Deixa elas enrolarem!
- Daniela Mendes
- 15 de jul. de 2022
- 7 min de leitura
Atualizado: 2 de jul.
Três mulheres que decidiram parar com procedimentos de alisamento contam as alegrias e os desafios encontrados.

Uma mulher é julgada o tempo todo pela aparência antes de qualquer talento que ela possa ter. Quem não lembra de quando a apresentadora Fátima Bernardes, então a frente do Jornal Nacional, fez escova japonesa?
Ao lado do marido durante 14 anos, ele nunca gerou comentários desta natureza. Já ela, quando fez a então chamada escova permanente, além dos programas de fofocas e blogs da época, teve que dar entrevista para o Fantástico e satisfação para publicações com conteúdo nem tão dedicado ao entretenimento, como a Revista Veja.
Então novidade na época, os procedimentos capilares de alisamento deste tipo, utilizavam em sua fórmula o ácido til glicólico de amônia e deixou o cabelo da apresentadora liso, sem forma e também a constrangeu com uma chuva de comentários de todas as partes.
Assim como neste exemplo, quando uma mulher alisa o cabelo ou passa por uma transição para deixa-lo natural, tem que responder a um tanto de questionamentos além de também enfrentar uma série de dilemas de autoimagem.
Gatilho em frente ao mar.

Quando surgiu as chamadas escovas progressivas, com vários nomes, inteligente, japonesa, árabe, de morango, chocolate e etc, a então adolescente e hoje cabelereira, manicure e estudante de direito, Caroline Assis, aderiu ao procedimento. Para ela, a química mantinha a sensação de "cabelo arrumado". Mas depois chegou à conclusão que não era uma boa saída. “A progressiva com tempo sai e dá muito trabalho. No meu caso, ela me obrigava a ter que escovar a raiz”, reclama.
Cansada, cortou o cabelo e desistiu do alisamento por um bom tempo. “Por que se você tem um cabelo crespo, tem que aceitar que ele vai ficar mais bagunçado. Ele não vai estar com os fios todos no lugar e tá tudo bem. Isso que fica legal”. Mas tempos depois, quando foi trabalhar num salão, caiu em tentação. “Eu via aqueles cabelos, via todo mundo arrumadinha aí eu falei: “ai, gente, acho que vou querer fazer um botox”.
O botox é um procedimento considerado menos agressivo pelos cabeleireiros. E Carol aderiu a este tipo de alisamento por muito tempo. “Era um cabelo assim, eu acordava arrumada”, atesta. Mas então ela engravidou e teve um gatilho em frente ao mar.
Estava passeando em janeiro de 2020, em Arraial do Cabo (RJ), e percebeu que na cidade praiana não via nenhuma mulher negra de cabelo liso. “E o cabelo delas era bafão. Tinha uma menina de 17 anos, ela tava arrasando com aquela cabeleira dela. Lindona! A partir dali que comecei a reparar: as mulheres todas assumiam seus cabelos”, admirou-se.
“A escova é o primeiro passo para recair. Você acha que terá muito trabalho com seu cabelo e vai lá fazer uma progressiva”. Caroline Assis.
Pra quem já vinha flertando em voltar com o cabelo natural aquilo foi um incentivo. “Eu já tinha entrado num processo de tirar a química, mas não estava me encontrando”, justifica e lembra que o odor incomodava. “Era quinze dias passando mal com aquele cheiro”.
Hoje, está lidando bem com sua aparência. “Eu aceito que quando acordo com cabelo bagunçado eu também acordo arrumada”, conclui. Diz que só dá uma ajeitada com óleo. Às vezes usa apenas água e pronto.
Mas nada é tão simples. “A transição incomoda muito. O cabelo fica anelado na raiz e liso nas pontas”, diz Carol sem idealizar. E daí neste aspecto a pandemia ajudou. Em casa, com o distanciamento social, se importava menos com os desafios que tinha que assumir para ter o cabelo natural de volta.
Quanto ao método, não teve coragem de cortar muito curto, mas tirou bastante do comprimento. Para ela, a melhor forma de passar pela transição foi prendendo o cabelo. “Mas isso mexe com a autoestima. Para manter o cabelo solto é quase impossível”. Agora, depois de dois anos, a manicure pode curtir as madeixas livres. Por fim, avalia: “É muito difícil, mas a satisfação é maior”. Garante que o gasto, em compensação, é menor.
De vez quando ela admite uma recaída, assimilando o alisamento a uma espécie de vício. Para Carol, o inverno não ajuda. Fica ruim lavar cabelo no frio e não secar com secador. “A escova é o primeiro passo para recair. Você acha que terá muito trabalho com seu cabelo e vai lá fazer uma progressiva”.
Cada cabelo uma sentença.
A jornalista, mestre em letras e doutoranda em comunicação, Thayná Faria, já nos deu uma ideia de que há uma espécie de cultura em torno da busca pelos fios naturais perdidos. Existe até um termo, “Big Chop” (BC), para designar a decisão de cortar toda parte lisa do cabelo de uma vez no processo de transição.
Levando ao pé da letra outra palavra, “radical”, ou seja, aquilo que é pertencente à raiz ou à origem, Thayná deixou o couro cabeludo literalmente com as raízes mais expostas: passou a máquina. “Achei alguns perfis no Pinterest de mulheres maravilhosas de cabelo raspado, gostei. Tinha mais a ver comigo, meu estilo. Decidi cortar”.
Isso foi em janeiro, quando tinha se passado exatamente um mês da última química. A raiz tinha crescido pouco mais de um dedo ou 1cm. O cabelo dela já estava curto, usava channel* e não conseguia prender ou fazer penteados. Só lhe restava dividir os fios ao meio e prender com elásticos pequenos.

