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As Lélias de um país chamado Cataguases

  • Foto do escritor: Daniela Mendes
    Daniela Mendes
  • 5 de ago. de 2020
  • 8 min de leitura

Atualizado: 9 de jun.

Do movimento “Ele Não”, brota um coletivo de oito feministas, oito Lélias, que vão lutar por uma vaga no legislativo municipal.

Seis das oito Lélias/Foto Tatiana Iaconis Pitcher

O que faz um grupo de mulheres acreditar que ir para as ruas de sua pequena cidade se refletirá na política nacional? A pergunta deve ficar martelando na cabeça do cético que viu a paixão daquele grupo reunido no paço municipal da cidade de Cataguases, de 75 mil habitantes na mesorregião da Zona da Mata Mineira durante as eleições presidenciais de 2018.


Elas gritaram, acima de tudo, “Ele Não” nas eleições presidenciais de 2018. Mães, professoras, profissionais liberais, trabalhadoras do comércio e fábrica enfim, faziam um apelo para que as pessoas não escolhessem Jair Messias Bolsonaro como representante máximo do Brasil.

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O machismo era o que vinha se sobressaindo ao horror pela figura do atual presidente. Algumas já se conheciam ou tinham alguma referência e afinidades. Começaram a comentar umas nas redes sociais de outras e acabaram se unindo pela indignação. Ir às ruas depois foi uma consequência natural.


Como tudo se deu pelas redes sociais, a assistente administrativa jurídica Stefany Carli lembra que elas não tinham noção da proporção do que nascia ali. “A estratégia era sair convidando todo mundo e conversar com lideranças para ajudar na mobilização. O foco era a questão da mulher e defesa da democracia”, recorda.


Na praça da santa das causas impossíveis.


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O dia marcado seguiu o calendário nacional das manifestações do “Ele Não” combinadas por todo país. O local seria na praça Santa Rita, onde também está a igreja matriz, de arquitetura modernista. O estilo, aliás, é para cidade o que barroco e o rococó representam para São João del Rei e Tiradentes, por exemplo. Soma-se ao cenário, o fato da padroeira da cidade ser considerada a santa das causas impossíveis, ironia lembrada por Carli.


É costume uma certa movimentação na praça nos fins de semana. E o clima era também de recreação. Já que a agenda contemplava as mães e, por tanto, havia eventos para criançada. De caráter suprapartidário, as camisas seguiam as cores do movimento nacional contra Jair Bolsonaro. E as pessoas se revezavam no microfone com palavras de ordem e apresentações culturais.


Mulheres de direita e esquerda se uniram. Mesmo as mais liberais, pois não seguiam a cartilha do “liberal na economia e conservador nos costumes”. “Algumas defendiam o voto nulo, mas a maioria era de esquerda”, contabiliza Carli. Havia um inimigo em comum a todas e elas o queriam longe da presidência.


O conservadorismo da política local


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Como nós sabemos, Jair Messias Bolsonaro, venceu as eleições no Brasil com 46,03% dos votos válidos. Mas se dependesse de Cataguases, hoje o candidato do Partido Trabalhista (PT) Fernando Haddad, seria presidente com 55, 5% votos contra 44, 95% do presidente eleito (resultado municipal).


Contudo, apesar do resultado progressista nas eleições presidenciais, a cidade possui hoje um quadro conservador nos cargos locais. Nas eleições em 2016, tanto executivo quanto legislativo ocuparam as cadeiras com políticos de partidos conservadores.


Cataguases é administrada por Willian Lobo de Almeida, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). Dos vereadores, apenas uma mulher faz parte da Casa, mesmo assim pelo Partido Republicano da Ordem Social (PROS). E do restante dos homens, apenas um é do Partido Comunista do Brasil (PCdoB).


Ninguém solta a mão de ninguém


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Mesmo com a vitória de Bolsonaro, as mulheres não saíram do grupo das redes sociais e continuaram a se apoiar e trocar informações sobre a política municipal e nacional. E no dia internacional da mulher, integraram novo movimento, desta vez alinhado com o internacional 8M.


