Em marcha! Somos todas redestinas.
- Daniela Mendes
- 24 de nov.
- 7 min de leitura
Negros na piscina, a história do MNU e desdobramentos simbólicos que nos levam à ideia do bem viver, reinvindicação central na 2ª Marcha das Mulheres Negras.

Em 1978, quatro garotos negros de 14 e 15 anos faziam parte do time de vôlei do Clube Regatas Tietê (SP). Se uniam pela ilusão generosa de que o esporte era um território neutro, um lugar onde só valia a força do saque, o talento de um bloqueio e a coragem de fazer uma história diferente, de glória pela via do esporte.
Já se contavam 90 anos desde a abolição da escravatura. Seus pais haviam superado o passado desumano e estes quatro garotos só conheciam a rotina própria de uma família de trabalhadores da classe média: escolas públicas, mochilas surradas e sonhos novos em folha.
Nenhum dos quatro era sócio do Clube Tietê. Foram convidados para jogar e defender a instituição nas quadras. Um convite que incluía treinos sérios em rotinas puxadas pela crença na superação pela disciplina. Por três meses, tudo parecia certo. Até que descobriram que havia um lugar onde o talento não era suficiente para os levar: a piscina.
A diretoria do clube se inquietou quando deu conta que os esportistas tinham direito às dependências sociais. Chamaram o treinador em reservado e disseram: se esses negros começarem a frequentar a piscina do clube, muitos sócios vão rasgar seus títulos.
O treinador, que também era um educador, reuniu todos os atletas, brancos e negros, e contou que a diretoria havia pedido que dispensasse os quatro negros, não por desempenho, mas pela cor da pele. Houve ainda o detalhe perverso que disseram ao treinador e que é a cara do racismo à brasileira: disseram que, no caso de um deles, talvez o tolerassem, porque, segundo a cabeça de alguns, ele seria “menos preto”.
Não houve hesitação entre os quatro, tampouco entre os colegas. Saíram todos do time. O grupo inteiro, equipe técnica inclusive. Saíram com a altivez própria de quem toma um golpe baixo. E a história vazou. Ganhou a imprensa.
Os quatro eram muito jovens para entender a profundidade do abismo que se abria diante deles. Naquele instante, sentiram só a adrenalina, a agitação, a denúncia. Um deles foi chamado a depor num antigo órgão repressivo da ditadura militar. Entrou com o pai. E dos corredores, ouvia-se: “Qual o caso? Uso de drogas? ”.
O pai se entristeceu de um jeito que não se expressa com palavras, mas com o peso de uma mão no ombro do filho, tratado como réu sem culpa alguma a não ser ter nascido negro.
Era 1978. A ditadura se arrefecia, mas o medo ainda tinha endereço e as vítimas cara e cor. E, para aqueles meninos, ser negro começou a pesar. Um deles, que costumava visitar a casa do amigo caucasiano, apelidado de “alemão”, começou a se sentir menor, apesar do afeto. O que havia mudado? Nada no trato. Tudo na consciência. A diferença foi desvelada.
Tal sentimento se espalhou por outras pessoas negras, já inflamadas pelo assassinato de Robson Silveira da Luz. Ele era um operário negro que foi preso, torturado e morto em uma delegacia de polícia, sob a acusação de ter roubado frutas em uma feira.
Em 7 de julho de 1978, mais de duas mil pessoas se reuniram em frente às escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, em plena Ditadura Civil-Militar (1964-1985). Esta cena entrou para a história do país e, principalmente, marcou a criação do Movimento Negro Unificado (MNU).
Negros na rua, pauta em dia!

Ainda naquele ano, o MNU soltou um manifesto, em que propunha o 20 de novembro como dia da Consciência Negra, já comemorado desde 1971 no Rio Grande do Sul, pelo grupo Palmares, como um dia em memória de Zumbi.
Foi o MNU também que deu origem a várias outras organizações negras nos anos 1980, levou a discussão racial para os partidos de esquerda, lutou pela criação de secretarias de combate ao racismo em vários governos estaduais e municipais. Além de entrar em outros grupos da sociedade civil e sindicatos pelo Brasil afora para introduzir a discussão racial e retirar a mordaça do autoritarismo. Já que desde então era proibido falar de racismo no país.
Ao longo de mais de quase cinco décadas, o MNU foi pioneiro na discussão do feminismo negro. Lélia Gonzalez, Neuza Maria Pereira, Vera Mara Teixeira e depois Luiza de Bairros, Angela Gomes e tantas outras colocaram em discussão as especificidades da vida das mulheres negras. A saber, a tríplice exploração que sofriam como trabalhadoras, mulheres e negras. Isso num tempo que a voz do feminismo era completamente branca.
O fato aqui é que tanta luta e conquista tenha como estopim a proibição de quatro meninos entrarem na piscina de um clube. A violência de estado não é diminuída ante apenas este acontecimento, mas chamamos a atenção para quanto o simbólico da piscina proibida atingiu em cheio as pessoas.
O bonde de São Januário.

