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Quando começa uma luta...

Atualizado: 17 de jun.

Esse foi o primeiro encontro promovido pelo Fórum de Mulheres das Vertentes para discutir a violência contra mulheres em processos na Vara de Família.


Visão geral da apresentação sobre aspectos do Direito/Daniela Mendes
Visão geral da apresentação sobre aspectos do Direito/Daniela Mendes

Um público tímido foi se formando aos poucos. Era festa de Santo Antônio, quarta-feira (11), e, para chegar ao anfiteatro do campus da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), que leva o nome do intercessor oficial dos casamentos, as mulheres tinham que passar pelas barraquinhas na entrada.


Do lado da porta do anfiteatro, crianças brincavam com uma recreadora. Afinal, se é um encontro de mulheres, tem que se considerar os cuidados da maternidade. E, perto da brincadeira, uma mesa posta com bolo e biscoitinhos de boas-vindas sinalizava o cuidado.


Quem chegou um pouco mais tarde deve ter encontrado a sala escura, onde duas pequenas narrativas audiovisuais puxavam a conversa daquele início de noite. Na primeira história, um pai, de passagem na casa da filha de 11 anos, que ele acabara de conhecer, faz um registro fotográfico precário com uma máquina analógica de plástico. No outro filme, duas mulheres discutiam a responsabilidade pelos cuidados de uma criança, mediadas por uma cerca de arame, dando a ideia de prisão para ambas. De um lado, a mãe; de outro, a avó, preocupada com o cuidado do neto e a possível prisão do filho que não pagava pensão.


A ponta do iceberg importa


Luzes acesas, a professora do Departamento de Educação da UFSJ, Fernanda Omelczuck, começou falando que paternidade precária e sobrecarga feminina são temas frequentemente substituídos pela romantização da maternidade solo nas narrativas.


A plateia interagia, concordando e marcando o tom menos cerimonial que persistiria naquela noite. O tema era um amadurecimento do Fórum das Mulheres das Vertentes, respaldado pelo Ministério das Mulheres e pelos mandatos da vereadora Cassi Pinheiro e da deputada Ana Pimentel.


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Mas que tema, então? A ponta do iceberg, onde uma violência nada sutil impede mulheres de acessarem com segurança seus direitos conquistados de forma plena. Sem deixar de lado a cultura patriarcal, que marca a fundação da sociedade que compartilhamos.


No ano passado, no Espírito Santo, uma vítima de violência doméstica que acionou a Justiça para receber alimentos ouviu do promotor que deveria "aquietar o facho" e ficar o resto da vida com o ex-companheiro. O caso, que aconteceu durante uma audiência em Vitória, foi levado ao Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e ao Conselho Nacional de Direitos Humanos.


Na ação, a mulher, de 41 anos, buscava receber a pensão alimentícia dos cinco filhos que tem com o réu. Ela viveu cerca de 20 anos com o genitor, teria sido agredida várias vezes e solicitado medidas protetivas.


De acordo com reportagem do G1, ela conseguiu a pensão na audiência na Vara de Família de Vitória, mas se sentiu humilhada com as falas do promotor: "Cinco filhos juntos. Vocês deveriam aquietar o facho e ficar o resto da vida juntos, né?".


 A gente tem que debater com o ex-marido e chegar para fazer audiência, e lá virar chacota para o promotor. A gente sai de lá como lixo, né? Fica humilhada mais ainda. A gente denuncia, vira chacota, e aí o que acontece? A gente fica calada e volta para casa", disse a mulher em entrevista ao G1.


Após o episódio, o promotor foi denunciado pelo Programa de Pesquisa e Extensão Fordan, da Universidade Federal do Espírito Santo, por violência institucional. Não soubemos o desfecho da denúncia até o fechamento da matéria e, embora relatos parecidos tenham sido feitos no encontro daquela noite em São João del-Rei, pelo menos com as denúncias dos abusos daqui, nada aconteceu.


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Dororidade


Três advogadas da Vara de Família foram convidadas para discutir os “Direitos e violências contra mulheres-mães no Judiciário”. Elas subiram ao palco para compor a mesa depois de serem anunciadas, e a primeira a falar foi a advogada Luciana Limoeiro.


Ela veio de Jeceaba (a 113 km) para participar do evento. Trouxe um caso dela que foi até matéria do Fantástico (Rede Globo) e falou sobre como a exposição de mulheres nas redes sociais pode depor contra clientes nos processos. Isso acontece porque, segundo ela, o comportamento das mulheres entra em um julgamento. Mesmo que não se trate de conduta moral, mas de direitos à pensão ou, em casos mais graves, de situações de violência sistemática.


Depois, Luciana explicou o quanto isso configura uma perversão do Direito e como é rotina no sistema judiciário. Para ela, a única mudança deve vir de dentro para fora, ou seja, do corpo judicial para a sociedade.


Precisamos de pessoas na condução da justiça brasileira que, de fato, vivam e pratiquem o que chamo de ‘dororidade’... Buscar sentir a dor do outro. Falta empatia e falta acolhimento integral à violência doméstica”, denunciou.


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Apesar do quadro realista de sua denúncia, a advogada ficou animada com a presença das mulheres. “Você viu no evento as mulheres interessadas em beber conhecimento. O número de mulheres desinformadas está diminuindo. A mulher hoje tem coragem de denunciar, mas a justiça não acolhe 100% essa dor. Resolve uma coisinha ali, outra aqui... Não trata a questão com o princípio da celeridade e, com isso, a mulher fica num limbo jurídico, esperando, esperando e sofrendo”, explica.