(Se nosso cético imaginário, do início do texto, questionava a crença nas mulheres de mudar o Brasil a partir de um movimento local, imagina agora ele questionando a participação delas num movimento que é mundial).


Já o ceticismo delas era apenas no conservadorismo como resposta às necessidades das trabalhadoras. De novo se uniram na mesma praça Santa Rita. Agora, com uma posição ideológica mais estruturada.


Outras mulheres se juntaram a elas e também lideranças que não aderiram ao primeiro movimento somaram reinvindicações, como o Sindicato Único dos Trabalhadores da Educação de Minas Gerais (Sind-Ute).


Sem muita programação, o plano era ir em passeata até a outra praça central, a Rui Barbosa. E enquanto se aglomeravam, elas simplesmente tomavam a palavra no paço municipal e colocavam ali críticas ao governo e algumas ideias feministas.


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Chegando de um avião bombardeado


Assinado pelo arquiteto Edgar Guimarães do Vale, o santuário de Santa Rita em Cataguases tem a forma de um avião bombardeado, sem uma asa, ornado com o painel "A vida de Santa Rita", de Djanira. E era desta nave que as pessoas saíam da missa dominical no momento do ato. As manifestantes, ao perceberem o movimento, foram da prefeitura em direção aos fiéis de mãos dadas, mas sem saber ao certo o que fazer.


Carli lembra emocionada o momento em que elas resolveram abraçar o chafariz, que tem as dimensões de 20m x 8m aproximadamente. “Enquanto a gente ia falando, algumas mulheres que tavam saindo da missa se uniram a nós e pediram pra dar as mãos. Outras pessoas começaram a aplaudir o ato. Aquilo foi um momento pra gente assim... Que eu não consigo nem traduzir a receptividade de Cataguases”, relembra emocionada Carli.

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Ludmila Cesário, no entanto, numa live organizada pelo grupo, agora em julho, soube as palavras para aquele momento. “Sabe o que é pegar na mão de quem você não conhece? Mas foi pegar na mão e ter um conforto de estar com quem pensa como você”, disse de forma vibrante.


Otimista, Carli avaliou de forma positiva os eleitores de Cataguases. Para ela, quem votou em Bolsonaro em 2018, não teve coragem em momento algum de ir lá criticar. “Isso eu percebi: como a ficha das pessoas tem caído pra tudo de ruim que esse governo tem trazido ao país”.


A célula revolucionária


Desse otimismo surgiu a ideia de uma candidatura coletiva em 2020. “O movimento de rua é importante, mas a gente sabe que a gente só vai conseguir mudar as coisas quando pleitear espaços institucionais. Quando a gente tiver o poder de decisão”, afirma Carli.


Ainda se identificando como “as meninas do Ele Não”, as mulheres se organizaram preocupadas, agora, com a postura que os governos assumiram na pandemia do novo corona vírus.


Uma célula do movimento, de oito mulheres, alinhadas à esquerda, declaradamente feministas marxistas, se formou com o objetivo de ocupar uma vaga na câmara municipal de Cataguases através de um mandato coletivo. “Essa ideia surgiu no coração de todo mundo de forma simultânea”, revela Carli.


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O “casamento do coletivo”.


Como o sistema eleitoral brasileiro ainda não prevê mandatos coletivos, uma destas mulheres tiveram que legitimar a pré-candidatura com o nome, rosto e Cadastro de Pessoa Física (CPF). Stefany Carli foi a escolhida como esta pessoa pela sua articulação nas ruas. “Aí eu falei pra elas... Ceis tão ligadas que agora a gente tá casando, né? Porque se esse projeto nosso que tá começando agora der certo, a gente vai passar quase cinco anos das nossas vidas juntas”, brincou a assistente administrativa.


Contudo, ela falou muito sério ao descrever o contrato entre elas. Tanto a questão da disponibilidade e doação a que cada uma estava disposta, quanto a competência técnica das integrantes. O funcionamento do grupo depois de uma possível candidatura também foi pensado. Principalmente no processo de tomada de decisões e definição de pautas prioritárias.

