Serra Ferida. Parte 1.
- Daniela Mendes
- 10 de out.
- 6 min de leitura
Na primeira parte da série sobre a Serra de São José, trouxemos testemunhos de quem viu as chamas de perto e quase perdeu tudo.

O fogo começou silencioso na noite de sábado. Um ou outro post nas redes sociais alertou. Depois, pontos vermelhos cortando o escuro da Serra de São José não foram suficientes para evitar a negação do fato, com uma perspectiva positiva de uma fé sem sentido: vai apagar, todo mundo imaginou.
Mas quem? Os brigadistas voluntários? A própria natureza? Alguma sorte divina? Os mesmos que sempre regem nossas ilusões de segurança?
Aprendemos uma dura lição: a intenção sozinha não determina a realidade. Quatro dias depois, o que se via era um cenário de desolação. As nascentes, as espécies que escolheram ali se refugiar e o símbolo da identidade de Tiradentes, São João del-Rei, Santa Cruz de Minas, Coronel Xavier Chaves e Prados ardiam em chamas chamando atenção dos maiores noticiários do país.
Quando o verde cede ao preto
Quando o verde cede ao preto e a vida ao rescaldo, as histórias de quem escolhe viver perto da natureza revela a fragilidade da Serra de São José, uma área constantemente ameaçada pela ação do homem. Prova que hoje não existe segurança e que este ainda não é um momento de alívio que sucede uma tragédia.
A instrutora de Yoga e hosting (anfitriã de hospedagem) rural Natália Rezende Monteiro, moradora de um sítio em São João del-Rei, viveu horas de medo na terça-feira, 9, quando o incêndio chegou até a região onde mora.
“Comecei a notar o fogo por volta das 11 da manhã, na parte mais alta do sítio. Primeiro me preocupei com a vizinha mais próxima, porque o fogo estava na linha da casa dela, onde moram dois idosos que não andam e uma filha que não escuta. Acionei os bombeiros e disseram que estavam chegando. Até então eu não tinha muito o que fazer, porque estava longe do alcance das mangueiras”, conta.
Segundo Natália, as chamas se alastraram rapidamente.
“Eu estava com mais uma pessoa e, entre nós dois, fomos tentando conter como dava. À medida que o fogo chegava perto, fui me preocupando. Tem um carro parado no quintal e meu medo era o fogo chegar nele ou no bambuzal que é colado com a casa. E de fato pegou fogo na vegetação, mas conseguimos conter.”
O incêndio durou cerca de oito horas e deixou prejuízos materiais.
“O abastecimento de água aqui é por cisterna, que está vazia por causa da seca, ou por uma bomba que vem do rio. Quando o fogo cruzou a estrada, queimou tudo, me deixando sem água. Além disso, teve um curto em parte da casa. Perdi ferramentas, todo material de acampamento e as futuras reservas do chalé, que é parte essencial da minha renda.”
Abalada, Natália lamenta o que considera uma tragédia anunciada.
“É lamentável pensar que foi um fogo criminoso. Queimou muita mata nativa, vários pés de fruta... O fogo chegou a dois metros da minha casa. Infelizmente, não há bombeiros suficientes na cidade, o que é um absurdo.”
Mas, para ela, o maior problema é a falta de consciência sobre os efeitos devastadores das queimadas:
“As pessoas realmente não dimensionam o que é colocar fogo. É uma destruição.”
Ajude Natália a recuperar o que perdeu. Ela está fazendo uma rifa. Clique na imagem para aumentar caso não consiga ler no seu dispositivo.

A serra como espelho do medo
O relato de Natália revela o que a Serra de São José simboliza para quem vive sob sua sombra: mais do que uma paisagem, ela é memória, abrigo e identidade. E quando ela queima, queima junto um pouco de todos nós.
A bióloga Maria Mello assistiu de casa à transformação da Serra de São José: de um campo florido e cheio de vida, por onde ela andou no domingo, 5, durante a Terceira Caminhada da Primavera, a um cenário de destruição e fumaça, dois dias depois.
“No domingo, eu participei da travessia da Serra de São José, promovida pelo professor Luiz Cruz. Foi um passeio maravilhoso, com cerca de 40 pessoas. Sou bióloga e tenho muito gosto pelas plantas e pelos animais. A Serra é uma coisa muito especial da nossa região. Vimos flores lindas, o campo do cerrado estava vivo.”
Mas a paisagem mudou rapidamente.

