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Ousar fazer a diferença!

  • Foto do escritor: Daniela Mendes
    Daniela Mendes
  • 13 de jul. de 2022
  • 11 min de leitura

Atualizado: 24 de ago.

A designer trans Karol Suguikawa fala das suas escolhas profissionais e inspira uma vida mais criativa e ousada.

perfil de carol em preto e banco com a mão no rosto.
Karol Suguikawa trabalha com o conceito de design de gênero/ Lidi Lobo

É preciso, antes de mais nada, descrever um cenário. Em outubro de 2021, na Rua da Matriz em Tiradentes (MG), a Semana Criativa instalou uma poltrona num formato grande. Esta peça ficou no avarandado do casarão que abriga a Câmara de Vereadores. Logo acima, ao fundo, a Matriz de Santo Antônio compunha uma espécie de harmonia entre a arquitetura barroca* e o contemporâneo.


Tal mistura foi possível pelo Método Vértice, criado pela jovem designer trans Karol Suguikawa e que a consolidou na carreira. A ideia básica aqui é reproduzir ícones do design com novas formas, como quem diz: “e se eles tivessem novos gêneros?”.


Este foi um dos pontos da Semana Criativa. Anualmente, em outubro, o evento recebe profissionais afins de todo Brasil para divulgar e valorizar saberes tradicionais sem perder de vista a comunicação com o contemporâneo. A jornalista Simone Quintas e o produtor cultural Júnior Guimarães fazem uma verdadeira maratona de conteúdo e de experiência sobre artesanato, design, arquitetura, gastronomia e estilo de vida brasileiros durante quatro dias.

Karol está na varanda da câmara na rua da matriz sentada na sua poltrona vértice.
Karol e a poltrona vértice/ Lidiane Lobo

Além disso, no período que distancia uma edição de outra, eles também realizam as imersões entre designers e artesãos locais para que troquem conhecimentos. Karol Suguikawa apresentou a palestra dela em 2021 e, naquela ocasião, quando concedeu esta entrevista, ela já repetia que desejava voltar para a imersão. O que de fato aconteceu e fez com que a designer tivesse um olhar mais aproximado de Tiradentes.


Esta descendente de japoneses, arquiteta, formada pela Universidade Estadual de Goiás e mestre em Design no Politécnico de Milão (Itália), se adaptou perfeitamente à cidade. Encontrou as contradições com as quais lidamos no dia a dia e, com muito bom humor, mostrou-se sensível ao propósito que lhe trouxe até aqui.


Harmonizar os contrastes é quase que uma filosofia local, muitas vezes perdida pelos desmandos do cotidiano. Por isso, é bom parar um pouco e conversar com quem dedica sua vida a pensar soluções para o dia a dia sem perder a dimensão artística.


Mana: De Goiás a Milão, conta pra gente do seu despertar para o design.


Eu tinha muita dúvida entre arquitetura, moda, publicidade... Eu sempre quis uma coisa na área de criação, porque sou uma pessoa muito criativa. Então eu fiz um teste vocacional e decidi fazer Arquitetura. Mas, durante esta graduação, eu já tinha algumas incursões no design.

A minha primeira peça, que chama Poltrona Erótica, foi feita durante esta graduação. Quando eu fui morar em Anápolis (GO), fiz todos os desenhos das peças do meu quarto, não comprei nada, desenhei tudo. Eu já tinha essa ligação com o design desde cedo.

Depois que terminei a faculdade, percebi que o mercado de arquitetura é muito fechado para mulheres. E eu senti essa resistência também por ser mulher trans. Sem falar que nunca quis muito trabalhar para os outros. Sou ariana, né? Eu não queria fazer coisas para os outros assinarem. Isso não é da minha verve. Eu não queria trabalhar num escritório onde tivesse uma cabeça e eu ser mais um nome nas minhas peças.

E outro problema que eu tinha, é que quando terminei a faculdade, não tinha feito a minha mudança de nome ainda. Mais um motivo que eu não queria seguir na arquitetura. Eu não queria colocar uma placa com um nome que não era meu. Ou seja, não queria o nome dos outros, nem um nome que não era meu, entendeu? Então, não era essa a pegada.

