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Um corpo no mundo diz muito.

Atualizado: 13 de out. de 2020

Brisa Marques ressignifica o mundo e a deficiência com potência e poesia.

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Brisa Marques. Brisa ao sol. Foto: Clarice Panadés.

Para quem não conhece, na mitologia grega, Brisa é uma das formas de Zéfiro, quando no seu papel de deus mensageiro da primavera. Na história de Minas Gerais é uma mana de 35 anos, pessoa com deficiência desde 2007 e mãe de um menino de 4 anos, que inventa a todo tempo formas de inscrever sua existência.


Jornalista, foi a primeira mulher a assumir a diretoria artística da rádio Inconfidência em 2018 e, também, apresentou o quadro “Ação Ilimitada”, do programa “+ Ação”, da Rede Minas, que trazia matérias de esportes paralímpicos.


Escreveu o livro "Entre as veias de fato", publicado pela editora Corpos em Portugal e, em 2018, lançou o segundo livro dela de poemas, “Corpo-concreto”, pela editora Impressões de Minas (Selo Leme).


A poesia de Brisa Marques está na fala, na presença, mesmo que virtual. Mas também está nas canções que cria. Suas obras já foram gravadas por outras mulheres como Juliana Perdigão, Mariana Nunes, Tatiana Parra e a cantora de fado portuguesa Eugênia de Mello e Castro, entre outros intérpretes homens.


Como atriz, trabalhou com o diretor Zé Celso Martinez Correia e, atualmente, participa de duas residências artísticas: "Lab-in-vento" e o "Lab-Cultural", do BDMG Cultural, com tutoria de Grace Passô.


Agora, em outubro, Brisa Marques é também uma das atrações artísticas do Seminário Acessa BH, evento on-line que acontece do dia 26 a 30.


Mana: Então você vem de Curvelo... Uma cidadezinha do interior... E daí se transforma nessa artista, jornalista, múltiplas funções e talentos... Seu currículo é extenso. Fiquei curiosa se você veio de Curvelo criança ou para fazer faculdade na capital. Na minha imaginação faz um filme... Se tinha já uma intimidade com Belo Horizonte... Se veio fazer faculdade, se foi um furacão na sua vida... Como é isso? O que esse Curvelo tem que fez essa Brisa tão forte? Quero entender essa raiz.


Brisa Marques: Sim. Nasci em Curvelo, apesar de não ter nenhum vínculo maior com a cidade. Não tenho família por lá. Meu pai trabalhou a vida inteira em banco. Era sempre transferido de cidade. Ele e minha mãe haviam se casado há pouco e mudaram para Inimutaba, uma cidadezinha bem pequena, ao lado de Curvelo. Mas lá não tinha hospital. Então, cheguei ao mundo, de fórceps, em 1985, por ali.

Mas vivemos uma vida de muitas mudanças, eu, minha mãe e meu pai. Morei em Pitangui, Divinópolis, Sabará, Mauá, Santo André... Nessas cidades, me mudava de bairro várias vezes... Uma vida bem movimentada. Não guardo bem as idades e os locais. Mas me lembro de estar em Belo Horizonte aos 6... Dos 12 aos 15... E aos 17, quando entrei em duas faculdades: jornalismo e artes cênicas. Desde então, estou por aqui, com algumas passadas prolongadas em Portugal.

Talvez a pessoa que sou hoje tenha muito a ver com essas andanças... Conheci muita gente, tive que me desapegar muitas vezes... Não sei se minha força está em Curvelo apenas. Acho que o caminho como um todo é que nos constrói. Todas as marcas. Vivi muitos furacões sim. Fui uma criança e adolescente que apanhou muito. Convivi com muita violência, muitas brigas. Várias tragédias familiares.


Mana: E essa sua relação com a palavra e a música? O que vem antes?

Brisa Marques: A palavra e o som pra mim, hoje, tem um sentido imenso. Através dessas linguagens, construímos o mundo. Apesar de escrever desde pequena, penso que nenhuma palavra é capaz de alcançar a nossa complexidade como seres humanos. São formas de existir. Tudo ao mesmo tempo.


