Meninas em jogo, histórias que voam.
- Daniela Mendes
- 3 de set.
- 9 min de leitura
O basquete feminino de Tiradentes faz história no JEMG, transforma vidas de jovens atletas na cidade e reflete como mulheres ocupam lugares antes exclusivos aos homens.

A prática de esportes na quadra da prefeitura no bairro Parque das Abelhas em Tiradentes já dá frutos há algum tempo. Mas, com a vitória do basquete feminino nos Jogos Escolares de Minas Gerais (JEMG), ela ganha reconhecimento e premia a todos que trabalham duro no projeto Jovens Olímpicos, criado em 2022. Em especial, as meninas.
É que a equipe feminina foi campeã no recém-incorporado 3×3, nova versão olímpica do basquete disputada em meia quadra. Sob comando do treinador Sávio Luiz da Silva Carvalho, as jovens falaram sobre o impacto do esporte em suas vidas. Elisa de Assis Veralopes, 15, Emanuela (Manu) Alves da Luz, 17, Júlia Damoia Coelho, 16, e Sofia Guimarães Castro, 15, ainda têm as emoções da competição vivas quando narram a vitória da competição que aconteceu há quase um mês.
“Em 2024, chegamos à final estadual pela primeira vez. Ficamos em segundo lugar. A sensação foi de quase: “Pô, foi quase...”. Mesmo assim, a alegria foi enorme. Estávamos entre os melhores times de Minas e, mesmo sem o título, eu pensei: “A gente já fez uma história muito grande em Tiradentes.”, começa Elisa.

Ela lembra da conquista capítulo por capítulo e tira lágrimas das companheiras que deram a entrevista junto a ela. “Depois veio o 3x3. Um garoto do basquete comentou na escola: “Aqui, no 3x3 vocês têm muita chance de ir para um brasileiro.” Na hora, a gente riu: “Ah, para, não é assim...” Mas foi. Entramos. Passamos pela microrregional, depois pela regional e chegamos ao estadual. Ganhamos o primeiro jogo, depois o segundo, e seguimos até a final.”
Elas revelam que não tinham muitas pretensões. Viajaram desanimadas e depois viram crescer a sensação de que poderiam chegar à vitória na medida em que iam vencendo cada desafio. Na final do JEMG, o papo já era outro, lembra Elisa: “A gente acreditou que podia mostrar para todo mundo que Tiradentes é grande e merecia estar lá”.
Quando o apito avisou que a partida tinha terminado, a emoção foi incontrolável. “Abracei a Júlia, depois a Sofia, que joga comigo desde 2023. Disse a ela: “A gente conseguiu.” Tenho muito orgulho dessas garotas. Não só da Júlia, da Sofia e da Manu, mas de todas que fazem parte do projeto.”, comemora Elisa.
Foi ela que empatou o jogo com uma cesta de dois pontos e definiu a partida que se tornou símbolo da união da equipe. “O basquete não é um esporte que você joga sozinha. Aquela cesta foi esforço de todas nós”, define.
Para Sofia foi uma surpresa. “Eu não estava tão animada para ir porque a gente já tinha perdido o 5 x 5. Mas aí a gente chegou lá e foi assim tudo incrível. Foi muito boa a sensação da gente conseguir por mérito nosso”, comemora.
A medalha da Manu teve também um gostinho pessoal: ela tinha bronquite asmática quando criança e chegou a desistir do esporte durante a pandemia. Mas retornou motivada pelas amigas e incorporou o basquete a sua rotina. “Nessa equipe, já faz 3 anos que eu estou. Não vivo mais sem o basquete hoje em dia”.
Já a Julia recorda o trabalho duro pra sair do banco e conquistar uma vaga na quadra. Com persistência e amadurecimento, transformou a experiência em superação e chegou até a fazer pequenos vídeos de rede social para motivar a evolução. “Quando entrei em quadra de verdade e vi que era mérito meu, entendi que o basquete tinha mudado minha vida”, avalia.
O basquete ensina

