Em casa de Donas Policena e Ana Eugênia
- Daniela Mendes
- 28 de ago.
- 5 min de leitura
Atualizado: 29 de ago.
Estreia da Big Band das Minas é marco simbólico de um tempo em que mulheres tomam o protagonismo musical no Campo das Vertentes. Confira o próximo show do coletivo.

Ninguém lembrou de dizer que ali, no Solar da Baronesa, em plena estreia da Big Band das Minas, mulheres de pele clara tinham há 200 anos uma vida de claustro com outras indígenas e africanas escravizadas lhes servindo as vontades. Mas, como numa valsa, em que o saiote do vestido pendula para lá e para cá, vamos todas, negras e brancas, do passado ao presente, dolorindo e ressignificando com arte lembranças do que não vivemos.
Foi esse o efeito arquitetônico do Centro Cultural da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Ele ocupa o antigo lar das donas Policena Rosa Faria da Silveira e Ana Eugênia Ribeiro Campos, as duas esposas que teve o Barão de Itaverava. Essa antiga residência serviu, naquela noite de quinta-feira (21), de palco para um marco criativo na história: quando mulheres tomaram o protagonismo da cultura na região do Campo das Vertentes.

Dizem que ali mesmo, na galeria principal, como era de costume nessas casas, saraus recepcionaram o Imperador pelo menos umas duas vezes. Os nobres não se sentavam em cadeiras de plástico, como nós disputamos naquela noite um lugar confortável na galeria lotada para ver e ouvir a Big Band das Minas.
E os oligarcas do século XIX, duvidamos, tampouco recitavam no solar de Policena jovens poetas abolicionistas, nem permitiam que as senhorinhas tocassem no piano a escandalosa Chiquinha Gonzaga. Mas também não foram eles sozinhos, com seus costumes europeus tidos em alta conta, que forjariam a cultura que nos define enquanto nação. Embora deixariam nódoas persistentes da cultura patriarcal.
As paredes espessas de Dona Ana Eugênia sofreram reformas com o passar do tempo que combinaram o rústico e a elegância. O que aconteceu também com a música daquela noite. O som ganhou uma moldura em arco de tijolos oferecendo um quadro melódico delicioso que vinha de influências de diversas ancestralidades. Uma receita certa para derrubar hierarquias e fazer ressoar a combinação da sensibilidade, do desejo e do domínio técnico de onze mulheres.
Demorou, mas aconteceu este tempo em que a cena musical em São João del-Rei ganhou ajustes de gênero. O que pode parecer exagerado para quem não entende a diferença entre protagonismo e performance. Mas explicamos.
Quando mulheres apenas performam na música, elas ocupam um espaço limitado, executando papéis muitas vezes já definidos por estruturas de poder externas. Quando protagonizam, elas decidem repertórios, conduzem projetos, criam narrativas e influenciam diretamente a produção cultural. Foi o que vimos.
Isso altera a lógica de quem determina o que é ouvido e valorizado, amplia referências para o público e garante que a experiência musical incorpore visões e trajetórias diversas que historicamente foram silenciadas. Agora, elas falam e dispensam títulos de nobreza para não serem historicamente apagadas.

“A Big das Minas é um projeto que idealizei no ano passado. No início, a gente não sabia exatamente como começar, só sabíamos que queríamos uma banda grande, com presença. A Big nasceu do encontro das nossas trajetórias enquanto mulheres musicistas brasileiras”, disse, sem ensaio, a contrabaixista Silvia Rocha na abertura. Foi o bastante para transmitir uma sensação de cumplicidade ao público presente.
Expectadoras, somos cúmplices porque reconhecemos em outras mulheres no palco a possibilidade de nos vermos representadas e de partilharmos experiências que passam pela música e vão além. Esse encontro gera identificação e cria referências que nos acompanham fora da cena artística, fortalecendo a ideia de que é possível ocupar espaços, tomar decisões e conduzir caminhos. Ao ver e ouvir mulheres criando e se afirmando na arte, carregamos para as nossas próprias vidas a inspiração de transformar nossas trajetórias e, como vimos, com beleza.
A Big das Minas mostrou que não há funções ou linguagens exclusivas de gênero, mas sim talentos singulares que precisam ser reconhecidos em sua plenitude. E todo aquele discurso que insiste em furtar a humanidade do feminino, seja pela exaltação mística ou por visões distorcidas, cai por terra. “Nosso propósito maior é o reconhecimento do trabalho das mulheres na música: ocupar e afirmar esse espaço, nas artes e na vida”, completou Silvia e é sobre isso.
Não havia nada nelas além de talento e trabalho para aquele resultado. O que é muita coisa e o suficiente. Um ano de ensaios e encontros resultou em um repertório diverso, com arranjos de compositoras já consagradas, emergentes e também de suas próprias composições. De Chiquinha Gonzaga a Liniker, com composições e arranjos próprios, tudo dentro do espírito das grandes orquestras de jazz, as chamadas big bands do século XX. Mas não só de jazz ou influência estadunidense... Houve um tempo de menos globalização que fazia sentido se rotular como world music.

No final das contas, elas não seguiram cartilhas, apenas suas próprias intuições. Reviraram o baú de tudo o que as formou. Trouxeram para nós uma música que, como sugerimos, nos levava pelos tempos e também por lugares deste Brasil de cultura tão diversificada e, acima de tudo, mineira. Afinal nada mais global que nosso país.
E é bom lembrar que interpretar aquela noite como marco simbólico significa dizer que reconhecemos sim outros trabalhos de artistas solos, como o de Isis Ferreira e Lydia Fernandes que já trouxemos aqui. Lembramos outra iniciativa coletiva, como a Batucada das Minas também. Mas pelo trabalho autoral e a união de vários instrumentos, a Big Band das Minas é, para nós, essa imagem da síntese, de uma ideia. O tipo de manifestação artística que queremos registrar cada vez mais. Não por querer um mundo feito de mulheres, mas um mundo em que mulheres estejam em todos os lugares e não sejam só lembradas por suas residências, como Policena e Ana Eugênia.
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A Big Band das Minas volta agora em outro cenário, no Festival de Gastronomia de Tiradentes. Para quem quiser testemunhar essa história, o show é no sábado, 30, no Palco do Santíssimo Resort, às 21h30. E em setembro elas tocarão também na Festa do Jubileu do Senhor Bom Jesus de Matosinhos, às 20h.
Ficha técnica
Silvia Rocha – Contrabaixo
Camila Hellen – Guitarra e cavaquinho
Ana Tostes – Percussão
Milena Lopes – Percussão
Larissa Novo – Flauta
Ana Neri – Trompete
Paloma Rios – Sax Tenor
Narayane Dela Sávia – Sax Barítono
Isabela Campos – Trombone
Ana Rita Medeiros – Tuba e bombardino.
E ainda: a produção e o apoio são da Lydia Fernandes e da Carla Grazielli.








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