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Entre territórios imaginados e realidades negras

Léonora Miano e Cidinha da Silva desdobram saberes ancestrais, estéticas e potenciais de transformação social em mesa no Artes Vertentes.


Cidinha e Leonora, grande encontro no Artes Vertentes/ Foto: Daniela Mendes
Cidinha e Leonora, grande encontro no Artes Vertentes/ Foto: Daniela Mendes

A atmosfera de expectativa e reverência tomaram conta dos jardins do Iphan. O Artes Vertentes colocou numa mesma mesa duas potências da literatura contemporânea: escritora mineira e historiadora Cidinha da Silva e a franco camaronesa Léonora Miano.


Era uma tarde de quarta-feira e as cerca de 30 cadeiras do espaço foram quase preenchidas. Afinal, Cidinha soma em seu currículo 23 livros, cada um com sua parcela de fãs. E Léonora desponta no Brasil, desde a Feira Literária de Parati (FLIP) de 2024, quando lançou três dos seus livros: os romances “Stardust”, “A Imperatriz Vermelha” e o ensaio “A Outra Linguagem das Mulheres”.


Mesa e cenário. Da esq. para a direita: Luiz Gustavo, Cidinha, Léonora e Maria/ Foto: Daniela Mendes
Mesa e cenário. Da esq. para a direita: Luiz Gustavo, Cidinha, Léonora e Maria/ Foto: Daniela Mendes

Uma pequena livraria improvisada num banco de jardim espalhava ali os títulos instigantes das duas autoras. Os de Cidinha gigantes no pugilismo que nocauteia leitores já nos títulos. Como “Um Exu em Nova York” ou o celebrado “Só bato em cachorro grande, do meu tamanho ou maior: 81 lições do método Sueli Carneiro”.


As duas carregavam o peso da história que fazem na literatura. Uma pena que sem diálogo entre elas. Apesar dos esforços de tradução do anfitrião e mediador Luiz Gustavo de Carvalho e a diretora artística Maria Vragova, o nosso pensamento parecia atravessar lentamente o Atlântico, da América do Sul à África a cada pergunta, em um vai e vem que custava algum preço ao encadeamento das ideias das autoras. Como se duas entrevistas diferentes acontecessem simultaneamente em paralelo.


Mas, fazer o que? Tiradentes é só mais um endereço depois de Babel. E, por fim, fomos nos acostumando à comunicação. Daquela tarde bonita, que nossa cidadezinha é tão generosa em oferecer dia após dia, navegamos pela literatura negra e feminina destas duas escritoras.


Viagens e novos territórios


Léonora/Foto: Daniela Mendes
Léonora/Foto: Daniela Mendes

A pergunta da mesa era “Como construir memória quando fomos privados de imagens?”. Léonora responde que não parte da imagem que falta, mas da palavra. Com isso, a dimensão da falta passou ao do desejo e, por extensão, à dimensão poética e criativa das escritoras.


As características de uma literatura diaspórica foi se delineando com a mesa transportando os livros das escritoras e se fazendo de navio no vai e vem entre África e Américas. A reinvenção da memória e dos territórios apresentou-se como solução criativa para os golpes coloniais sofridos no decorrer da história. Mostrou-se como alternativa para que o passado não fique nas mãos de apenas um lado da história na medida em que se presentifica pela criação.


Cidinha convidou para mesa o pensamento da poeta, ensaísta e dramaturga Leda Maria Martins, também presente na programação do festival, através da formulação acerca da encruzilhada como uma episteme. Esta, como forma de interpretar o mundo e produzir conceitos, oferecendo quatro caminhos: o futuro, as laterais e o passado, representado pelo imenso “líquido amniótico Atlântico” que separa o continente africano das Américas e da Europa.


Ela explicou que sua própria obra se alimenta desse líquido amniótico simbólico: “O que procuro fazer é entender que nós, da África, sabemos o que foi África pelo que reconstruímos aqui.”, afirma.


Nos últimos anos, segundo Cidinha, a literatura brasileira tem ganhado força com escritoras e escritores negros que incorporam essa herança na sua produção literária, ressignificando a história e trazendo à tona experiências que antes estavam ausentes dos registros oficiais. O que era marginalizado pelo colonialismo agora encontra espaço no mercado editorial, ampliando a biodiversidade literária do país.


Gustavo traduzia a pergunta e a resposta. Maria traduzia para Léonora os comentários de Cidinha/ Foto: Daniela Mendes
Gustavo traduzia a pergunta e a resposta. Maria traduzia para Léonora os comentários de Cidinha/ Foto: Daniela Mendes

A escritora também sublinhou a função da literatura como ferramenta de memória e resistência: “A literatura surge como um arquivo alternativo diante da falta de registros, muitas vezes voluntária, do colonialismo. É alternativo e alterativo também, porque essa construção, como diz Jenny Nunes, ‘refloresta o imaginário’.”


Para Cidinha, a África que se faz presente na diáspora não é o continente físico, mas o que foi possível reconstruir nas Américas e na Europa, nos territórios onde a população negra foi lançada e precisou reinventar-se.


Léonora completou ao refletir profundamente sobre poder, identidade e reconstrução da África e de seus povos. Ela destacou que a ficção é um espaço sagrado de invenção, onde se pode explorar territórios imaginários, como “Katiopa” (criação dela). Com isso, se deixa para trás termos coloniais enquanto cria mundos próprios.


Contudo, foi surpreendente ouvir ela dizer e tomar nossa atenção profunda quando diz que, na vida cotidiana, o uso de “África” só faz sentido quando o continente for capaz de recuperar sua autonomia e imprimir suas próprias aspirações nos nomes e conceitos herdados do colonialismo europeu. Um uso menos utópico do termo, ou melhor, não uso.


Mas essa postura também reflete seu compromisso da literatura como ferramenta de memória crítica e resistência cultural. Miano não pretende apagar o continente ou sua história, mas desafiar as categorias impostas, convidando leitores e escritores a pensarem a África, ou melhor, as várias Áfricas, para além da nomenclatura colonial. O importante aqui é descobrir e valorizar o que os próprios povos africanos e descendentes da diáspora constroem e reconstroem em suas vivências e narrativas de um continente tão diverso.


Nesse vai e vem das ideias, os rastros dos pensamentos das autoras foram criando um caminho nos nossos propósitos literários. Mas a noite começou a ocupar a tarde. A ponte holográfica que uniu as literaturas das autoras se desmanchou. Fomos melancolicamente para casa como quem volta de uma festa, porém com os sonhos revigorados pela ideia de que uma nova literatura tem nome de mulher, é negra e pode atravessar o Atlântico quando bem entende porque soube tomar da diáspora a capacidade de navegar pelos tempos.


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