Eu comecei a ir pro design, a ver as coisas... Até que eu recebi no meu e-mail uma proposta de bolsa pra estudar no Politécnico de Milão. E eu fui atrás. Pedia o inglês fluente, que eu já tinha. Pedia um portfólio de alguma coisa desenhada, que eu já tinha. Eu estava direcionada... Então, fui atrás de tudo.

Foi um processo bem chatinho de se fazer, umas cinco etapas. Primeiro, teste de proficiência em inglês, vários outros e aí no último que eu passei eu falei: ‘gente, eu não acredito que eu passei nisso’. Eu já tinha terminado a faculdade, fiquei no Rio de Janeiro um tempo curto e de lá fui para Milão. Então essa transição da arquitetura pro design foi bem degradê.

“Quando eu comecei a desenhar as pessoas diziam: escolhe uma linha! Ou você faz autoral ou você faz comercial. Mas eu pensei: estou aqui por conta, vivendo as questões da minha forma. Vou experimentar tudo. E aí eu tinha algumas coisas comerciais e algumas coisas conceituais”. Karol Suguikawa

Mana: Como é levar a vida entre a fruição criativa e as exigências do mercado? Como fazer uma coisa sua de verdade e não ficar só na tendência de mercado?


É uma roleta russa. Uma coisa é o mercado e outra é você fazer um trabalho autoral. Quando você está fazendo um trabalho autoral, normalmente, está indo contra uma questão de mercado. Porque se ele está indo muito pro lado do mercado, ele cai num commodity*.

Então, se você quiser olhar pro mercado, o design tem uma linha pra isso. Ele quer saber se a cadeira cabe na caixa, se ela dá pra sentar direitinho, se desmonta, se o parafuso é isso, se o parafuso é aquilo.

Imagina uma pessoa que vende commodity. Ele quer vender milhões de peças. A minha produção autoral já é mais arte, é o que se chama de design arte ou design de coleção. E aí tem essa história que eu falei na palestra: é um tiro no escuro. Quem quiser se arriscar nesse campo, a pessoa não pode estar esperando sucesso econômico ou profissional. Porque ele pode acontecer e também pode não acontecer...

Quando comecei a desenhar as pessoas diziam: escolhe uma linha! Ou você faz autoral ou você faz comercial. Mas eu pensei: estou aqui por conta, vivendo as questões da minha forma. Vou experimentar tudo. E aí, eu tinha algumas coisas comerciais e algumas coisas conceituais.

Só que eu tive uma grande sorte do destino. As pessoas falam que não dá certo e comigo deu. Algumas empresas comerciais aceitaram peças minhas tanto autorais quanto comerciais. Então hoje eu posso dizer que estou em lojas do mainstream*, como a Breton, que vende peças de luxo. E também estou trabalhando na Tok Stock que é uma coisa mais de mercado, mais industrializada.


Foto: Lidi Lobo
Foto: Lidi Lobo

Mana: Então não tem segredo do sucesso...


Não... Na verdade, é o que eu penso... Você olha pro mercado e diz: é o que eu quero mesmo e enfia a cara naquilo ali...

Se diz, eu quero vender commodity. Daí faz pesquisa de mercado, de tendências, o que as pessoas estão querendo... Isso é uma coisa que dá para ser feita. E aí a pessoa investe naquilo, num nicho.

Mas o design autoral já é uma coisa mais arriscada. É uma coisa que você faz em números menores. Certamente a peça vai custar mais e você pode vender uma por ano.

"Eu, se fosse uma artesã dessa, eu queria que a minha peça fosse única. Eu queria que as pessoas olhassem a minha peça e só procurasse na minha loja”. Karol Suguikawa

Mana: Isso é muito interessante, porque temos na nossa região muitas mulheres artesãs que devem chegar nessa encruzilhada. O que você diria para elas?


Para as mulheres artesãs, se eu puder falar alguma coisa, eu diria o seguinte: como elas estão trabalhando com o artesanato? Transformar as questões delas é muito importante.

Eu, se fosse uma artesã dessa, queria que a minha peça fosse única. Eu queria que as pessoas olhassem a minha peça e só procurasse na minha loja. E não ia querer reproduzir uma commodity. Porque aquilo te coloca num preço padrão, que pode fazer um orçamento daquilo.

Quando você faz um design autoral, colecionável, aquilo não tem como fazer orçamento, porque aquilo é só seu. Então existe um valor agregado altíssimo na peça onde tem um valor sentimental, toda uma história, que faz a peça valer mais.

