top of page
Logo da criadora Daniela Mendes

A voz que fica depois do mandato

Atualizado: 25 de jun.

Lívia rompeu barreiras, enfrentou o machismo institucional e sua trajetória traz a certeza de que todas nós ainda temos muito a conquistar.

Lívia nas ruas de sua cidade natal, São João del-Rei/Arquivo Lívia Guimarães
Lívia nas ruas de sua cidade natal, São João del-Rei/Arquivo Lívia Guimarães

Existem histórias que não cabem só na biografia de quem as vive. Elas atravessam gerações, abrem caminho para outras e deixam marcas nas cidades onde acontecem. Isso é visível na trajetória da jornalista e ex-vereadora Lívia Guimarães. E aí é quando a gente entra em cena, não para vender notícias, mas para repartir e testemunhar um tempo.


Filha de uma professora da rede estadual e de um pequeno empreendedor, Lívia cresceu rodeada pela força do trabalho. “Minha família passava bastante aperto. Eram quatro filhos, um empreendedor e uma professora”, relembra. Mas quando eu peço para ela falar dessa infância, as imagens estão partidas, como peças perdidas de um quebra cabeça.


Tem uma menina que acompanhava o pai nas reuniões do Partido dos Trabalhadores (PT), absorvendo, sem compreender totalmente, os códigos da militância. Depois tem uma mulher na mesa de uma lanchonete que admite que o sabido é o que lhe contaram, não lembranças. E tem também uma testemunha que vale por muitas.


“Eu lembro da Lívia pequenininha fazendo campanha para minha candidatura a deputado. Ela ia junto comigo e o Pedrinho. Naquela época, a gente só panfletava e conversava com as pessoas. E a Lívia ia atrás... Depois, ela fez parte do Parlamento Jovem, foi pra Brasília representar Minas Gerais... Ela aprendeu muito comigo e por isso eu digo que ela é minha filha política”, recorda, cheio de carinho, o ex-deputado e vereador Antônio Fuzzato.

Na verdade, essa coisa de esquecimento é como se ela não se enxergasse em outro lugar ou de outra forma além das trincheiras políticas. Até nas poucas lembranças da infância ela está no PT, sempre participando de alguma campanha.


E mesmo hoje, depois de ter saído da câmara de vereadores, trabalha como assessora da deputada estadual Beatriz Cerqueira, debatendo pautas como a da municipalização das escolas. Também está se dedicando a um novo projeto: formar, orientar e apoiar mandatos progressistas. Além de, pela primeira vez na vida, estar ‘malhando’. “Descobri que precisava cuidar de mim também”, confessa.


Jornalista e presidente da República


O movimento estudantil agitava São João del-Rei no final dos anos 1990 e início dos anos 2000. E Lívia é testemunha e fruto desse período. “A política sempre foi uma coisa natural na minha casa. E aí, com 12, 13 anos, eu comecei a participar da UMES. Era na época do Cristiano (deputado estadual Cristiano Silveira), inclusive. Esse pessoal do PT assim... Léo, irmão dele, Ricardo, Renatinha, Camila... A gente fazia encontro municipal dos estudantes, passava nas salas, tirava representante de cada turma, fazia o congresso municipal dos estudantes, elegia a direção da UMES, que naquela época era uma potência”, relembra.


Tudo era tão natural que ela nem sabe ao certo por que estava sempre metida ora como líder de turma, ora como diretora de comunicação da UMES e, ainda, ora como a adolescente que bate na porta da prefeitura para entrevistar o então Nivaldo Andrade.


É exatamente nesse ponto que a memória incerta da infância dá lugar a uma narrativa sólida, que costura sua história à da própria cidade. “Tanto é que, uma vez, quando eu estudava no João dos Santos, na quarta ou quinta série por aí, a professora perguntou o que cada um queria ser. E aí eu falei que eu queria ser jornalista ou presidente do Brasil”, conta rindo.


Aos dezoito anos, participou do Parlamento Jovem Federal, programa da Câmara dos Deputados voltado a estudantes do ensino médio de todo o país. Ali, os estudantes aprendiam sobre política, democracia e o funcionamento do Poder Legislativo, desenvolvendo habilidades políticas para usar em em suas comunidades.


