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O fogo brando da escuta

A importância de escutar antes de idealizar um projeto foi o que as Clarissas apresentaram na 9ª. Semana Criativa de Tiradentes. Método propõe o respeito às comunidades.


As Clarissas, Aguiar, esquerda e Second, direita. Ao centro o mediador Simões Neto. Foto: Daniela Mendes
As Clarissas, Aguiar, esquerda e Second, direita. Ao centro o mediador Simões Neto. Foto: Daniela Mendes

Duas mulheres, duas trajetórias que começaram em lugares distintos e se encontraram num mesmo território simbólico: o da escuta. Clarissa Aguiar e Clarissa Second compartilham mais do que um nome, compartilham uma ética, a da antropologia engajada no palco da Semana Criativa de Tiradentes (SCT).


Ambas acreditam que o conhecimento se constrói devagar, em fogo brando, entre o gesto de fazer e o gesto de ouvir. E é desse ponto de encontro entre antropologia, arte, cozinha e comunidade que nasce o trabalho que hoje desenvolvem juntas, de Capivari, no norte de Minas, a Paris e Lisboa.


Um mergulho antropológico


Clarissa Aguiar falou primeiro de como chegou a Capivari há dez anos, no pé do Pico do Itambé, região do Alto Jequitinhonha. Formada em ciências sociais em arquitetura e urbanismo, foi movida pela curiosidade sobre as casas de pau a pique e a cultura material do cerrado mineiro com uma pesquisa etnográfica sobre antropologia da casa na Serra da Bicha. Mas logo percebeu que o estudo das formas construtivas era, na verdade, um estudo das relações humanas.


Segundo ela mesma definiu, “é um povo muito sabedor, que tem muitas práticas, muita poesia. E quando eu cheguei lá, eu conheci primeiro a Serra da Bicha, que é uma comunidade muito menor, ainda 13 km acima e a estrada tinha acabado de chegar”.


Ela chegou interessada pelos atrativos naturais, quando descobriu a beleza das pessoas de lá. A diferença cultural foi um choque. Logo ficaria maravilhada com a diversidade, os saberes que eles tinham do cerrado, do manejo desta vegetação, das relações com a natureza e o meio compartilhado, o jeito de falar... Porém uma realidade assombrada pela vulnerabilidade social.


Tudo era muito diferente, apesar de estar apenas a 5 horas de carro de Belo Horizonte. Ela logo teve a ideia de fazer alguma coisa pela comunidade, mas sem impor suas próprias visões do que seria o desenvolvimento, do que seria o bem-viver. Para tanto, precisava analisar os próprios impactos da presença dela na comunidade.


Clarissa Aguiar/Foto: Daniela Mendes
Clarissa Aguiar/Foto: Daniela Mendes

Durante três anos, ela se dedicou a uma etnografia paciente da arquitetura local. Entrou nas moradias, observando o processo de transição das casas tradicionais para as de alvenaria. O que começou como um trabalho acadêmico se transformou em um exercício de convivência cujo processo de conhecimento, para ela, não terminaria.


E aí eu fui tentando entender quem era essa comunidade e o que que atravessava as casas. O que que era levado para a nova construção, o que que era transformado, o que que era parentesco que estava envolvido. A partir daí a gente foi ficando amigo e compartilhando. E ao mesmo tempo que eu fazia essa pesquisa, eu propunha também umas micro arenas improvisadas. Juntava todo mundo na casa de alguém pra escutá-los”, detalha.


Clarissa tentava descobrir, a partir deles mesmos, como concebiam uma melhoria. Dessa aproximação nasceram outras rodas de conversa e um mapeamento coletivo das prioridades locais: energia elétrica, alfabetização e criação de uma associação comunitária.


E, destes encontros, participou de um processo que levou luz a 169 famílias. Também testemunhou a criação da Escola Sempre Viva, baseada na pedagogia de Paulo Freire, voltada à alfabetização de jovens e adultos. Nesta, hoje quem ensina são os próprios moradores, fortalecendo um ciclo de aprendizado no tempo próprio da comunidade, com autonomia dos locais.


Da cozinha a antropologia


Quando começou a sua fala, a outra Clarissa, a Secondi, quebrou o protocolo. Num palco amplo e público de, pelo menos, duas ou três dezenas de pessoas, que não ocupavam todas as cadeiras, propôs uma aproximação e desceu para a platéia. Assim, exemplificou corporalmente o primeiro passo para o engajamento. Estar na mesma altura, manter o olho no olho.


Só assim ela começa a narrar sua trajetória, de altos e baixos. Não somente no sentido de queda, mas principalmente no acerto de rotas e recomeços. Ela cresceu ajudando o pai na cozinha, num restaurante que ele tinha aqui, em Tiradentes.


Ela faz questão de lembrar desse tempo em que mulheres privilegiadas não ocupavam um lugar de destaque na gastronomia, tomada por chefs homens. Disse que depois que aprendeu tudo sobre cozinha francesa com o pai, partiu para o país dos brioches aos 22 anos.


Clarissa Secondi/ Foto: Daniela Mendes
Clarissa Secondi/ Foto: Daniela Mendes

Eu estava aqui, patroa de restaurante estrelado e tudo. Aí eu imigrei para França e saí do alto. Lá ninguém me conhecia, lá eu me tornei brasileira, imigrante, mulher, branca. Eu não era preta, se fosse seria mais difícil ainda. Estava lá para trabalhar em restaurante estrelado e fazer um estágio”, narra Clarissa trazendo o público pela mão na sua trajetória.