Se eu pudesse falar alguma coisa para as mulheres artesãs, seria investir na verdade delas. Trabalha com commodities, que a gente precisa se manter, a loja precisa funcionar, a gente tem que estar no mercado, entendo isso. Mas também investe numa linha, uma coisa só dela.


Karol com a Serra de São José ao fundo./Lidi Lobo
Karol com a Serra de São José ao fundo./Lidi Lobo

“Eu acho que o luxo é a experiência da pessoa”. Karol Suguikawa

Mana: O que você acha que torna o design mais elitista e o que pode ser feito para mudar isso?


Eu, às vezes penso sobre isso... Porque trabalho com questões de gênero e falo além das mulheres brancas... Mas esse trabalho geralmente está numa galeria e com um preço altíssimo. Então, posso criar uma peça que fala de uma minoria para um mainstream. Isso eu me questiono muito.

Mas tenho uma definição clara do luxo. Eu acho que o luxo é a experiência da pessoa. Cada pessoa tem um luxo próprio. Então, entendi que as pessoas tem que criar seu próprio luxo. Se é o tempo com a família, com os filhos, se é uma comida que ela mais gosta, vestir uma roupa que tem uma textura boa... Isso tudo é luxo. Então, eu acho que a pessoa pode criar seu próprio luxo e se proporcionar o luxo de várias formas.

E o fato de eu criar essas peças que vão para galerias com preços altíssimos é política de cabo a rabo. Eu ocupar esse lugar no mainstream e estar lá é muito importante pra poder falar pra mais pessoas. Quem me julga por estar nesse lugar é quase querer me tirar de lá.


Mana: Quais dificuldades você encontrou na carreira? Alguma te marcou mais?


A maior dificuldade da minha carreira e da minha transição é o tempo. A peça que fiz para Eliane é um relógio. Ela me emociona muito quando penso na minha história. Eu sempre achei que demorou muito.

Eu sai da faculdade e teve todo o tempo da questão da transição. A minha terapeuta fala que por conta de eu ter uma transição tardia, que foi na faculdade, não tive vida adolescente com o gênero que tenho.

Dentro dessa possibilidade física proporcionada, é uma questão que me dá um certo privilégio de passar com fluidez por alguns lugares e as pessoas me veem como mulher cis. O problema é que agora que já passei por vários outros dramas, por ser mulher trans, tenho que viver os dramas de mulher cis* e mulher trans juntos. É muito pra mim.

Sou grata pela minha possibilidade. Prefiro do que ser xingada na rua, sofrer agressões... Eu sei que é um privilégio, mas não é fácil.

Em relação à carreira é engraçado, porque hoje me analisando percebo uma coisa: sempre achei que tudo demorou muito, sabe? A família perguntando quando é que vai acontecer, cadê a sua estabilidade financeira... Todo mundo me cobrando muito isso e as coisas não vinham. E aí, quando o negócio veio, foi de pancada, sabe? A gente acha que tudo está demorando e aí quando acontece a gente acha que está muito rápido. Nunca estamos satisfeitas com o tempo, o tempo é um inimigo. (risos)


“Você quase nunca vê mulheres se apropriarem do corpo masculino. É quase um tabu”. Karol Suguikawa

E o que é o Método Vértice?


O Método Vértice é uma constatação minha de perceber que o mundo do design e da arquitetura não tem espaço para mulher. A fim de colocar esta questão, tive que utilizar peças prontas para trazer certo desconforto para as pessoas que são da minha área. Então, uso poltronas conhecidas do meio do design e transformo.

Eu escaneio este assento que já existe e consigo um protótipo em 3D. Esta peça, pode ser qualquer outra coisa. Eu começo com poltronas, mas poderia ser até uma fruta. Eu transformo curvas em retas. E, na minha concepção, relaciono curvas ao feminino e retas ao masculino. É como se eu usasse esse corpo masculino com liberdade poética e artística.

Eles sempre fizeram isso com o corpo feminino. Mas nós nunca fizemos isso. Você quase nunca vê mulheres se apropriarem do corpo masculino. É quase um tabu. Eu faço esta proposta meio que abusando do corpo masculino, o inverso.

