Uma mãe, uma causa.
- Daniela Mendes
- 23 de set. de 2020
- 11 min de leitura
Do inesperado diagnóstico do filho à defesa de uma causa: para Tatiana Takeda, a garantia dos direitos passa pela luta de todas as pessoas com deficiência e suas famílias.

De Goiás, do lugar de mãe de uma criança autista, dentro de uma tela de computador, Tatiana Takeda, generosamente, cedeu uma hora de sua rotina agitada para falar sobre direitos das pessoas com deficiência. Os olhos puxados, como se moldados pelo hábito de sorrir, trazem a história de uma mulher sábia, em constante formação, seja como mãe, advogada ou cidadã.
Fica claro desde o ínicio, que ela prefere ilustrar com a própria história o direito das pessoas com deficiência (PcD’s) e suas famílias desde o início da entrevista. É a maneira encontrada para não confundir a carreira de advogada com a causa. Embora as duas instâncias se encontrem, o objetivo de falar de forma pessoal é justamente evitar uma espécie de propaganda de sua atuação particular como advogada e focar nos direitos dos autistas.
A gente tem que pensar que se os que são iguais a ele não tiverem a sua defesa, de nada adianta o meu filho ter. Tatiana Takeda
Quando Theo Luiz nasceu, há nove anos, os familiares das pessoas com deficiência não comentavam muito dos filhos. Era uma assunto ainda muito doméstico. Com isso, era difícil encontrar informações. Tatiana teve que, desde o nascimento de Theo, estudar e correr atrás de informação. Até o diagnóstico foi uma conquista. E ao buscar os direitos do filho, para encontrar uma nova perspectiva da vida para ela e toda família, acabou mudando sua especialidade no direito.
A advogada descobriu como era importante falar sobre o assunto e também se informar. Foi assim que nasceu o livro “O que você precisa saber sobre o autismo”, que ela diz já estar desatualizado e aconselha, para informações mais atuais, a Cartilha dos Direitos dos Autistas, em seu site. Recebeu críticas por expor uma situação pessoal, mas respondeu com cidadania.
“Então se tiver que pagar um preço para levar informação e conscientização, de ter que mostrar meu filho, eu pago o preço. Mas eu estou pagando esse preço por algo que estou comprando para ele. Porque não adianta eu lutar pelos direitos do meu filho tão somente. A gente tem que pensar que se os que são iguais a ele não tiverem a sua defesa, de nada adianta o meu filho ter”, afirma.
Direito e humanismo.
É conversando que a gente percebe a dimensão do quanto nos distanciamos da realidades das pessoas com autismo e suas famílias. Até Tatiana brinca, que antes de ser mãe do Theo, a única coisa que lhe vinha à mente quando se falava deste diagnóstico era o filme Rain Man, de 1988. Na história, Dustin Hoffman fazia o papel de um homem autista que foi escondido do irmão caçula, Tom Cruise, sua vida inteira. E essa ideia lhe assustava.
Nós duas tínhamos uma hora para falar de um assunto inesgotável pelo skype. Tatiana é muito ocupada e foi com carinho que nos cedeu a entrevista. Ela é mãe de duas crianças, vice-presidente da Comissão de Direito da Pessoa com Deficiência do Instituto Brasileiro do Direito de Família, membro da Comissão dos PcDs da OAB/GO e nacional, professora em mais de uma instituição, dá cursos, é coordenadora de uma pós em direitos dos PcD’s no CBI Of Miami e trabalha no Tribunal de Contas.
Quando colocaram ele no meu colo, o Theo já deu sinal de que ele não gostava de encostar em ninguém. Então ele não quis mamar. Ele chorava de fome mas ele não mamava em mim. Ele não gostava que eu pegasse ele. Tatiana Takeda
Mas mesmo falando sobre direito, para entender a dimensão humana da lei, é preciso saber o que se passa com uma jovem mãe ao perceber que o seu bebê era diferente dos outros. Nada explica com precisão porque Theo nasceu assim. Planejado, com uma gestação tranquila e perfeita, como ela mesma define, o filho é um enigma que só o amor viria ensinar a lidar com a nova realidade sem ferir a singularidade da criança.
O grande encontro.
