Infância em foco
- Daniela Mendes
- 30 de out.
- 6 min de leitura
Atualizado: 31 de out.
Audiência pública propõe integração entre educação, saúde e assistência social para consolidar uma política municipal voltada às crianças e adolescentes.

A Câmara Municipal de Tiradentes realizou, ontem, 29, uma audiência pública dedicada à construção de uma política municipal voltada à infância e à adolescência. A iniciativa, proposta pela vereadora Suelen Cruz, marcou também os 35 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e reuniu vereadores, representantes de entidades e profissionais das áreas de educação, saúde e assistência social.
O vereador Paulo Wagner em sua fala de abertura, destacou o papel histórico do ECA como “uma poderosa ferramenta de defesa e proteção”. Ele reforçou ainda que o encontro tinha como objetivo propor caminhos e fortalecer o trabalho dos conselhos tutelares e das redes de apoio locais. Outros parlamentares ressaltaram a importância do debate conjunto para propor políticas efetivas. “Viver numa cidade de oito mil habitantes é lidar com a responsabilidade direta de cuidar de nossas crianças e adolescentes”, afirmou um dos vereadores.
O que é o ECA e valorização do Conselho Tutelar

O ponto alto da audiência foi a fala do assistente social Alex Barbosa, representante da APAE e do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA). Barbosa resgatou a importância do ECA como marco civilizatório e lembrou que, antes dele, prevalecia a chamada “doutrina do menor em situação irregular”. “O ECA rompe com essa lógica e estabelece o princípio da proteção integral. A criança e o adolescente deixam de ser vistos como objetos de intervenção do Estado e passam a ser reconhecidos como sujeitos de direitos”, explicou.
Ele também alertou para a situação do Conselho Tutelar em Tiradentes, que atualmente opera com apenas três conselheiros. “Falta reconhecimento profissional. Não é só questão de recursos, é questão de valorização. Não é admissível que um conselheiro tutelar receba apenas um salário mínimo”, pontuou, defendendo a criação de políticas de formação e remuneração adequadas.
Barbosa apresentou ainda dados que apontam que hoje há 21 casos de evasão escolar entre adolescentes no município, o que, segundo ele, “exige escuta ativa e políticas de enfrentamento”.
Desafios concretos

A secretária do Conselho da Criança e do Adolescente, Ana Carolina Souza, trouxe uma análise técnica sobre os desafios de consolidar um “Plano Municipal da Primeira Infância”, projeto em elaboração desde 2022. “O diagnóstico é o ponto de partida. Precisamos compreender o território, os dados reais e as condições de atendimento das crianças de 0 a 6 anos”, explicou.
Carol também destacou problemas de inconsistência nos dados públicos enviados ao Tribunal de Contas de Minas Gerais, o que afeta a precisão dos indicadores municipais. “Não basta boa vontade; política pública se faz com planejamento e dados exatos”, afirmou. Segundo ela, os próximos passos incluem a aplicação de questionários em creches e escolas, além de levantamento de informações pelas agentes comunitárias de saúde, Na sua opinião, “as únicas que visitam todas as casas e podem garantir a universalidade das informações”.
Iniciativas que deram frutos

A nutricionista da secretaria de saúde Kellen Alessandra da Silva Castelo Branco, representante também da Casa Nutri, emocionou o plenário ao relatar o impacto do projeto comunitário que coordena em Tiradentes. Criada em parceria com o Instituto Tragaluz e a Prefeitura Municipal, a iniciativa tem sido fundamental para retirar o município do mapa da fome, onde figurava em 2022 com altos índices de desnutrição infantil.
“Em 2022, Tiradentes estava no mapa da fome. Tínhamos muitas crianças com baixo peso e casos de subnutrição crônica”, lembrou Kellen. A Casa Nutri funciona como uma rede de apoio integrada, envolvendo profissionais de saúde, educação e agricultura familiar. Além da prefeitura, participam parceiros como a Emater e o Instituto de Giarola, responsável pelo fornecimento de mudas cultivadas pelas próprias crianças.
O projeto acompanha crianças em situação de vulnerabilidade nutricional identificadas pelo SISVAN (Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional). “Quando identificamos um alerta de peso ou estatura, essa criança é inserida no projeto e passa a ser acompanhada mensalmente”, detalhou.
A cada visita, são registrados peso e altura, e o progresso é medido pela caderneta de saúde da criança, instrumento que ela defende como um documento essencial. “A curva da caderneta mostra quando há algo errado, e a omissão de dados é também uma forma de negligência”, alertou.
Ela também reforçou a ideia anteriormente apontada por Carolina de integrar os setores da saúde, assistência social e educação. “Temos crianças que só conseguem se desenvolver quando o CRAS entra, quando a escola participa, quando o pediatra observa a curva. É um trabalho de rede, ninguém faz sozinho”, destacou.
Os resultados são expressivos: “Estamos quase erradicando a desnutrição infantil em Tiradentes”, comemorou Kellen. Ainda assim, ela alerta para os desafios que persistem. “Existem desnutrições secundárias, ligadas a patologias, que não conseguimos tratar apenas com alimentação”. Disse se referindo ao afeto, sono, estímulo, segurança alimentar e emocional.
Trabalho integrado