Ao retornar, depois de trocar experiências com outros jovens de diferentes regiões do país, Lívia quis pôr em prática no bairro Tijuco o que aprendeu. Assim nasceu a ONG Atuação.


A pequena parlamentar reuniu vizinhos e amigos para construir um espaço voltado à educação. O forte era um curso pré-vestibular gratuito entre outras atividades. A iniciativa existiu por 17 anos, até encerrar suas atividades durante a pandemia de Covid-19. Sua voz tremeu ao conter o choro e relatar o fim da ONG.


Para quem viveu uma época tão rica em solidariedade e mobilização social, hoje ela vê um desafio político evidente: “Os jovens hoje estão mais conectados, mais próximos online, mas presencialmente não participam tanto. Porque é muito mais cômodo você ficar na sua casa, né? E a gente ainda não sabe mexer com os outros, principalmente à esquerda. A gente ainda não conseguiu dialogar assim tão fortemente nas redes”.


Mulher na política


Lívia foi eleita a primeira vez com 25 anos e agora é uma mulher feita que se formou em três mandatos no legislativo. Se antes entrou falando para um grupo, saiu, agora, com 37 anos, comprometida com toda a população, inclusive mães, com as quais se identifica muito. Isso lhe deu uma experiência prática que permite uma leitura amadurecida das diferentes nuances dos preconceitos contra mulheres na política.


As mulheres – vou colocar bem entre aspas, ganham o direito de participar da política depois que elas fizeram tudo que a sociedade esperava delas. Então, já trabalharam? Foram mães? Têm uma profissão? São aposentadas? Agora pode...”. Disse simulando como deve se passar no pensamento conservador a visão de uma “vereadora ideal”. E pontua: “Nenhuma mulher antes ou depois de mim foi eleita até 29 anos. Mulher, não”.


De fato! Buscamos conferir e não encontramos nenhum nome. As poucas mulheres que costumam ingressar na Câmara de Vereadores de São João del-Rei tem uma média de 40 anos ou mais.


Mesmo assim, em 2008, sem pensar em idade ideal, com 21 anos Lívia já disputava uma cadeira na Câmara pela primeira vez. Perdeu. “Eu lembro direitinho das pessoas falando assim na minha primeira eleição: ‘Ah, essa menina aí não vai dar em nada não”, recorda achando engraçado e avalia que realmente não estava pronta na época.


No entanto, naquele ano, ares de mudança se insinuavam. Dos dez vereadores, cinco eram mulheres e Lívia quase entrou, ficando de suplente. “Aí, enquanto na campanha ficava ‘essa menina não vai dar em nada’, pós resultado começaram a falar assim: ‘Uai, na próxima ela ganha”, conta rindo.


As previsões se confirmaram e em 2012, a agora jornalista recém-formada sentou no plenário eleita a mais jovem parlamentar mulher na história de São João del-Rei, ao lado das veteranas Jânia Costa e Vera do Polivalente.


Eu vejo hoje que, embora as mulheres participem mais, eu acho que em São João del-Rei, elas tiveram retrocesso no número de representantes”, preocupa-se e traz outro fator a ser observado. Afinal, Lívia considera muito além da questão de ser ou não uma mulher. “Claro que a gente tem que se pautar também na qualidade dessas representações. Por quê? Porque uma mulher que é eleita e fala que não tem a pauta da mulher como como bandeira, não é uma mulher que representa. E isso é muito comum”.


A pauta principal e a cadeira vazia

ree

Curiosamente, em 2016, em pleno golpe contra a presidente eleita Dilma Rousseff, Lívia quase não se reelege. Entrou pelo coeficiente eleitoral um mês depois do pleito, quando os votos dos seus correligionários foram validados. E se não fosse assim, naquele ano, a Câmara ficaria só com homens brancos e mais velhos à imagem do governo federal.


Quando quase um mês depois valida os votos e oficializa a minha entrada, eu entro de uma forma muito simbólica também, porque fala: ‘pelo menos uma mulher’. E aí foi um mandato que eu lutei muito. Eu era sozinha ali. Mas foi um mandato importante, porque foi onde eu me obriguei a ter a mulher como pauta principal”, explica.