O JEMG é a maior competição estudantil do estado, realizada pelas secretarias de Educação e de Desenvolvimento Social em parceria com a Federação de Esportes Estudantis de Minas Gerais (FEEMG).
Voltado a estudantes de 12 a 17 anos, o torneio é dividido em quatro etapas: municipal, microrregional, regional e estadual. Além disso, garante às campeãs acesso a eventos nacionais, como os Jogos Escolares Brasileiros. Em 2025, todos os 853 municípios mineiros aderiram ao evento.
Para as atletas, porém, o melhor da vitória é perceber que, na quadra, aprenderam sobre amizade, disciplina e autoconfiança, lições que carregam para além do placar. Julia tem um discurso motivacional que não deixa a desejar a nenhum atleta veterano.
“O basquete me fez mudar em muitas maneiras. Primeiro a escutar o que o outro tem para falar. Você entender que tem muitas pessoas diferentes de você, muitos comportamentos diferentes do seu e que não é tudo da sua maneira. Você tem que confiar, tanto na vida quanto no basquete, nas pessoas que estão ao seu redor. As pessoas precisam uma das outras, você não consegue jogar sozinho. Isso mudou muito a minha percepção de vida”, reflete.
O treinador também tem história
Mais do que resultados, o projeto em Tiradentes mostra como o esporte pode abrir caminhos. “O triângulo: projeto, escola e prefeitura é o que mantém esse trabalho vivo”, destaca o treinador Sávio. Ele mesmo já é o resultado dos esforços em desenvolver o esporte no município. Antes de ser treinador, ele fez parte de um dos times comandados pelo professor Oriovaldo Rezende, o Bolinha.
Ele se diverte ao lembrar como era antigamente. “Na minha época, a gente só tinha aqueles cinquenta minutos da aula de Educação Física, que não era feita para treinamento esportivo. Os professores não tinham tempo para preparar os times, então, quando se aproximava a competição, eles juntavam alguns alunos para montar a equipe da escola”. No caso, a Basílio da Gama, onde Sávio também um dia estudou .

Bolinha quebrava o protocolo para treinar os alunos. “Ele chegava a tirar a gente da sala de aula para treinar. Lembro dele aparecendo na porta, no meio da aula de matemática, e chamando: “Vem, Sávio, Pedro, João… vocês vão treinar agora.”
Aliás, o antigo professor foi lembrado várias vezes com muito carinho pelo grupo. “Ele acompanhou nossa trajetória até recentemente, mas agora está em Recife, com a filha que passou em Medicina. Liguei para ele esta semana, e ele ficou super feliz de lá. A gente até chama de “cultura Bolinha”, porque foi ele quem plantou essa tradição que hoje permanece viva no projeto”, homenageia Sávio.
Levanta e sacode a poeira: o espírito olímpico
Embora a outra equipe com as alunas mais novas não tenha conseguido um feito similar, a lição está posta. Julia Souza Barbosa, de 12 anos, Cecília Guimarães Castro, 13, Ana Laura Santos Rodrigues, também de 13, e Marlene Helena do Nascimento, 14, contaram como o torneio foi marcante, mesmo sem a vitória. Elas assimilaram muito bem o que o treinador Sávio costuma dizer: “A medalha depois joga fora, esquece, enferruja... Mas esses momentos aqui é para a vida inteira”.
“Acabou que a gente não conseguiu se classificar. Perdemos o primeiro jogo, vencemos o segundo, mas, por causa da pontuação, ficamos de fora”, lembra Ana Laura. Apesar disso, o clima é de otimismo: “Ano que vem tem mais e a gente já está treinando. A meta é voltar com mais força, tentar vencer e quem sabe chegar até o Brasileiro.”

A participação, para elas, foi uma experiência inesquecível. “A recepção foi ótima. A escola onde ficamos era muito boa, a comida, a quadra… tudo excelente. As pessoas também foram muito gentis com a gente”, narra Julia orgulhosa da experiência.
“Jogar com as minhas amigas foi muito bom. Perder me ensinou que a gente precisa ter mais confiança”, disse Marlene num depoimento separado das companheiras, já que trabalhava durante a entrevista do time. Ela toca num ponto caro para a equipe: “O nervosismo foi nossa maior dificuldade. A pressão atrapalhou bastante. Se tivéssemos conseguido manter a calma, talvez fossemos mais longe.”
Tudo é aprendizagem e os treinos estão ainda mais focados: “Precisamos treinar para não ligar para a pressão da arquibancada e focar só no jogo.”, planeja Cecília com a responsabilidade de serem, agora, uma promessa do basquete na cidade.
O desafio de mudar uma cultura

A professora especializada em educação física, esporte e gênero da Universidade de Campinas (Unicamp), Helena Altmann, lembra que, nos últimos anos, apesar do crescimento da participação feminina em práticas esportivas, estudos mostram que elas ainda são minoria. “Em aulas de educação física, por exemplo, é comum encontrar alunas que participam de forma menos ativa ou até deixam de participar”.
Esse cenário está ligado também às diferenças de estímulos desde a infância. Enquanto meninos são incentivados desde cedo à prática esportiva, tanto pela família quanto pelos meios de comunicação, meninas muitas vezes são direcionadas a brincadeiras mais contidas, com menos movimento. “Essa distinção vai moldando gostos, habilidades e interesses ao longo da infância e adolescência.”, explica.
Ela acha que os jogos escolares são um elemento importante do ensino do esporte no âmbito da educação física. Contudo ressalta a importância de se considerar várias questões em relação a eles, e uma das principais é como torná-los realmente democráticos. “Isso porque o esporte, por sua natureza, tende a ser seletivo, privilegiando os mais habilidosos, enquanto a escola é um espaço que deve prezar pela igualdade de acesso ao conhecimento”, problematiza.
O desafio, para Helena, é pensar em formas de organizar os jogos de modo que não apenas os mais talentosos sejam contemplados, mas que todos tenham a chance de aprender e se desenvolver. “Um campeonato escolar precisa ser concebido de maneira a contemplar a diversidade de gênero, de corpos e de habilidades, ampliando a experiência esportiva para um número maior de estudantes”, reforça.
A competição empodera