Alguém que talvez tenha uma identidade não-binária pode achar que o meu método é um tanto quanto antiquado. Porque as pessoas não querem mais falar em binaridade, em gênero. Eu acho incrível as pessoas serem fluídas e acho ok não-binária. Mas exigir de uma mulher trans que ela não seja binária é muito agressivo.

A binariedade é algo inerente a algumas mulheres trans e eu sou uma delas. Eu gosto de performar o feminino, eu gosto dessa história. A minha construção passa por isso. Então, quando falo de curvas, que se passam por corpos femininos, é porque por onde eu passei, onde eu cheguei, a silhueta que eu busquei e gosto, passa por esta questão.

Qual o problema da mulher trans performar o feminino, não é? Eu só acho que você não deve ser obrigada a ser ultra feminina. Só estou dizendo que isso é inerente à minha construção. A busca do novo, do ser criativo dentro da gente, depende de um arsenal próprio de referências.


"eu acredito que as mulheres cis tem um papel fundamental na quebra da transfobia. Eu acho que elas deveriam ser mais aliadas das mulheres trans". Karol Suguikawa

Foto: Lidi Lobo
Foto: Lidi Lobo

Como mulher, qual o seu conselho para outras mulheres, de outras áreas, inclusive, exercitarem sua criatividade? Qual o seu segredo?


Acho que uma das coisas mais importantes no universo criativo é referência e memória. É muito importante a pessoa ter esse legado, uma biblioteca de memória visual e referência. Então, a pessoa pode buscar isso nas mais diversas áreas: na literatura, no cinema. Porque tudo isso cria elementos para o seu repertório pro seu processo criativo. Que, por sua vez, pode ser pessoal, ter relação com sua infância, existem várias questões.

Todo artista, todo artesão, toda pessoa que trabalha nessa área de design, arquitetura, moda, ela tem que ter referencial histórico. Se você não tem isso, você está fazendo commodity, ou alguma coisa que alguém já fez ou que um monte de gente já está fazendo. A busca do novo, do ser criativo dentro da gente, depende do arsenal de referências.

Eu pra começar minha produção, fui estudar muito sobre design brasileiro, internacional... Tenho essas referências muito claras comigo pra poder entender o que já foi feito, o que é novo.


Para terminar, qual recado você daria para as mulheres e meninas trans e mulheres e meninas cis daqui da cidade e região?


A nossa luta diária é uma luta de nós todas. Nesse sentido, eu daria o seguinte conselho: onde ela estiver e com quem estiver, a mulher trans deve entender e mostrar a ideia do que é ser trans e o que acontece.

Cada uma tem um nível cultural, cada uma tem sua ideia, cada uma tem a sua vivência, mas educar as pessoas do que é a transexualidade, mostrar que nós temos o direito de estar em todos os lugares, é importante para diminuir a violência. Se cada pessoa fizer isso com a família, com o vizinho com o dono do mercado, com o patrão, cria-se um ciclo que as pessoas vão entendendo mais essas questões.

Para as cis tenho um pedido, na verdade: eu acredito que as mulheres cis tem um papel fundamental na quebra da transfobia. Eu acho que elas deveriam ser mais aliadas das mulheres trans.

Vou dar um exemplo. Uma mulher cis que fala que um homem que namorou uma mulher trans não serve para ser parceiro dela, também pratica transfobia. Nesse processo todo, ao invés disso, a mulher cis pode normalizar a mulher trans e abraçar essa causa como dela. Isso seria maravilhoso!

É um problema geral. Passa pelo homem também, não tiro a responsabilidade deles. E claro, não estou colocando a culpa nas mulheres cis, só coloco a luta como de todas nós mulheres.

Quando uma pessoa se coloca no lugar do outro, muita coisa muda. Para uma pessoa com preconceito, minha fala é: você é mulher. Imagina ser obrigada a ser homem. Se todo mundo conseguisse essa empatia, o preconceito acabava. Ser transexual, antes da transição, é se olhar no espelho e não se vê, você não se reconhece. Por isso, a palavra mais importante do mundo é empatia.


Glossário:


Commodity: produtos básicos globais não industrializados, indiferenciados e sem autoria com preço determinado pela oferta e procura geral.


Mainstream: conceito que expressa uma moda principal e dominante; convencional.


Cis, cisgênero: uma pessoa que nasceu com genitália feminina/masculina e cresceu com características físicas de mulher/homem conforme se é esperado pela convenção, além de adotar os padrões sociais esperados.




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