Ainda está viva na memória das pessoas as cenas dos embates parlamentares daquela época. A situação ficou mais crítica quando Lívia engravidou. Não havia previsão legal para licença-maternidade de vereadoras. “Aí ficaram sem saber como é que faria. Tanto é que eu tive direito a licença porque era meu direito. Mas não chamaram suplente como seria o ideal. Ficou a vaga na câmara com 12 vereadores por quatro meses”. Lívia lembrou que a equipe dela ficou lá sem poder apresentar suplente para legislar.


Isso significa que a própria Casa nunca havia se preocupado em garantir a presença feminina de fato. Afinal, onde não se consideram mães, inviabiliza-se a participação de todas as mulheres.


O vereador do União Brasil, Stefânio Pires, líder do governo na Casa, sem nem sugerir uma legislação específica para Lívia, em certa situação, ainda falou que a vereadora deveria ficar em casa, cuidando da família. A grosseria provocou indignação e Lívia começou a cobrar insistentemente uma regulamentação.


Hoje, qualquer vereadora na cidade tem direito a seis meses de licença-maternidade, com convocação do suplente. Mas uma violência não se apaga e como vemos todo dia ela se perpetua. “Eu me senti pessoalmente muito ofendida... Foi uma violência política de gênero gigante, mas que na época não tinha esse nome”. Ou seja, Lívia teve também pioneirismos nem tão positivos assim.


Vencendo a violência política de gênero.


ree

Naquela época, quando Lívia passava por estas discriminações o termo “violência política de gênero” estava começando a ser usado e não tinha punição. “Eu lembro de em várias reuniões da Câmara eu ser interrompida e aí eu reclamar... Enquanto eles falavam: ‘Ah, é mimimi’. Mas nenhum outro vereador era interrompido. Comigo desligavam o microfone e começavam a falar”.


Por isso, teve que mudar sua postura. Por causa disso, começou a ser chamada de “brava”. Depois de um tempo, reagiu. Ao ser interrompida, usava um tom mais autoritário: “Quando um burro fala, o outro abaixa a orelha. Tá na minha vez”, se impunha. Mas mesmo assim, ser reconhecida dessa forma, era também machismo porque pressupõe uma certa anormalidade vinda de uma mulher a quem se espera ser sempre dócil e nunca reagir.


Por isso, das várias camadas de opressão, mesmo aprendendo a responder e, segundo ela, até aprendendo a falar palavrão, Lívia ressalta a importância de fazer terapia. Pois, agressões, mesmo que verbais, ferem e desestruturam qualquer pessoa. “Você precisa estar com a terapia em dia para não se sujeitar”, aconselha a todas as mulheres que sofrem qualquer violência.


Natural então que há 12 anos na vereança, atividade legislativa bem avaliada pela população e um terceiro mandato como a mais bem votada, Lívia resolvesse tentar ser a primeira mulher prefeita. O problema é que isso foi numa cidade com uma tradição política arraigada em valores de uma era pré-democrática. E aí os ataques subiram o tom com a ajuda da novidade política: as fake news. Lívia sofreu uma campanha difamatória muito pesada no processo.

ree

As fake news recaíram sobre o filho dela e, como a ex-vereadora mesma disse, só não foi pior por que ele ainda era muito pequeno para entender. Ela chora só de lembrar as mensagens pesadas que decorreram da mentira. Algumas desejando até a própria morte do filho ainda um bebê. Nesse ponto da conversa ela, inclusive, se emocionou e não teve mulher brava que embargasse o choro.


Instantes depois, recuperada da emoção, deixa bem claro: “Eles fazem isso porque não têm competência para debater a cidade. Então, é mais fácil ficar falando disso do que falar qual a verdadeira solução para o transporte, ou o que a mulher precisa na saúde. Todos que falaram que eu era abortista, não viram que eu era a única que tinha filho”, dispara.


No final da disputa, Lívia ficou em terceiro lugar, atrás de Jânia Costa (PRD). De novo venceu o tradicionalismo repaginado na pessoa de Aurélio Suez.


