top of page
Logo da criadora Daniela Mendes

Memórias, jardins e colchas de histórias

Atualizado: 16 de set.

As trajetórias de Natália Chagas e Wendie Zahibo revelam que a arte nasce do cotidiano, resiste ao apagamento e afirma o pertencimento.


Artes Vertentes


Da esq. para dir.: Natália, Wendie e Isabela/Foto Daniela Mendes
Da esq. para dir.: Natália, Wendie e Isabela/Foto Daniela Mendes

Se unirmos o que disseram a fotógrafa Natália Chagas e a multiartista francesa Wendie Zahibo, fica claro que a arte não está apenas nos museus, nos palcos ou nas instituições. Realizar uma obra artística nasce do corriqueiro, como preparar o café da manhã, observar as crianças indo para a escola ou cuidar do jardim. Mas não somente isso. Para que exista arte também é necessária a intermediação da memória na leitura do cotidiano recriando sentidos. Dito isso, ela ganha um status de necessidade vital.


O encontro entre as duas artistas aconteceu nesta segunda-feira, 15, no Centro Cultural Yves Alves dentro da programação do Artes Vertentes com mediação de Isabela Nogueira. Na galeria no andar superior, Wendie também expõe suas obras na coletiva “Entre as Margens do Atlântico”, que constrói um percurso entre os continentes africano, europeu e americano. A ideia é que corpos, memórias e imaginários se reconheçam.


Lá de Santa Rita de Ibitipoca


Natália/ Daniela Mendes
Natália/ Daniela Mendes

Natália cresceu ouvindo as narrativas do avô lavrador, um homem simples da terra, em Santa Rita de Ibitipoca, município com pouco mais de três mil habitantes. Com o tempo, o patriarca perdeu a memória por causa do Alzheimer. Isso a tocou de tal forma que ela percebeu a importância de registrar lembranças.


Já em São João del-Rei, tornou-se fotógrafa e criou o projeto Nativa, dedicado a retratar mulheres reais e diversas. Apresentou uma proposta na ação cultural do Festival Artes Vertentes e começou a trabalhar com moradoras de Tiradentes. Em vez de ser apenas um espaço para ensinar fotografia, o projeto evoluiu para um lugar de trocas. “O que elas mais queriam era falar, recordar, se reconhecer em imagens que nunca tiveram”, narra Natália.


Muitos jovens adultos não têm a dimensão de como a relação do ser humano com a fotografia mudou. Para resumir essa questão, Natália revela algo inédito para muita gente, mas nem por isso extraordinário num país tão desigual: devido à falta de acesso à tecnologia, essas mulheres não possuíam registros fotográficos de si mesmas na infância e na juventude.


A partir dessa lacuna, Natália construiu com elas novas memórias. Com a ajuda da inteligência artificial, criou fotografias delas enquanto meninas e, depois, aplicou intervenções de bordados. Ao costurarem sobre as imagens, ao resgatarem lembranças perdidas, essas mulheres transformaram ausência em presença, silêncio em pertencimento.


Participantes da ação Artes Vertentes e público/Daniela Mendes
Participantes da ação Artes Vertentes e público/Daniela Mendes

No encontro de Natália com Wendie durante o Artes Vertentes 2025, as mulheres também estiveram presentes, e Natália levou os retratos impressos em um tecido, em uma colcha feita por sua mãe, e a estendeu no chão. Em volta, as pessoas se sentaram para escutar sobre aquela experiência e a palavra “relíquia” ficou desprovida de poeira, mofo, desgaste ou qualquer outra coisa que outrora remetia a um tempo estático.


Natália lembrou que, embora tenha ocupado espaços reconhecidos de exposição e visibilidade artística, a experiência revelou preconceito contra mulheres que não tem reconhecimento. Para ela, a arte, nesse caso, também remete ao pertencimento. Afinal, diante do processo de transformação de Tiradentes em cidade turística, elas, como moradoras antigas, se sentem excluídas dos espaços que costumavam ocupar em seu dia a dia.


ree

O mergulho no ensinar, por fim, fez dela uma aprendiz. A experiência também resultou em um livro artesanal, projeto de seu mestrado, reafirmando que a verdadeira memória da cidade está nas pessoas e nas ruas que elas construíram e habitaram.