União e força


A troca entre mulheres permite que uma consciência vá se formando e desconstruindo o mito da supermulher, que sozinha assume múltiplas responsabilidades e renuncia a uma vida social, às vezes a uma educação de qualidade e até à saúde física e mental. Enquanto isso, homens mal arcam com as responsabilidades financeiras que têm com os filhos.


Frequentemente, as mulheres procuram a Justiça apenas por uma necessidade de sobrevivência. E, diante de um juiz, são revitimizadas pela violência institucional. Esta, embasada na ideia de que a mulher deve ser enquadrada num comportamento cultural esperado. Como bem testemunhou uma mulher na plateia enquanto a advogada Ariany Oliveira falava sobre sua experiência em São João del-Rei.


A advogada, que presta assessoria no projeto “S.O.S Marias”, enfatizou a importância de a mulher se sentir fortalecida, sem se abater ou desistir de lutar pelos seus direitos diante das violências vividas. “Hoje, infelizmente, muitas mulheres desistem de tomar providências ou de buscar seus direitos. Por isso, acredito que, se cada uma de nós denunciar esses abusos e desrespeitos, estaremos contribuindo para erradicar a violência. Afinal, o Poder Judiciário deve ser um lugar que protege e garante os direitos de todos, especialmente das mulheres”, pontuou.


O pessoal é político


Apesar do palco, da mesa e da organização de auditório com ares de conferência, desde o início o programa ganhou ares de informalidade. Primeiro, porque havia um consenso natural de se respeitar as emoções afloradas, misturadas ao anseio de justiça.


Segundo, porque a violência doméstica, a discriminação no trabalho e a desigualdade de gênero, expressas em todas as esferas, vivenciadas por todas ali, passam, na verdade, por questões pessoais que se refletem nas relações de poder, desigualdades sociais e questões trabalhistas. Por isso, omitimos nesta matéria muitos dos relatos acalorados expostos.



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Ficou claro que a simples exposição, além de não resolver uma prática estruturada, que se configura até numa cultura machista dentro do Judiciário, seria ineficiente. Além de provocar retaliações e prejudicar processos em andamento.


A pauta, embora tivesse o calor das experiências íntimas a ponto de provocar passeatas e muito barulho, deveria, portanto, ser amadurecida dentro dos termos da lei e dos processos. A advogada Luciana Pena foi quem trouxe aspectos profundos dentro do Direito de Família que fizeram todas refletirem de forma mais ampla e positiva.


Eventos com essa temática têm um papel estratégico e simbólico na desconstrução da cultura machista e desigual que ainda permeia nossas instituições. Quando o sistema de justiça se abre para refletir sobre as desigualdades enfrentadas por mulheres, especialmente aquelas que acumulam o papel de mães e cuidadoras, ele reconhece uma realidade muitas vezes invisibilizada nos autos e nas decisões judiciais”, elogia Luciana.


A advogada acredita que a iniciativa promovida pelo Fórum de Mulheres das Vertentes atinge objetivos importantes, fortalece a rede de apoio feminina e a articulação de mulheres para busca de mudanças no sistema de justiça.


A troca de experiências permite identificar padrões de exclusão e construir estratégias coletivas para enfrentá-los, o que empodera as mulheres fora e dentro da estrutura de poder responsável por dizer o direito das mulheres”, comemora, faz uma aposta e uma sugestão: “O evento é também um marco para instrumentalizar mudanças de práticas e decisões. Pode articular discussões sobre as violências que persistem no sistema de justiça e a necessária inclusão de estudo, difusão e invocação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Isso cria um espaço legítimo para propor transformações no modo como os julgamentos são conduzidos, especialmente nos casos que envolvem família, infância, violência de gênero ou guarda de filhos”.


Segundo dia


O evento não terminaria naquela noite com a fala da Luciana. Ontem (15), as mulheres voltaram a se reunir no Fortim Emboabas. Dessa vez, o programa foi mesmo totalmente embalado pela arte e pela troca íntima de experiências. Algumas mulheres que não estiveram presentes na primeira parte foram na segunda. E o clima de indignação e a urgência de ações estavam no ar.


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Nós ouvimos relatos recorrentes de mulheres que passam por situações assim, mas como é uma violência muito naturalizada, nada é feito para mudar essa realidade. Jogar luz sobre essa forma de violência, trazer à tona os absurdos do machismo institucional que domina o sistema judiciário é um primeiro passo. Isso faz com que as mulheres passem a identificar quando forem vítimas e passem a expor essas situações”, avaliou a vereadora Cassi Pinheiro.


As mulheres voltaram a se reunir no domingo/foto Cassi Pinheiro
As mulheres voltaram a se reunir no domingo/foto Cassi Pinheiro

A terapeuta e educadora parental Lídia Lino, uma mãe solo e sobrevivente de relacionamento abusivo, abriu o evento com o “Sarau das Feras Feridas”. Fernanda Omelczuck lançou o livro Eu Sou Muitas Ilhas, em que narra a vida de muitas mulheres. E a artista da dança, Morena Nascimento, conduziu performances sensíveis com a cantora Ísis de Oliveira.


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A partir deste pontapé inicial, o evento auxiliou também a conectar mulheres que passam por situações semelhantes, de forma a estruturar uma rede de apoio e organizar ações de enfrentamento à violência judiciária”, disse Cassi, com aquela certeza de que as mulheres não estavam mais no mesmo lugar porque tinham dado um passo à frente, como sugere uma música.


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