Voltemos ao tempo de Getúlio Vargas, para mais um fato simbólico que nos faz refletir. Naquela época (1930-1945), o Estado moldou um moralismo em torno do trabalho, elevando-o a dever patriótico, prova de dignidade e caminho único de pertencimento nacional.
A imagem do trabalhador ideal serviu tanto para proteger quanto para controlar: ser bom cidadão era obedecer, produzir e não reclamar. Mas mesmo quando trabalhava e abria mão do lazer, o negro seguia à margem, sem ser plenamente reconhecido como cidadão.
Uma nota de rodapé da história é ainda mais simbólica e dá a pista onde esta história vai chegar. O samba “O Bonde de São Januário”, de autoria dos geniais Wilson Batista e Ataulfo Alves, ambos negros, cantada pela voz de Ciro Monteiro, foi censurado na década de 1940.
A letra dizia: “O bonde de São Januário/leva mais um sócio otário/só eu não vou trabalhar”. A censura bateu em cima, determinou que a letra fosse modificada e, ao final, ela ficou assim: “Quem trabalha é que tem razão/ eu digo sem medo de errar./ O bonde de São Januário, leva mais um operário, sou eu é que vou trabalhar”. Enfim, Getúlio colocou os negros “malandros” para trabalhar.
Hoje, esse moralismo reaparece em outra forma. veja bem, não estamos nos referindo ao trabalho como um mal em si. Nos referimos a sua forma exploratória. Na sociedade do cansaço, não há patrão visível, mas um comando interior que exige desempenho infinito.
Cada pessoa vira empresa de si mesma, responsável pelo próprio sucesso e pelo próprio fracasso, condenada a produzir sem descanso. O corpo e a mente tornam-se ferramentas de produção, e o cansaço, o ócio ou a fragilidade são vistos como fracasso moral.
O trabalho já não coloniza só o tempo, mas também a subjetividade. O individualismo rompe os vínculos coletivos e transforma a vida numa competição silenciosa. A autonomia se converte em solidão, e a liberdade, em uma forma sofisticada de desamparo.
Sofrimento que nega a potência.

Nesse cenário, o jornalismo costuma mostrar a população negra quase sempre pela lente do sofrimento. A dor é repetida e socializada, enquanto a alegria, a potência, permanece invisível ou no terreno do discurso moral meritocrático, quase privatizado, como se não fosse coletivamente possível. Assim, a imagem do negro se fixa na carência, não na potência.
Como aponta a jornalista Fabiana Moraes, narrar o outro apenas pelo sofrimento é também um gesto de colonização: mantém-no no lugar da fragilidade. Reconhecer sua potência significaria admitir que esses sujeitos podem entrar na piscina, disputar poder e reclamar lugares historicamente negados.
Fabiana Moraes lembra também* como Carolina Maria de Jesus, em Casa de Alvenaria, denuncia o racismo sutil da imprensa. Mesmo após o sucesso de Quarto de Despejo e realizando o sonho de viver com dignidade em uma casa no bairro de Santana, Carolina era visitada por pessoas que se frustravam ao vê-la vestida com elegância, usando seda e vivendo sem miséria. Esperavam dela a imagem da pobreza, não a da conquista. Essa cobrança revelava uma operação violenta: mostrar que o negro não cabe no conforto, não produz sua própria felicidade.
Não é mera coincidência a discussão infinda que lega um lugar menor dentro do Rap às canções em que negros ostentam suas conquistas de consumo. O pretexto é a commodificação da música. Mas não seria essa crítica mesma muito fácil dentro de um moralismo de esquerda que não consegue enxergar a complexidade da expressão da arte preta e os desejos que ela expressa? É para essa raiz estrutural do racismo que o bem viver aponta.
Bem viver e direito à piscina, saúde, educação e trabalho digno.

Quando mulheres negras assumem o controle dos discursos sobre si e falam dos seus, outra realidade se impõe. Como é o caso do curta “Redestina”, do Efigênia Audiovisual, de São João del-Rei. Nele, Tina, sobrecarregada com a jornada dupla de trabalho, em um golpe de sorte, reinventa o seu destino. Numa festa de despedida da antiga vida com as amigas, ela não apenas revela seu plano secreto de libertação, mas celebra na PISCINA!
Hoje, 25, a Revista Mana acompanhará o comitê da 2ª Marcha das Mulheres Negras do Campo das Vertentes em Brasília, por Reparação e Bem Viver. Trata-se de um movimento revolucionário e radical porque busca atingir a raiz e o coração da exploração capitalista em sua fase ultra-neoliberal. Somos todas Redestinas!
Reivindicar o Bem Viver é se redestinar, como a heroína fictícia. Porque este é um projeto de sociedade sugerido pelas mulheres negras. O conceito critica o modelo de desenvolvimento baseado em lucro, competição e desigualdade, e propõe outra lógica: a vida plena, digna, com direitos garantidos e relações sustentadas pela solidariedade, pela ancestralidade e pelo respeito à natureza.
Esta proposta nova é algo que só mulheres negras poderiam entender como pauta central. Não porque são vítimas. Mas porque são inventivas e sabem que aí está o rompimento óbvio com as estruturas racistas, patriarcais e coloniais que negam humanidade às populações negras.
O Bem Viver supõe reparação histórica, acesso real a saúde, educação, moradia, trabalho digno, lazer e participação política. É também a valorização de modos de vida comunitários, dos saberes quilombolas e indígenas, e da construção de um mundo onde viver não seja apenas sobreviver, mas florescer em coletividade. É o bem existir, o bem estar em uma piscina depois de trabalhar sem ser explorado e com todos os diretos assegurados pela constituição.
*Artigo “Negros na piscina: as imagens de felicidade e insurgência como estratégias decoloniais”








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