A Travessia da Canoa Azul
- Daniela Mendes
- 13 de jul. de 2022
- 8 min de leitura
Atualizado: 4 de ago. de 2022
A atriz Inês Peixoto trouxe a peça Órfãs do Dinheiro ao Tiradentes em Cena e nos fez refletir sobre a emergência de se pensar saídas para autonomia financeira das mulheres.

No início era um “se”. Porque para uma atriz como Inês Peixoto, esse pronome oblíquo pode impulsionar o nascimento de uma nova vida no palco. E num posicionamento ético da profissão, da arte cênica, a missão pode ser esta, a de colocar o público na condicional também: e se fosse comigo?
Neste processo, um fio de empatia pode surgir e com ele o despertar da consciência para a realidade de mulheres no sistema patriarcal*. Foi dentro desta expectativa que a atriz chegou em maio com o monólogo “Órfãs do Dinheiro”, à décima edição da Mostra de Artes Cênicas Tiradentes em Cena.
Depois de estrear em 2019 e ser interrompida pela pandemia de coronavírus, Inês voltou com a peça aos palcos e deixou no Centro Cultural Yves Alves, em maio, um público emocionado. O espetáculo tem uma abordagem universal e conseguiu tocar de forma particular a nós, mulheres do Campo das Vertentes.
"Tracei histórias de vidas de mulheres que poderiam ser minhas histórias de vida se por acaso meu destino tivesse sido outro”. Inês Peixoto

O “se” criativo.
Atriz há 40 anos, destes, 30 no grupo Galpão, Inês vinha cultivando nos últimos tempos um desejo de escrever para si mesma encenar. “Queria escrever personagens que passassem pelo meu corpo, como meu corpo é hoje. Tracei histórias de vidas de mulheres que poderiam ser minhas histórias de vida se por acaso meu destino tivesse sido outro”, revela num tom de delicadeza.
Para tanto, começou uma busca. Percorreu desde jornais, livros, cinema, literatura e passou a uma escuta ativa de casos até a observações nas viagens que fez. Tomou pequenas anotações e foi juntando tudo aquilo que a afetava. Contudo, ainda não conseguia organizar este material numa história para levar aos palcos.
Mas o processo de criação é algo surpreendente! O cérebro de quem faz arte funciona como um forno que pega os ingredientes em suas porções, mistura e vai cozinhando como uma massa a crescer até dar a consistência buscada.
“Acho que escolhi a canoa porque na dramaturgia eu conseguia construir um momento da vida delas. Uma canoa que ainda está em travessia, de quem não conseguiu chegar”. Inês Peixoto.

Junto ao “se” inicial, a chama criativa era conduzida pela imagem de uma canoa azul na ideia de Inês. Somado a esse elemento cênico, a determinação de fazer uma peça que poderia ser montada em qualquer espaço. A atriz queria um acontecimento teatral que pudesse ser próximo ao público, sem exigir muita estrutura.
Nesse estado de “cozimento” das ideias, o espetáculo foi se delineando quando ela leu um livro de literatura comparada escrito pelo cunhado, Paulo Moreira, chamado “Modernismo Localista das Américas - Os Contos de Faulkner, Guimarães Rosa e Rulfo”. O livro traz o capítulo “Órfãs do Dinheiro”, que seria o nome da peça, produto final da busca de Inês Pereira. “Na hora que eu bati com o nome deste capítulo, sabe quando você tem um insight, assim... Eu falei: caramba!”, narra a atriz.
Órfãs do Dinheiro
Para Inês, aquele texto lhe abria a oportunidade de falar de um ponto de vista universal para determinar muita coisa. “Eu queria falar da mulher a partir dessa impossibilidade de auto sustentação independente de qualquer circunstância”, explica.
Porque, para ela, isto que impossibilita a independência financeira das mulheres, tem outros desdobramentos. “É um sistema que coloca o corpo feminino, o nosso corpo, dentro de um sistema de dominação. A partir do momento que a mulher se vê impedida de se auto sustentar, de fazer suas escolhas, ela realmente fica numa situação bastante complicada além de outras circunstâncias que a gente encontra aí o tempo todo, como a violência e os abusos”.

