos revela que, ao contrário, já está havendo um desespero por parte dos trabalhadores rurais de Barbacena, por exemplo. A produção na região é enorme, ela conhece de perto e aponta grande perda de alimentos. As iniciativas de sucesso, nesse caso, são isoladas. E o problema não está na produção, mas no comércio. “Não há uma política no momento que melhore a comercialização. O que há hoje é a agricultura familiar mais empobrecida. Se há dados de expansão não é para agricultura familiar, isso é pro agronegócio, pros grandes produtores”, analisa.


“Uma pessoa que hoje faça a opção de viver da terra, ela tem que ter terra, ela tem que ter água, ela tem que ter assistência técnica”. Tutuca

Enquanto o presidente do Sindicato Rural de Barbacena, que representa os produtores de dez municípios da região, Renato Laguardia, disse que “as pessoas estão comendo mais na pandemia”, Tutuca percebe o empobrecimento dos trabalhadores e a dificuldade de adquirir alimentos. “Auxilio emergencial não cobre trabalho formal com resultado lá na frente. Não vejo que os agricultores estão numa boa situação até agora”, lamenta.

Talvez o grande diferencial do olhar feminino de que ela fala seja este mesmo. Não se conformar com a fome de ninguém, pensar no futuro, lutar para que todos e todas tenham o retorno exato do que produz e um mercado acessível aos trabalhadores. Um equilíbrio que devemos buscar nos modos com a natureza e também na vida social, não é mesmo?



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