“No sábado de manhã, já tinham notícias de que a Serra estava pegando fogo. Eu moro numa casa que dá de frente para a Serra, então fiquei assistindo tudo. Pequenas áreas queimando, e a gente vê o fogo se espalhando muito rápido.”
Ela lembra que, no início, acreditou que o cerrado pudesse se regenerar, como costuma acontecer em queimadas controladas. Mas logo veio a consciência da dimensão da perda.
“A vegetação se reconstitui, mas quantas vidas são perdidas? Os pequenos animais, as aranhas, os passarinhos, essa vida invisível... Isso dá muita aflição.”
Nos primeiros dias, a bióloga acompanhou o trabalho dos brigadistas e se comoveu com a dedicação deles.
“Fiquei muito sensibilizada com o trabalho dos brigadistas. É um trabalho voluntário, arriscado, feito por pessoas que colocam a própria vida em perigo. Eles começavam cedo e só paravam à noite, quando já era impossível continuar.”
O cenário se agravou na terça-feira,9, quando o vento aumentou e o fogo se aproximou das casas.
“O fogo foi se aproximando e as pessoas começaram a se desesperar. À noite, o vento ficou muito forte e as chamas na frente da minha casa estavam altíssimas. Minha casa faz fronteira com a reserva, e as pessoas ficaram preocupadas comigo. Vieram vizinhos, vieram voluntários. Eu fiquei muito sensibilizada com isso.”
Ela conta que improvisou uma mangueira com várias emendas para tentar conter o fogo próximo à sua cerca.
“Eu estava no deck olhando o fogo quando apareceu um brigadista que tinha trabalhado o dia inteiro. Ele veio me orientar sobre o que fazer. E, de repente, vi uma lanterna no meio da vegetação: eram três moradores de Águas Santas que foram lá tentar impedir que o fogo chegasse à minha casa. Corriam grande perigo. Estava tudo escuro, Na terça-feira eu fiquei muito assustada, muito ansiosa. Não conseguia comer nem me concentrar. É uma sensação de impotência enorme.”
Mesmo diante da destruição, ela se emociona ao lembrar da mobilização popular.
“Foi bonito ver a solidariedade. As pessoas arrecadaram dinheiro, compraram comida para os brigadistas, ofereceram ajuda. A comunidade se uniu. Agora acho que as pessoas começaram a valorizar mais o trabalho dos brigadistas. Eles precisam de apoio com políticas públicas, não podem depender só do voluntariado. É impressionante o que fazem, arriscando a vida.”, alerta.
A bióloga também lamenta as suspeitas de que o incêndio tenha sido criminoso.
“Soube que encontraram um galão com gasolina e roupas queimadas. E a gente fica se perguntando: por quê? A quem interessa colocar fogo? Limpar área? Gerar medo? É difícil entender.”
No fim, o sentimento é de luto e aprendizado.
“Foram dias de muita aflição. A Serra é viva e quando ela queima, a gente sente que é uma parte da gente que está queimando também.”

Ameaça à economia
Em Tiradentes, um incêndio dessa proporção pode abalar toda a economia do município que vive do turismo. A gerente administrativa da Agência Estrada Real, Amanda Ribeiro disse que teve que cancelar os passeios ecológicos agendados que costuma realizar na Serra. Isso bem num mês movimentado, da semana da criança, que se soma ao feriado e com expectativa de grande procura do serviço.
“Tiradentes é conhecida como um cenário de belezas naturais e barrocas, onde as pessoas encontram a paz e tranquilidade que muitas vezes lhes faltam no dia a dia. Infelizmente, essa imagem da Serra sendo destruída pelo fogo, nos causa fortes impactos negativos. Ninguém quer estar em uma cidade com semblante de tristeza e chorando pelo fogo”, declarou.
O proprietário da agência Uai Trip, Dalton Cipriani, disse que tem trabalhado pouco na Serra de São José e tem guiado turistas mais na Serra do Lenheiro. Mas lembra que os incêndios são frequentes todos os anos. Para ele, este ano, tanto o incêndio quanto a imagem da cidade foram piores. “É um dos piores nos últimos seis, sete anos, que eu me lembro. Várias pessoas que estavam comigo fazendo outros passeios vieram comentar”.
Alertas e apelos já não previnem
Na temporada passada fizemos uma matéria de alerta inspiradas pela exposição “Rescaldo”, da fotógrafa Sílvia Reis. Mas foi insuficiente. Para a artista, o episódio simboliza mais um capítulo da crise ambiental que se agrava com o calor intenso, a seca e a escassez de água.
“Ver a serra em chamas a cada entardecer foi doloroso. É o ser humano incendiando a própria casa: o planeta Terra”, lamenta.
Ela conta que, em casa, a família enfrenta racionamento de água porque o poço está quase seco. Mesmo diante dessa realidade, observa que as queimadas continuam e a consciência ambiental ainda é limitada.
“É fundamental que o poder público desenvolva políticas eficazes de prevenção e monitoramento. Tiradentes é reconhecida por seu patrimônio arquitetônico, mas esse patrimônio está ligado ao natural. A serra e a cidade são indissociáveis: proteger a paisagem é preservar a história, a cultura e a identidade do lugar.”, alerta.

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