Do momento que Theo foi trazido a Tatiana para mamar pela primeira vez, ali, em seus braços, ainda bebezinho, ele já quebrou o primeiro “protocolo” com o primeiro contato com a sociedade, a mãe. “Quando colocaram ele no meu colo, o Theo já deu sinal de que ele não gostava de encostar em ninguém. Então ele não quis mamar. Ele chorava de fome mas ele não mamava em mim. Ele não gostava que eu pegasse ele”, relembra Tatiana.
Tatiana diz que seu filho foi o que ela chama de “bebê anjo”. Era colocar no berço e ele ficava quietinho e dormia. Mas se alguém o pegasse ele chorava muito. Por isso, tentaram várias formas de alimentá-lo quando ele nasceu, inclusive uma fonoaudióloga. Mas por fim, tudo se resolveu apenas com a mamadeira.

“Aí já é uma coisa que deixa uma mãe muito chateada, né? Porque você preparar esse peito, passar tanta coisa preparando para aquele momento da amamentação e nada”, explica Tatiana seus sentimentos na época.
Théo nasceu na tarde de uma quinta-feira. Na segunda-feira depois é que Tatiana voltou ao médico para que o problema fosse resolvido. A família não suspeitava de um possível diagnóstico de autismo. Estavam no escuro. Théo não se apegava ao peito. Eles colocavam glicose no peito para ele colocar a boca, mas não adiantava. Só mesmo com a mamadeira o problema foi resolvido.
Esse menino é diferente.
Tatiana conta que o bebê não dava trabalho nenhum. Mas ela começou a se incomodar com o fato dele não olhar para ela. “Nós éramos seis amigas grávidas ao mesmo tempo. Então eu tinha parâmetros, por mais que eu fosse mãe de primeira viagem”, detalha como a desconfiança foi amadurecendo ao comparar o filho com outras crianças.
Aí eu disse: ó doutor, os meninos já estão tudo sentando, eles fazem isso, isso e isso e o Theo não faz nada. O Theo nem olha para mim. Tatiana Takeda
Na consulta de 4 meses, ela apontou o problema para o pediatra. “Nisso eu já tinha repetido o exame do olhinho, porque eu achava que ele era cego. Depois eu achei que ele era surdo. E aí repeti o teste da orelhinha”, lembra Tatiana com certo humor, porque a mulher que fez o exame até ficou brava com a insistência. Mas nenhuma dessas suposições se confirmavam.
O pediatra não levou as suspeitas de Tatiana a sério e ela guardou para si as angústias, até os seis meses do filho. “Aí eu disse: ó doutor, os meninos já estão tudo sentando, eles fazem isso, isso e isso e o Theo não faz nada. O Theo nem olha para mim”, lembra.
Por coincidência, o médico tinha acabado de voltar de um congresso sobre o autismo e sugeriu que se começasse a investigar a possibilidade deste diagnóstico. Foi aí que Tatiana começou a estudar o assunto. Há nove anos atrás, não havia muita informação. Mas uma mãe perseverante e preocupada não desiste fácil.
O diagnóstico enquanto conquista.
A conselho do pediatra, Tatiana procurou um neurologista e passou por alguns. “Eu estava cansada de ir pra lá e pra cá... Não! Eu ouvi cada absurdo de médico! Você não tem noção”, narra indignada. O pouco que ela conseguia estudar já era mais do que os médicos revelavam para ela.
Sigo toda a vida tentando alinhar a vida de uma mulher que trabalha... E trabalho muito e sou mãe ao mesmo tempo e estudiosa do direito das pessoas com deficiência para conseguir agregar para a sociedade. Tatiana Takeda.
Foi então que teve a ideia de procurar a Associação Pestalozzi, uma instituição filantrópica que, sob os princípios da filosofia de Johann Heinrich Pestalozzi, o teórico que incorporou o afeto à sala de aula, desenvolvia projetos em Goiânia, inclusive com autistas. Pelo site, ela viu quem era o médico responsável da associação e o procurou.
Já na sala de espera, o neuropediatra Dr. Wander dos Santos Anjo olhou para o Theo e brincou: “Ué, parece que esse rapazinho é meu freguês”. Na hora, Tatiana comentou com seu marido que sentiu que eles chegaram ao lugar certo. E de fato: após avaliação multidisciplinar, confirmou-se que o Theo era uma criança autista e com o grau grave.