“Eu acho que aprendo mais com Lélia Gonzales do que vocês poderiam aprender comigo”. Angela Davis

Para levar o projeto adiante, elas começaram um trabalho de base e entraram em contato com coletivos que já estão avançados nesse sentido. Também foi preciso uma reflexão para entender ações pautadas na legalidade e competências legislativas, ou seja, saber o que cabe a um vereador e como funciona sua atuação em relação ao partido.


“Política é assim. Às vezes você tem que ceder, tem que ser um pouco tolerante também com os outros candidatos que representam outros interesses”, explica Carli ao falar da importância em estar claro para o grupo, no entanto, o que será inegociável também. E em linhas gerais definiram que esse ponto seria definido pela luta pelos direitos das minorias, da causa feminista, pela justiça social com participação coletiva e popular.


O legado de Lélia Gonzalez


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Coletivo encaminhado, reuniões a todo vapor e trabalho de base definido, o grupo precisava de um nome agora. Foi quando alguém sugeriu a homenagem a Lélia Gonzalez. Começaram a pesquisar sobre a professora mineira antes de decidir e escolheram Lélias como nome do coletivo.


Gonzalez foi responsável por articular as lutas mais amplas da sociedade com a demanda específica dos negros e, em especial, das mulheres negras no país. Quando veio ao Brasil no ano passado para lançar sua autobiografia, Angela Davis disparou: "Eu me sinto estranha quando sinto que estou sendo escolhida para representar o feminismo negro. E por que aqui no Brasil vocês precisam buscar essa referência nos Estados Unidos? Eu acho que aprendo mais com Lélia Gonzales do que vocês poderiam aprender comigo".

“Nós criamos canais para que as pessoas possam conversar conosco e nos apresentarem suas ideias sobre as carências do nosso município”, Stefany Carli.

Toda representatividade que carrega a vida da pensadora brasileira aliada à identificação e reverência das mulheres de Cataguases fizeram com que se batesse o martelo quanto ao nome. Era o projeto de política de Lélia Gonzalez que elas queriam realizar.


“Ela não é lembrada, muitas vezes, nem na vida acadêmica, nem como ícone em geral. O que reflete o que aconteceu com as mulheres ao longo da história. Para nós, ela é um exemplo na luta pela justiça social, pela causa feminista e pela causa antirracista”, declara Carli.


A diferença feminina


Além do nome, que mantém viva a memória de Lélia Gonzalez, Carli diz que Lélia se trata de uma espécie de orquídea. O que poderia representar a logo, no que as pessoas identificariam como uma iniciativa feminina.

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Há também entre elas todo um cuidado que outras chapas candidatas não têm. Carli cita o horário das reuniões e tempo de duração que não contemplam as jornadas duplas e até triplas das mulheres com todos afazeres profissionais e domésticos. “Nem tampouco a preocupação em proporcionar participação pela internet das integrantes, que às vezes só tem aquele momento para ficar com seus filhos em casa”, completa.


Quando esta matéria terminou elas estavam pondo em prática os planos de definir a pauta da candidatura junto com parte da população interessada em mudanças. A estratégia foi fazer lives abertas a toda cidade onde debateriam assuntos demandados pelo grupo. Para tanto, fizeram um grupo pelo whatsapp em que qualquer um, homem ou mulher, poderia participar.


Paralelamente formaram o Nuas (Núcleo de Apoiadoras) para dar um apoio técnico na elaboração da campanha e projeto legislativo. O que engrossa as fileiras da campanha e cumpre o principal objetivo do coletivo de inovar a forma de se fazer política. “Nós criamos canais para que as pessoas possam conversar conosco e nos apresentar suas ideias sobre as carências do nosso município”, explica a pré-candidata Carli.


Ela cita ainda uma série de questões já levantadas pela população, mas ressalta mais a importância da transparência e acesso nas decisões. Como pré-candidata a vereadora, Stefany Carli tem plena consciência do seu papel legislador, se eleita, revela que vai propor outros mecanismos legais de participação popular, dando sequência às estratégias de comunicação que acontecem agora.


E ao final, o cético imaginário do início desta matéria pôde entender o que realmente envolve o movimento de organização e ocupação de ruas. Como estas mulheres mudarão o Brasil e o mundo, ele perguntou. E a resposta é: considerando Cataguases Brasil e mundo um correlativo de vida.

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