O gatilho foi uma conversa com a irmã, que também é cacheada. “Ela disse que às vezes pensava em alisar e eu disse que o cabelo dela era lindo e que achava que não deveria. Aí ela riu e disse que eu alisava. Pensei: ‘por que aliso desde sempre?’.” Thayná começou a ficar incomodada com o cabelo, percebeu que gastava muito e tomou a decisão. “Acho que se for pra experimentar algo novo a hora é agora. Se não gostar, aliso de novo”, deixa a alternativa em aberto, mas garante que não vai voltar atrás.
Para ela, o cabelo já estava sem forma e sem muitas possibilidades. “Vi que algumas garotas estavam trançando e cogitei a possibilidade, mas a manutenção exigia investimento financeiro, tempo e cuidados que eu não poderia fazer naquele período”, lembra como avaliou sua decisão. Na época, ela estava de mudança e tinha muitas demandas. Aí pesquisou mais um pouco e chegou ao BC.
Agora é só curtição. “Eu tô adorando, nunca tive cabelo curtinho e não o via cacheado desde a adolescência. No início fiquei um pouco receosa, se ficaria bonita quase careca... Se a autoestima ficaria abalada, mas optei por descobrir depois de cortar mesmo... E achei super estiloso”, comemora, mas também confessa: “No primeiro mês queria mudar, não tinha muitas possibilidades. Aí fiquei ruiva e amei ainda mais!”.
“A gente não vê como moda, ou como acabar com a ‘ditadura do liso’. Mas mais como uma questão de aceitação da sua identidade capilar mesmo”. Marina Ulhôa.
Do tamanho que está hoje o cabelo de Thayná não exige muitos cuidados. É basicamente lavar e deixar secar. A praticidade conta muito para ela. “Agora ele tá curto, mas já faz cachos e eu divido de lado. Depois que colori os cuidados que preciso ter são basicamente o retoque da raiz e hidratação. Descobri a umectação também que deu uma vida pros cachos e pra cor”, revela.
Thayná não alivia: a decisão vem com um desafio embutido. “Tenho me achado mais estilosa, mais livre e consequentemente bonita. Em alguns momentos esse sentimento é posto à prova, como costuma acontecer na vida de quase toda mulher, imagino, mas não me arrependi. Inclusive, frequentemente me pergunto por que não fiz antes”.
Uma leitura mais aprofundada
A farmacêutica tricologista Marina Ulhôa, foi um pouco além. Ao abandonar a química do próprio cabelo, criou o seu espaço, na capital mineira, Belo Horizonte, especializado em ajudar as mulheres a recuperarem a forma natural dos fios.
Se especializou nesse ramo que estuda tudo relacionado ao couro cabeludo, aos fios deste e aos pelos, que é a tricologia. Com o companheiro, o design Felipe Domingues, fundou o “Fusilli”. Para a dupla, a mulher que busca recuperar o cabelo precisa de um acolhimento que leve em conta a cultura, a história, a representatividade e até um respeito à identidade. Saúde e beleza devem estar, assim, associados.
“Os cabelos ondulado, cacheado e crespo são cabelos que demandam um tipo específico de corte e produto pelas características físicas dele. E muitas vezes, talvez por despreparo, eu nem acredito em má intenção, os salões induzem a mulher à prancha, ao alisamento”, afirma a especialista.
Marina diz que o movimento de buscar o cabelo natural é uma tendência mais recente no Brasil, em comparação com outros países. Ele vem junto do movimento feminista, que incentiva a identidade capilar e a fuga de um padrão de beleza. Contudo, para a tricologista, a escolha de voltar às origens tem sempre que ser uma opção, acima de tudo, individual.
“A gente não vê como moda, ou como acabar com a ‘ditadura do liso’. Mas mais como uma questão de aceitação da sua identidade capilar mesmo”, difere a especialista. Num depoimento pessoal ela exemplifica como foi sempre induzida a pensar o cabelo como um problema.
É o contrário disso. “A gente cresceu com aquela imposição do cabelo liso”, reforça a ideia e completa dizendo que, ao mesmo tempo, a demanda para aderir ao padrão vem da própria família, nas melhores das intenções em responder uma demanda social.
Como a tricologista Marina Ulhôa passou pelo processo de transição capilar, sua experiência profissional é contemplada com muita empatia. “Cada uma passa pela transição da maneira que se sente mais confortável”, diz e lembra que optou pelo curtinho quando fez a restauração do fio natural. Mas o processo é construído junto da cliente. Trabalhando a forma como a pessoa vai entendendo e, muitas vezes, resgatando o cabelo original da maneira que ela achar melhor.
Como bem diz Caroline: “Você sempre vai achar que seu cabelo está bom. Porque na realidade seu cabelo é sempre tão bagunçado que ele vai ficar do jeito que ele ficar. Eu acho que rola uma aceitação. Tem que ter”.
Glossário:
Channel: Gabrielle Bonheur Chanel, mais conhecida como Coco Chanel, foi uma estilista francesa e fundadora da marca Chanel S.A. No texto, refere-se ao tipo de corte de cabelo curto usado pela estilista.







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