Uma nova vida.

A partir daí, eles partiram em busca, tanto de terapia, como de escolas. Começaram a sentir as dificuldades impostas pelo preconceito com as negativas veladas de matrícula. “É engraçado aquela história de que santo de casa não faz milagre, né? Eu recebia a negativa, sofria com isso...”, revela com certa indignação pela ironia, mas, para nós, fica claro de onde vem sua empatia ao trabalhar com o direito de pessoas com deficiência.
A advogada também enfrentou os desafios domésticos. Como estava há quase um ano estudando o assunto, aflita para saber o que se passava com o filho, Tatiana se sentia preparada para encarar a nova realidade. Contudo, a família ainda não. Ela revela em seu ebook, no qual narra a história da sua maternidade, que essa é a parte a qual as pessoas dizem a ela que mais se emocionam. Segundo a advogada, algumas lhe confidenciaram que até gostam de ler e reler a parte em que relata a experiência familiar.
Ao frequentar a Associação Pestalozzi, outras mães começaram a tirar dúvidas com Tatiana sobre direito. “Para mim, aquilo era muito simples de responder, de compreender, e para as pessoas era difícil”, descreve a sensação. Foi quando a advogada, até então da área de direito ambiental, percebeu que teria que mudar de área e abraçar o direito das pessoas com deficiência.
Um novo trabalho.
Tatiana começou a dar entrevistas para revistas e a ser chamada para encontros e seminários sobre o assunto no Brasil inteiro. Ela já era conhecida do meio jornalístico pelo seu trabalho com direito ambiental. As pessoas rapidamente perceberam sua mudança e a nova postura assumida.

Hoje em dia, Tatiana é muito requisitada e lamenta não conseguir atender todo mundo. “Sigo toda a vida tentando alinhar a vida de uma mulher que trabalha... E trabalho muito e sou mãe ao mesmo tempo e estudiosa do direito das pessoas com deficiência para conseguir agregar para a sociedade”, justifica. Antigamente, as pessoas lhe mandavam mensagens e ela respondia tudo. Agora, lamenta já não conseguir atender a todo mundo.
O Direito das PcD’s e a sociedade
A legislação sobre o assunto data de 1989. Foi reformulada pela Lei Brasileira de Inclusão de 2015 (13.146/2015) (LBI) e algumas garantias também estavam na Lei de Diretrizes e Base da Educação (9.394/1996), bem como no Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) e a Constituição Federal (1988). Estes são mecanismos que Tatiana aponta como amparo ao direito da pessoa com deficiência. Um aparato relativamente novo.
Se o seu direito não foi cumprido, você tem que sair da zona de conforto. E eu falo pro pessoal o seguinte: o primeiro passo para você sair da zona de conforto é você procurar se informar. Tatiana Takeda
A advogada também faz questão de destacar, como marco na legislação mundial, a Convenção Internacional da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre os direitos da pessoa com deficiência. Em 2006, neste evento, foram aprovados os direitos da pessoa com deficiência. Dois anos depois, eles foram ratificados no Brasil. Este foi primeiro tratado de direitos humanos a ter valor constitucional no Brasil.
A Lei Brasileira de Inclusão (13.146/2015) (LBI), segundo Tatiana, é uma espécie de Bíblia para quem queira atuar na defesa dos PcD’s. Pois é um marco no ordenamento político brasileiro. “Traz aí muitos direitos que as pessoas com deficiência têm e que estavam dispersos em outras leis. Ela juntou e trouxe mais. Tudo com base no principal, que é a convenção da ONU de 2006”, explica.
Desafios cotidianos
Tatiana aponta dificuldade na efetivação dos direitos. Conseguir o que se pretende por ofícios, não é uma tarefa fácil, explica. “Eu falo para as famílias: gente, de ofício, nada cai no colo da gente. Por mais que nós tenhamos aí leis dispondo dessas questões, a gente tem que correr atrás. Se o seu direito não foi cumprido, você tem que sair da zona de conforto. E eu falo pro pessoal o seguinte: o primeiro passo para você sair da zona de conforto é você procurar se informar”, aconselha.