Do outro lado do oceano


ree

A francesa Wendie, filha de imigrantes africanos, compreendeu que sua avó analfabeta era capaz de transformar um terreno vazio em um jardim florido. Para ela, cozinhar, moldar cerâmica, cuidar, bordar ou cultivar também são expressões de criatividade e resistência. E juntando estas ideias, descobriu que arte não pode ser privilégio: mas sobrevivência, tradição e liberdade de imaginar.


Ela cresceu em uma família sem ligação direta com a arte: seus avós, que nasceram na Costa do Marfim e na África Central, eram analfabetos, e ela foi a primeira a chegar à universidade. Apesar da pressão para ter um “trabalho estável”, sentia dentro de si a vocação artística, principalmente pela fotografia, poesia e escrita.


Wendie teve a mesma percepção de Natália na França. Ao pesquisar suas raízes africanas e caribenhas, ampliou sua concepção e viu na prática algo além de qualquer lugar institucional e hierarquizado. Notou que o fazer artístico nasce de uma necessidade da vida diária, presente no cuidado e na dedicação às mínimas coisas. Foi isso que lhe deu sentido e legitimidade para se assumir como artista, dentro dessa tradição.


Para ela, a fotografia é mais do que imagem: é encontro, diálogo e construção de sentidos. Wendie prioriza abrir espaços de liberdade, sonho e protagonismo, especialmente para as mulheres, em meio a uma sociedade marcada por violências. Hoje, enxerga sua trajetória como a realização dos sonhos das gerações anteriores e afirma que sua arte é sua religião, um espaço de imaginação e poder transformador.

Wendie./Daniela Mendes
Wendie./Daniela Mendes

Recriar espaço e sentido


Das duas histórias emerge uma mesma compreensão: arte é resistência contra o apagamento, é gesto cotidiano, é memória que se borda e se reinventa. Arte é cozinha, jardim, fotografia, poesia, conversa e colcha coletiva. É aquilo que dá às pessoas a chance de se verem protagonistas de suas próprias vidas, mesmo em sociedades violentas ou excludentes.


Arte, nesse encontro, é vida em estado de criação: um espaço onde sonhar não é luxo, mas direito. Por muito tempo, arte foi tratada como privilégio, coisa de museu, de palco, de instituição. Mas quando ouvimos histórias como as de Wendie Zahibo e Natália Chagas, percebemos que ela é sobrevivência, é cotidiano e memória viva.


Tanto a francesa quanto a brasileira mostram que arte é mais do que técnica: é possibilidade de existir, de sonhar, de se ver protagonista da própria vida. E, nesse processo, o que se tece não é só beleza: é liberdade.


Serviço


A exposição “Entre as Margens do Atlântico” também conta com obras de Caetano Dias, Dinho Araújo, Éder Santos e Patrick Ayler.

Co-criaram com Natália Chagas as participantes da Ação Cultural Artes Vertentes: Abadia Maria da Costa, Ana Sobral, Andreia Aparecida Martins Laurindo, Angela Firmino Dias, Carmem Lucia de Paiva Silva, Daniela de Souza, Eliana Aparecida Vieira dos Santos, Ermínia Trindade do Nascimento, Maísa Malta, Maria Lúcia Da Paz Sacramento, Maria Silvia Gomes Oliveira, Marisa Gonçalves Malta, Odília Paineira de Freitas, Regina Celi dos Santos, Rose Ellen dos Santos, Sônia Ursula, Valéria Borges, Zélia Marta de Oliveira.

O Festival Artes Vertentes segue até 21 de setembro e a maior parte da programação é gratuita. Mais detalhes no site artesvertentes.com

Comentários


bottom of page