Mudanças: do plantão pediátrico à proibição de agressores


Mas embora a violência política seja uma realidade, Lívia gosta de lembrar que sempre é possível mudar. Esse é, segundo ela, o desejo que move sua vontade política.


Quando eu vejo no grupo de mães ou no grupo do WhatsApp alguém falando assim: Plantão pediátrico tá funcionando? Onde que é melhor ir? E aí eu olho e vejo que tem três! A gente brigou tanto que não tinha nenhum e agora tem três! Tem no hospital, tem na Santa Casa e tem de 12 horas na UPA. Eu falo: poxa, eu fiz a diferença. Sozinha? Obviamente que não”, avalia satisfeita e mostra que a vontade de muitas organizada fazem uma boa vereança.


Outras atuações importantes em saúde pública além da participação no projeto do plantão pediátrico, foi na área de saúde da mulher, como os mutirões de DIU e marcação centralizada de pré-natal. Nesse tempo, também esteve presente no fortalecimento dos movimentos femininos, como o das Doulas, que teve projeto seu.


E esse sentimento de poder fazer muito marca a satisfação com a carreira política, apesar de reconhecer o quanto esta carreira pode ser difícil.


Em 2022, Stefânio teve o mandato suspenso. A atuação do vereador, líder do governo, no cargo, e ainda mais como presidente da Câmara com uma atuação arcaica teve o fim antes do tempo. Em 2023, ele foi condenado com base na Lei Maria da Penha (Lei Federal 11.340/2006), sob acusação de agredir a esposa e a enteada, em 2013. Nesta data ele foi condenado em última instância. Na época, o presidente da Câmara, vereador José Augusto Silva Machado (PRTB), levou em consideração a decisão da 2ª Vara de Criminal e de Execuções Penais da Comarca de São João del Rei e, de acordo com o Regimento Interno, determinou a perda do mandato e a suspensão dos direitos políticos de Stefânio.


Lívia já havia emplacado a Lei Municipal 5.686/2020, que determina que pessoas condenadas pela Lei Maria da Penha não podem mais ser nomeadas para cargos comissionados na rede municipal de São João del-Rei. Eram os ventos da mudança chegando...


Uma e muitas.


Lívia e Ravi saindo da Câmara Municipal/Arquivo Lívia
Lívia e Ravi saindo da Câmara Municipal/Arquivo Lívia

Mas não se trata de contabilizar vitórias ou embalar lamentos. Não se trata de apenas emplacar um nome entre as casas parlamentares, ministérios e cadeiras do executivo.


Em tempos que o Congresso Nacional discute diminuir a cota mínima de 30% de candidaturas femininas para 20% das vagas nas casas legislativas reservadas para mulheres, Lívia lembra da importância de se pensar a mudança e não os valores que estão aí perpetuando desigualdades. Uma mulher, e também homens, deve ser eleita por uma causa que seja de todas as mulheres, nunca um projeto pessoal e de uma só. E o partido do candidato ou da candidata deve expressar essas ideias e não apenas uma formalidade.


Hoje, o Brasil ocupa a vergonhosa 133ª posição no ranking de mulheres na política, segundo a ONU Mulheres. Na lista de ministras, estamos na 53ª colocação, atrás até de países que enfrentam graves restrições democráticas, como Arábia Saudita e Somália.


De forma que cada vereadora, em cada cidadezinha deste país, lutando pela dignidade de mães e trabalhadoras de todo tipo, conta muito para mudarmos as diferenças de gênero impostas. Cada história como a de Lívia importa muito. E a gente espera que não se acabe por aqui.


Lívia aconselha para que todas se envolvam em movimentos sociais se quiserem trilhar o caminho da política. Para ela, é como se começa. Garante que quando a mulher tem uma causa junto com outras fica mais forte. “Porque aí você vai começar a ser reconhecida e a sua pauta vai te levar à câmara. Você fala de um jeito assim, com um desejo forte de mudança te levando até ali”,


ree

Comentários


Não é mais possível comentar esta publicação. Contate o proprietário do site para mais informações.
bottom of page