(...) aquela pessoa que discrimina a pessoa com deficiência em face da deficiência dela, ela pode receber uma pena aí de um ano a 3 meses, de um ano a 3 anos e multa. E ela elenca situações que podem aumentar a pena "que pode chegar de 2 a 5 anos e multa. Tatiana Takeda
Para a advogada, depois que o cidadão se informa, ele pode se empenhar para conseguir seus direitos junto ao ministério público, defensoria, escritórios modelo de faculdades que fazem atendimento gratuito ou advogado particular. Uma negativa de matrícula na escola de um PcD, um descumprimento de quotas no mercado de trabalho, a suspensão de um benefício de prestação continuada negado, são exemplos simples de direitos que costumam ser desrespeitados e podem sofrer uma interferência legal.
Tatiana lembra que lazer e cultura são direitos dos deficientes também. Espaços como museus, cinemas, teatros, entre outros, têm de ser, por lei, acessíveis. “Se eles não forem acessíveis, você está negando para parte considerável da população brasileira, (23,91%, segundo o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE) um direito delas”, lembra.
Precisamos mudar.
A luta das pessoas com deficiência passa pelas vias institucionais e exige muito destas e dos familiares. Mas a conscientização de toda sociedade é a forma mais efetiva de fazer valer esses direitos. Da linguagem a atitudes de cada um como cidadão, Tatiana lembra que podemos e devemos fazer a nossa parte.
A pessoa com deficiência tem que ser inserida em todos os ambientes, sem exceção. Se é um ambiente pra pessoa, independente da condição dela, tem que ser para todas as pessoas com dignidade. Tatiana Takeda
Ela ressalta também o quanto é preciso criminalizar as condutas. A LBI, em seu artigo quarto, diz o que é discriminação da pessoa com deficiência. E, a partir desta definição, pode-se agir e refletir. “Quando você consegue colocar uma conduta de discriminação dentro desse artigo quarto, aí sim a gente pode ir pra sanção que está no artigo 88. Este diz o seguinte: aquela pessoa que discrimina a pessoa com deficiência em face da deficiência dela, ela pode receber uma pena aí de um ano a 3 meses, de um ano a 3 anos e multa. E ela elenca situações que podem aumentar a pena "que pode chegar de 2 a 5 anos e multa”, alerta.
A completa ausência de políticas públicas também é lembrada com indignação pela advogada. Ela cita a necessidade de se criar delegacias especializadas no atendimento da pessoa com deficiência.
Estes órgãos existem em alguns estados e se diferenciam por recursos adaptados, como impressoras em braile para que a pessoa possa levar o Boletim de Ocorrência (B.O.) e outros documentos para casa. Sem falar na presença de interpretes de libras para que as PcD’s possam relatar, por exemplo, um abuso.
A advogada convida a um exercício de empatia: ao imaginarmos uma mulher com deficiência tentando relatar um abuso sexual para agentes despreparados. E revela uma evidência alarmante: “Eu não conheço nenhuma cidade que não seja capital que tenha este serviço”, constata. Para Tatiana, a pessoa com deficiência é uma vítima, em potencial, de tudo. Por isso, precisa estar segura e ser defendida de uma forma diferenciada.
Com tudo isso, Tatiana chama para o amadurecimento da sociedade. “As pessoas estão tão sofridas, que elas dizem que não acreditam em inclusão. Eu digo que se a gente deixar de acreditar, a gente não vai buscar. A gente vai conseguir a inclusão social, a real e efetiva inclusão social da pessoa com deficiência na sociedade, sim. Seja na escola, mercado de trabalho, seja nos ambientes de lazer”, afirma com convicção e lembra do detalhe que nem brinquedos acessíveis costumam ter nas praças para todas as crianças.
Depois que a gente conversa com Tatiana, começa a observar tudo. Os espaços que frequentamos, a internet, repartições públicas... Começamos a nos questionar como as pessoas com deficiência fazem isso e aquilo e com o que a sociedade colabora para tornar o ambiente mais seguro e adaptado para as pcd’s. “A pessoa com deficiência tem que ser inserida em todos os ambientes, sem exceção. Se é um ambiente pra pessoa, independente da condição dela, tem que ser para todas as pessoas com dignidade”, ensina a advogada.
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