Feita a escolha, o mote da vulnerabilidade financeira impedindo a independência feminina baseou a narrativa das três histórias que compõe o monólogo. Nele, a atriz interpreta personagens sem determinar muito os fatos em si, mas a construção subjetiva das situações ocorridas a elas. “Acho que escolhi a canoa porque na dramaturgia eu conseguia construir um momento da vida delas. Uma canoa que ainda está em travessia, de quem não conseguiu chegar”, descreve.
Assim, ela trata de temas fundamentais: a exploração sexual, o problema da imigração, que aponta a insensatez do estado em relação às mães e, de forma mais condensada e complexa, reflete, por último, uma personagem urbana que incorpora certa cadeia de fatores que levam ao desamparo material e emocional feminino.
São tantas as nuances das inúmeras órfãs do dinheiro! Para Inês Peixoto é interesse do patriarcado que as mulheres fiquem dependentes dos favores masculinos e sirvam de escada para que os homens atinjam seus objetivos. No entanto, apesar desse pensamento tão duro, admite que se trata de uma tragicomédia: “A vida é cheia de camadas. Muitas vezes o espetáculo é risível mesmo pelo desconforto que ele vai causar”, explica.
Inês afirma que a arte, ainda como entretenimento, conscientiza. Por isso, enxerga em si mesma uma artista que, ao atuar, procura cumprir o papel social do teatro, que é fazer daquele momento um lugar de diálogo e encontro. “Quando você joga o refletor numa situação que está solta na realidade, você tenta sensibilizar as pessoas. E se você conseguir atingir, duas pessoas que seja, e colocar estas questões na pauta da vida delas, você chegou onde queria”.
A peça e a vida.
De fato. A canoa azul da peça faz sua travessia. As luzes se acenderam, os aplausos preencheram a sala do Centro Cultural Yves Alves. Enquanto isso, pode-se ver um pequeno filme distópico passando como um flash de cinco remadas nos últimos acontecimentos de Tiradentes durante a pandemia:
Primeira Remada: O Tiradentes em Cena venceu a pandemia. Durante o distanciamento social, continuou em formato on-line e agora voltou ao presencial somando dez anos de dedicação às artes cênicas de Tiradentes.
Ele é idealizado e coordenado por uma mulher, Aline Garcia. Por isso, tem um olhar curatorial pensado nas mulheres da cidade e nas rodas de conversa que esses espetáculos podem gerar. "Todas as reflexões que a peça traz e quando compartilhadas com a plateia faz um convite a pensar sobre a exploração do trabalho das empregadas domésticas e a vulnerabilidade da mulher. E quando incluímos a roda de conversa aumenta a potência do encontro", justifica.
Pensando também em outro grupo de mulheres na cidade, o "Batucada das Minas", projeto do qual Aline faz parte, trouxe o cortejo com a "Banda Sagrada Profana". Outro destaque foi a “Oficina da Palavra", com a atriz Luiza Cassano. Doze mulheres em situação de vulnerabilidade social receberam uma contrapartida financeira para participar e trabalhar suas poéticas dias antes da Mostra.
Aline comemora: "O processo do trabalho com as mulheres atua progressivamente na autoestima, no autoconhecimento, na memorização, na articulação de ideias, na criatividade e no diálogo".
Segunda remada: O Coletivo Feminista Mulheres de Tiradentes se organizou durante todo o período de distanciamento social para suprir com cestas básicas dezenas de mães que, se já estavam em situação de vulnerabilidade antes da pandemia, pioraram.
Terceira remada: Assim, também foi com o Mulheres Sonhando Alto - Musa, que hoje assiste cerca de 66 mulheres na cidade de Tiradentes e também organizou rifas para distribuir cestas básicas durante a pandemia. Para a coordenadora, Lidiane Lobo, apesar das dificuldades de pôr em prática os planos do grupo por conta do distanciamento, uma rede entre as mulheres está se enraizando, se fortalecendo.