A secretária municipal de Assistência Social, Nayara Cristina Nascimento, destacou a importância de fortalecer a rede intersetorial e de integrar os sistemas de dados entre União, Estado e municípios para garantir políticas públicas mais eficazes voltadas à infância e à adolescência. O que aponta para um consenso em todas as falas.
Nayara comentou que a equipe da secretaria ficou alarmada com os dados recentes apresentados sobre evasão escolar e insegurança alimentar no município. “Da mesma forma que a Carol ficou assustada com os números, nós também ficamos. Esse tema foi amplamente debatido na conferência estadual de assistência social. Lá, reforçamos a urgência de criar um sistema interligado de informações entre as esferas municipal, estadual e federal”, explicou.
Segundo ela, a ausência desse cruzamento de dados prejudica o planejamento e a execução das políticas públicas. “O Bolsa Família, por exemplo, é um sistema que deveria nos ajudar, mas ele não gera os dados necessários. É atualizado a cada dois anos, e muitas vezes não conseguimos saber se a criança está estudando, se está dentro do peso ideal ou com as vacinas em dia. Recebemos apenas a informação de bloqueio do benefício, sem saber o motivo real”, criticou.
A secretária defendeu que essa integração precisa ser pensada “de cima para baixo”: “A gente precisa que isso venha do Estado e da União, porque aqui na ponta sofremos com a falta de dados para elaborar políticas públicas de qualidade. E política pública não se faz sozinha, ela é construída de forma coletiva, com o Legislativo, o Executivo, os conselhos e a sociedade civil. ”
Inclusão e equidade

A secretária de Educação, Mara Marcelina Rodrigues Almeida ressaltou que o trabalho da secretaria vai além do ensino tradicional, buscando garantir que todas as crianças tenham acesso a uma educação de qualidade, independentemente da condição socioeconômica.
Segundo ela, a secretaria atua com uma equipe multidisciplinar, composta por assistente social, psicóloga e nutricionista, para assegurar um atendimento integral. A gestora enfatizou a importância da intersetorialidade, a cooperação entre educação, saúde e assistência social, como eixo fundamental da política pública municipal. “Não adianta identificar na escola que a criança tem insegurança alimentar ou sofre violência doméstica se esses problemas não são resolvidos fora dela. É preciso que toda a rede de apoio funcione”, declarou.
Encorpou o pedido para que as reuniões intersetoriais voltem a ocorrer com qualidade, e que a sociedade civil também participe do processo. “A educação não pode resolver tudo sozinha. Precisamos da participação das ONGs, das empresas, da comunidade. Só assim construiremos uma educação mais justa e um futuro mais digno para as nossas crianças.”
Na mesma audiência, vereadores, professores e representantes da APAE de Tiradentes discutiram também os desafios enfrentados pelas crianças com deficiência, especialmente após deixarem a rede municipal. O problema, segundo os participantes, é a falta de continuidade no atendimento especializado quando os alunos ingressam na Escola Estadual Basílio da Gama.
O direito ao lazer e outras iniciativas que visam contemplar os direitos previstos no ECA foram apresentados em sinal de um primeiro passo para a construção de uma política municipal para crianças e adolescentes.







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