Pensando especificamente no caso das meninas de Tiradentes, a professora destaca uma pesquisa de doutorado sob sua orientação, da Simone Cecília Fernandes, que analisou experiências de educação física em escolas que participaram dos jogos escolares municipais em Campinas.
O estudo observou que a participação nesses jogos favorecia uma maior adesão das meninas às aulas de educação física, contrariando a tendência de menor engajamento feminino. “Isso reforça a ideia de que a competição é um elemento estruturante do esporte, e que cabe ao professor de educação física refletir sobre como trabalhá-la no ambiente escolar”, defende.
Helena afirma que, no caso das meninas, participar de campeonatos contribui para empoderá-las, fortalecê-las e incentivá-las a permanecer na prática esportiva. A competição traz ainda uma dimensão coletiva, marcada pela busca de objetivos em equipe. Ganhar um campeonato, por exemplo, atribui maior significado à experiência de treinar e de se engajar. “Esse efeito, ultrapassa os resultados imediatos, tem valor formativo e representa uma contribuição positiva do esporte para a educação”, conclui.
Histórias olímpicas e as mulheres no esporte
Em pensar que, há tão pouco tempo, tanta coisa boa que vem com o esporte era reservada somente aos meninos. A professora faz um breve histórico da atuação das mulheres no basquete e no esporte em geral para mostrar como essas vitórias, como a de Tiradentes, tem um desdobramento de significados.
Ela lembra que, enquanto para os homens a prática esportiva foi algo natural, para as mulheres o esporte significou uma conquista gradual. O próprio idealizador do evento, Pierre de Coubertin, defendia que elas não deveriam competir, mas apenas assistir. Ainda assim, já na segunda edição olímpica houve participação feminina, inicialmente restrita a poucas atletas da Europa e da América do Norte.
No Brasil, Helena ressalta que a presença de mulheres também se fez de forma pioneira e simbólica. Em 1932, Maria Lenk se tornou a primeira latino-americana a disputar uma edição dos Jogos Olímpicos, em Los Angeles, representando a natação brasileira. Um caminho que demorou mais a se abrir para mulheres de setores populares e periféricos. Apenas em 1948, a velocista Melânia Luz marcou a história como a primeira atleta negra brasileira a competir em Olimpíadas.

Segundo Helena, essas conquistas foram importantes não só pelo resultado esportivo, mas também porque colocaram as mulheres em evidência na vida pública, antes restritas ao espaço doméstico. “O esporte contribui para uma saída dessas mulheres do espaço privado para o espaço público, dando visibilidade a outras possibilidades de inserção na vida social”, analisa a professora.
Especificamente em relação ao basquete, em 1941, foi criada no Brasil uma lei que proibia as mulheres de praticarem esportes considerados “incompatíveis com a sua natureza”. A justificativa se apoiava na crença de que modalidades de maior impacto ou de contato poderiam comprometer a capacidade reprodutiva feminina e, além disso, desviar as mulheres de suas responsabilidades domésticas, como cuidar da casa e dos filhos.
Essa legislação permaneceu em vigor até 1971 depois de uma reedição em 1965, já durante a ditadura civil-militar. “Na nova versão, o texto passou a especificar as modalidades proibidas, tornando ainda mais explícita a exclusão. Entre elas estavam o futebol, além do halterofilismo, polo aquático, beisebol e todas as modalidades de luta”, lembra a professora e, com isso, explica porque as mulheres começaram a competir primeiro em esportes de menos impacto.

A seleção de Marta e Hortência nos anos 1990, veio marcar a mudança desse quadro. Mas Helena pondera o avanço. “Hoje, mesmo que as meninas estejam ocupando espaços na prática esportiva, os cargos de técnicas ou de dirigentes ainda são ocupados por uma minoria de mulheres no cenário brasileiro.”
Embora os meninos ainda são maioria praticando esportes, por estes motivos históricos, a professora não nega que uma série de mudanças sociais nas expectativas sobre o lugar da mulher na sociedade tem mudado o quadro. “As mulheres conquistaram muitos direitos, entre eles o trabalho e a ocupação da vida pública. O esporte se insere nesse cenário de novas possibilidades e pode ser relacionado à frase clássica: “lugar de mulher é onde ela quiser”, define.

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