“A gente ter com quem contar, ter um ponto de apoio, isso gera às mulheres sem recursos um certo tipo de motivação através daquela movimentação que está sendo feita”, avalia Lidiane e também lembra as falas da filósofa Sueli Carneiro no podcast Mano a Mano. “Ela se expressa de um jeito que sempre chamo atenção: as mães estão sendo achatadas, emparedadas, espremidas. Sueli fala em asfixia... É mais ou menos por aí”.
Quarta remada: Estes dois grupos, junto ao Fórum de Mulheres das Vertentes e nós, da Revista Mana, ainda nos organizamos para exigir a punição do garçom Matheus Cindra, que cometeu feminicídio contra a namorada Iara Natali, em dezembro de 2021. O crime chocou a cidade que tem um índice baixíssimo de homicídios, mas uma alta taxa de violência doméstica e nenhum centro de atendimento ou amparo às vítimas.
De acordo com o “Diagnóstico da violência doméstica e familiar contra a mulher nas regiões integradas da Secretaria de Segurança Pública do Estado de Minas Gerais (2019/2021)”, a violência doméstica em Tiradentes está acima da média de municípios da mesma região. Isso porque ainda devemos supor as subnotificações.
Quinta remada: O projeto de criação artística, “Estudantes Mães (R)Existem” aplicou no período de 05 de maio a 30 de junho de 2021 uma pesquisa a 92 estudantes com filhos na Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), dos quais destacamos os seguintes dados:
84,8% do total de estudantes com filhos são mulheres.
66,3% não tem renda fixa.
85,9% não recebem auxílio creche, nem a instituição possui uma.
81,5% não tem rede de apoio.
41% já tiveram que levar o filho para a sala de aula.
Sem falar que, destas, 81,5% se sentem afetadas academicamente por ser mãe.
A ideia inicial, segundo a idealizadora do projeto, a estudante de Teatro Lis Coelho, era espalhar fotografias destas mulheres por todos os Campi da UFSJ usando a técnica de lambe-lambe. Foi através deles que as mães se aproximaram e outros produtos surgiram. Como esta pesquisa citada, um dicionário com verbetes do tipo acessibilidade, abandono, mudança, sobrecarga, etc. Além do documentário “Hora Incerta”, em exibição no youtube.
No final de toda a atividade, Lis conclui que fez a pesquisa pensando na questão da moradia, mas acabou por entender a urgência de se ter uma creche para mães na universidade. “Eu estudo à noite, né? Enquanto eu estava no ensino presencial tinha que levar meu filho. Saía da aula 23h, sou mãe solo. Então não tenho rede de apoio”, depõe e deixa a pergunta: “Como resolver as tantas e diferentes demandas de forma que seja bom para todas?”.
Não sabemos. E a arte talvez possa não responder os questionamentos que faz. Mas pode fazer com que as pessoas perguntem a partir destas produções. E, ao aumentar o coro, joga o refletor sobre o preço que as mulheres pagam por um status quo* que já não cabe mais em nosso cotidiano. Pelo menos para quem se importa em ter uma vida mais justa. Todos os presentes entenderam na peça que a canoa azul para as personagens está no meio da travessia. Mas para Inês, que queria nos sensibilizar, ela chegou ao seu destino.
Glossário
Sistema Patriarcal: sistema de dominação dos homens sobre as mulheres de forma que a dominação não está presente na esfera familiar, no trabalho, na mídia e na política. Trata-se de uma dinâmica social como um todo, estando inclusive, inculcado no inconsciente de homens e mulheres individualmente e no coletivo enquanto categorias sociais.
Status quo: significa "no estado das coisas". Trata-se de uma redução da frase in statu quo res erant ante bellu, que significa "no estado em que as coisas se encontravam antes da guerra". É um latinismo, ou seja, palavras emprestadas para outro idioma diretamente do latim.
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