Mas para ela, a cozinha francesa é uma desconstrução. E para isso, precisava conhecer a cozinha tradicional. Desceu então um degrau e foi, primeiro lavar louça. Por um ano lavou louça observando o trabalho dos cozinheiros mais simples e acompanhando o processo de compra dos insumos. Passou por vários restaurantes e aprendeu, acima de tudo observar. E, depois de 15 anos, recebeu um convite para ser chef em Paris e subiu pelo menos uns três degraus.


No auge da carreira, veio a dúvida: “Estava tudo certo, mas eu não estava feliz. Faltava sentido”. A virada veio com o retorno aos estudos: Letras, história da alimentação e, por fim, antropologia. E o fez como boa pesquisadora, partindo para uma posição humilde, de não saber. A cozinha, antes apenas profissão, tornou-se campo de pesquisa e escuta.


O encontro na cozinha é costurado pela escuta


Secondi voltou para o Brasil. Uma vez aqui, decidiu dar “aula de cozinha francesa”. “Cheguei então numa comunidade, que na época não era Capivari, era São Gonçalo, ali do lado. Fui dar aula de cozinha, e essa experiência me gerou tanta frustração que eu pensei: “O que é que eu estou fazendo aqui? Por que estou ensinando comida francesa? Esse pessoal não tem nenhum interesse nisso”, recorda.


Inquieta, decidiu que precisava entender o que observava. Foi então que decidiu fazer o mestrado de antropologia e começou a trabalhar na França com mulheres imigrantes, de Bangladesh, da Índia, do Paquistão e Norte da África. Especificamente com mulheres imigrantes do Sul Global, por meio da comida, num processo pedagógico baseado na partilha de saberes e na valorização da experiência cotidiana.


Para Clarissa, “O conhecimento não precisa ser imposto. Ele pode ser cozinhado junto, aos poucos, como um ensopado que precisa de tempo para pegar gosto”, explicou assim o que seria o método fogo brando. Hoje, ela concebe programas pedagógicos para traduzir a cozinha francesa para estas mulheres. “A cozinha clássica francesa como ela é, de maneira que elas possam ter uma noção do que é a cozinha e a cultura francesa ao lado de aulas de matemática e francês”, detalha.


Livro de contos e receitas "“Pimenta, Pirnóbi e Pequi: prosas de comadres à beira do fogão”.
Livro de contos e receitas "“Pimenta, Pirnóbi e Pequi: prosas de comadres à beira do fogão”.

Ou seja, o diferencial, é que Clarissa “puxa” das mulheres imigrantes o que elas já sabem até chegar ao empoderamento delas e adicionar conhecimento novo.


As duas Clarissas tem uma conexão familiar, um parentesco indireto, e quando Secondi visitou o Capivari reencontrou Aguiar. De forma que a Fogo Brando nasce na França e toma contornos brasileiros. Mas tudo ainda está no início e como as melhores coisas, começa com o desejo.


“O que queremos fazer é continuar criando perspectivas que integrem tudo isso que dissemos: promover projetos diferentes, que levem em conta o território, as mulheres e suas realidades. Ainda temos o desafio da estruturação: conseguir financiamento, formar alianças, criar redes que sustentem esses projetos. Eu espero que o futuro seja quilombola, que o futuro seja ancestral. Não sei dizer em termos de desenvolvimento, mas em termos de envolvimento. O que estamos criando juntas aqui vai frutificar. ”, define Clarissa Aguiar num tom que lembra um manifesto.


Pirnóbi é ora-pro-nóbis


Noeme, de Capivari. Foto/Daniela Mendes
Noeme, de Capivari. Foto/Daniela Mendes

Chegou uma hora que a moradora de Capivari, Noeme Ribeiro da Cunha, que acompanhava a dupla de Clarissas, é chamada ao palco para relatar sua experiência. Com desenvoltura ela deixou o público com vontade de provar sua comida e visitar sua casa.


Tem uma receita de frango caipira ao molho pardo com pau-de-lobo que se mostrou extremamente sofisticada. “Comida de fogão à lenha fica mais gostosa do que no fogão a gás. No fogão à lenha, a comida não esfria, ela mantém o tempero bem quentinho”, explica Noemi e arranca aplausos da plateia.


Ela traz essa novidade linguística, diz que na região, Pirnóbi é ora-pro-nobis, a panc muito apreciada também aqui na região do Campo das Vertentes. Também fala como foi o processo de costurar e bordar histórias no livro “Pimenta, Pirnóbi e Pequi: prosas de comadres à beira do fogão”, da Sempre Viva Editorial, e que apresentaram em outro encontro desta SCT. São histórias e receitas do Capivari.


Ao lembrar da frustração inicial que sentiu quando começou a dar aulas de culinária, Clarissa Second reflete e nos faz refletir: “Eu cheguei com uma técnica super sofisticada e encontrei mulheres que já tinham um saber tão sofisticado quanto”. E assim todos entenderam que entre a lenha e o fogo, entre o tempo de cozinhar e o tempo de ouvir, as Clarissas e Noemi lembram que toda transformação começa no calor da escuta.




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