Penso que viver em harmonia com um mundo doente é um grande desafio. Brisa Marques

Mana: E o teatro? Assume o lugar do corpo, como linguagem do corpo?


Brisa Marques: O teatro, pra mim, é uma forma de libertação do corpo, é a subversão das normas que nos são impostas socialmente desde quando nascemos; é a possibilidade de me reconhecer como canal de expressão artística na integralidade do meu ser. Gosto de olhar o teatro como a ressignificação da presença; como ritual.


Mana: Como o corpo fala do mundo e para o mundo? Imagino que você tenha uma visão mais íntima em relação a isso...


Brisa Marques: Penso que o corpo é como nos relacionamos socialmente e é a partir dele que também podemos nos expressar artisticamente. Penso que vivemos numa sociedade opressora e violenta, que nos condiciona, a todo momento, a pertencermos a padrões corporais normativos. É impressionante a nossa incapacidade de percebermos o quão diferentes somos uns dos outros. Cada um de nós é único e, para mim, a beleza está aí, nessa descoberta, nessa troca, nos encontros entre corpos diferentes.

Um corpo no mundo diz muito. O que queremos dizer? Eu, particularmente, tenho tido vontade de me cuidar e cuidar do mundo; tentar reverberar no mundo o que espero que o mundo reverbere em mim. Sempre fui muito rebelde, indignada, inconformada com a miséria, a violência, o abuso de poder, a desigualdade, a fome... Atualmente, tenho pensado em mudar as estratégias de "guerrilha"; cultivar a paz, o amor e atuar nos espaços possíveis; a arte, sem dúvidas, é uma delas.


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Brisa Marques. Brisa ao sol. Foto: Clarice Panadés.

Mana: Tomando a pergunta anterior, como foi adaptar uma nova realidade de corpo na sua vida? Como foi fazer essa nova leitura do início até hoje?


Brisa Marques: O nosso corpo muda o tempo inteiro. Nem sempre de maneira radical, como foi o meu caso. Minha queda foi uma oportunidade imensa de aprender a buscar a graça de viver, mesmo com dores, insensibilidades, disfuncionalidades, cicatrizes e muitas outras mudanças fortes. Penso que viver em harmonia com um mundo doente é um grande desafio.

Muitas vezes, nossa tendência é reagir ao meio externo como ele nos apresenta; às vezes sentimos raiva, culpa, medo, somos violentados, mas é também tão imenso o nosso mundo interno. Que pena que nem sempre temos ferramentas para lidarmos com tantas informações. Eu mesma acredito que, para além desse corpo que habitamos, temos várias outras camadas corpóreas que muitas vezes não acessamos. Além, é claro, de toda essa matéria que podemos experimentar de infinitas maneiras. Somos devir.

Mana: Vi na descrição do seu instagram que você está resignificando o termo “pessoa deficiente” para "artista défi" (de desafio, em francês). É uma apropriação sua ou uma espécie de movimento que você está criando com outros artistas ou que pretende expandir? Do que se trata buscar em outra língua uma nova definição para si?

Brisa Marques: Eu ainda não consigo me adaptar com naturalidade à expressão "pessoa com deficiência" (por mais que a "pessoa" venha antes da deficiência). Uso quando a burocracia ou a legalidade me exige. Acho que a abreviação "défi" tem um caráter neutro, que não vem carregado de julgamentos ou sentidos pejorativos.

É uma opção pessoal, por identificação. Tem mais a ver com minha personalidade descontraída. Gostei ainda mais quando descobri que défi, em francês, significa desafio. Nessa gaveta me cabe, pensei. Foi algo bem despretensioso, mas vi que outras pessoas que atuam na luta pelos direitos das pessoas com deficiência também usam. Me parece que não sou a única; isso é expansão.


Acho que sociedade e deficiência física não são duas "coisas" separadas. A sociedade é uma coisa só, formada por seres diversos e diversas (...). Brisa Marques.

Mana: Li também que fazem 13 anos que você se viu nesse novo corpo... O que e como aconteceu? Desculpa perguntar, mas não encontrei o motivo que te trouxe a esse corpo de hoje...


Brisa Marques: Adquiri minha lesão medular porque pulei da janela aos 21 anos e quebrei várias vértebras da coluna, os dois calcâneos, o cóccix e o sacro. Sobre como isso aconteceu, ainda não escrevi o livro, mas é uma longa história.

Mana: E a Brisa mãe? Gerar um outro corpo e criar um ser humano num tempo de tantos medos e incertezas...

Brisa Marques: Parir um filho foi mais uma dessas experiências que um corpo pode passar. Mais mudanças. Cada pessoa tem uma história, não é?! Aqui, acho que cabe outro livro, mas a sinopse é que João chegou para me ensinar muitas coisas. O cuidado é um grande desafio. Quero exercitá-lo comigo, com os outros e outras, com o mundo... Tenho associado a experiência de se ter um filho a essa palavra: cuidado. Acolhamos os medos e as incertezas com amor e confiança.


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Mana: O que você acha que precisa mudar na sociedade para que ela possa melhorar a relação da pessoa com deficiência?

Brisa Marques: Acho que sociedade e deficiência física não são duas "coisas" separadas. A sociedade é uma coisa só, formada por seres diversos e diversas, altos e altas, baixos e baixas, gordos e gordas, magros e magras, brancos e brancas, pretos e pretas, défis, jovens, velhos e velhas, homens, mulheres, crianças, trans e por aí vamos [a Mana optou não utilizar a palavra com “x” porque prejudica a leitura de pessoas com deficiência visual que utilizam softwares de leitura].

Acho que quando começarmos a buscar individualmente o que somos na essência e nos libertarmos da superfície para existirmos como natureza, nos libertaremos também desse sistema que nos impõe regras, formas e maneiras de existir. Aproveitemos enquanto estamos "humanos e humanas"; é uma excelente oportunidade. Observemos a natureza; como tem cores e formas variadas. Se buscarmos o bem comum, ampliando a consciência e os olhares, exercitando a troca, a escuta, a convivência com o inabitual, com o que é diferente de nós, nos desfazendo de certezas e percebendo que somos seres mutáveis que habitam a mesma casa, talvez consigamos caminhar num sentido mais profundo do que seja a palavra "humanidade".

Mana: Vi que você tem essa live... “Corpo, hospitalização e poesia” e vai participar do Seminário Acessa. Você tem notado uma abertura maior para se conversar sobre a pessoa com deficiência e quebrar estereótipos? Como faz essa avaliação? Qual a importância desse tipo de debate?

Brisa Marques: Por incrível que pareça, a pandemia e a concentração da audiência no mundo digital, fez com que pessoas com dificuldade de locomoção tivessem a oportunidade de ter mais voz. A rua nunca foi um espaço acessível. As políticas públicas brasileiras estão bem distantes da realidade das pessoas com deficiência, em geral. E aí não digo apenas de pessoas com deficiência física. As pessoas com deficiência ainda são invisibilizadas e excluídas da sociedade. Esse debate é humano; deveria estar em todas as pautas. Mais de 20% da população brasileira é formada por PcDS. Aonde estão essas pessoas? As fissuras começam a aparecer, mas o trabalho é árduo.

Mana: Quais os seus projetos? Algo que queira divulgar ou que não conversamos que você queira falar?

Brisa Marques: Atualmente estou em duas residências artísticas: "Lab-in-vento", com a Dudude Hermann, uma grande dançarina e coreógrafa mineira e o "Lab-Cultural", do BDMG Cultural, com tutoria de Grace Passô, outra artista maravilhosa com quem sempre quis trabalhar. Então, nesse momento, estou realizada artisticamente porque me dedico a algo que acredito, com o meu corpo totalmente disponível para vivenciar esses processos. Tenho feito algumas curadorias de editais artísticos e contribuído com processos políticos que valorizam questões relacionadas à saúde, à cultura, à educação, à garantia de territórios e aos direitos humanos. Espero permanecer nesse caminho, descobrindo maneiras alternativas de sobrevivência e acreditando nesse mundo já tão devastado por nós, humanos.

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Programação Seminário @AcessaBH.




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