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Logo da criadora Daniela Mendes

Até logo, Beth!

Em nosso primeiro obituário celebramos o amor como a liberdade radical e possível porque assim Beth nos ensinou.


Auto retrato da artista em tela.
Auto retrato da artista em tela.


Deixou o corpo físico nesta manhã de uma quinta-feira (23), em outubro, plena primavera, a artista plástica Beth Cavalcanti, de leucemia. Fica a saudade e quatro filhos, Mariana, Tomás, Clarice, Luca e três netos, Gael, Nil e Chico.


Beth passou um bom tempo desenvolvendo a ideia de que é a mesma coisa: corpo e casa. Por que na casa o corpo habita e no corpo a alma mora dentro. E quando essa moradia acaba, o que você tem? Liberdade. A liberdade radical que ela buscou lapidar com suas mãos a vida inteira. Talvez a criação seja isso, as tentativas da alma fugir de dentro da epiderme. Mas a liberdade é ir para qualquer lugar a hora que quiser?


E para onde se vai? Pergunta quem não consegue imaginar as coisas que não vê. E aí está o grande erro do materialismo. Ela não vai. Ela fica. O mundo é feito de alma e não acredito que ela é um hectoplasma gosmento e nem esfumaçado. Tampouco há de se esconder sob um lençol como se a vida fosse uma nudez a ser coberta. Nem acaba. A vida é feita da beleza que as almas inscrevem no mundo. Assim como uma criança que desenha com caneta um relógio no pulso é o tempo.


Bonito, mas não é fácil. O mais difícil é criar e se desprender da obra. Esse é o dilema de todas as mulheres. Por isso, elas estão mais próximas do ritmo da vida que se desenvolve em ciclos. Uma hora se é menina, noutra sangra, e quando pacifica as regras, elas cessam. Depois faz filhos, fazer-se em duas, e daí vem o mundo e toma a cria. A mulher vai ficando com as mudanças e ciclos da vida, até chegar o dia em que se vai e encontra a liberdade radical de sua alma.


Agora, seus ensinamentos estão grudados nas almas dos filhos, o gesto está grudado nas cores do seu trabalho, as gargalhadas no eco que se faz no coração dos amigos e a casa uma bagunça. Por que Beth é uma festa e as festas por onde passam deixam uma bagunça pra gente arrumar e recomeçar. E agora ela não mora apenas no Espaço Terra. Tampouco vai embora. Beth fica. Fica em cada um de nós e nos faz descobrir que a liberdade radical sempre foi o amor.


A vida


Beth Cavalcanti nasceu em Dores do Indaiá, em 1957. A infância, marcada cedo pela perda da mãe, levou-a aos cinco anos para Belo Horizonte, onde foi viver com a irmã mais velha, uma jovem recém-casada, tão inexperiente quanto a menina que passava a cuidar.


Os primeiros tempos foram de desencontro e silêncio, até que um gesto do acaso mudou seu destino: o médico Antônio Carlos Belucci, amigo da família, convidou-a para passar um fim de semana em sua casa para que a irmã de Beth pudesse descansar.


Lá, a pequena conheceu a pedagoga Léa Nogueira, esposa de Antônio Carlos, mulher sensível, que logo reconheceu na menina uma chama criadora. A afinidade entre as duas foi imediata e profunda. Daquele encontro nasceu um vínculo que não se desfez mais. Beth foi adotada pelo casal e encontrou um lar cheio de amor e estímulo ao seu talento.


Com o apoio dos pais adotivos, mergulhou no mundo das artes. Viveu intensamente a efervescência cultural de Belo Horizonte entre os anos 1970 e 1980. Tempos, aliás de experimentação, liberdade e cores novas sobre as telas. Foi também nesse ambiente que conheceu o artista José Renato Sartori Inchausti, companheiro de vida e de criação.


Beth e Tiradentes


O casal trocou o horizonte de prédios pela Serra de São José, em Tiradentes. Numa propriedade da família, criaram o Espaço Terra e construíram uma vida entre tintas, filhos, hóspedes e amigos, muitos amigos, deles e dos quatro filhos.


Administravam uma pousada, que tinha como diferencial várias casas de hospedagem ao invés de uma única sede, como uma pequena vila, o Espaço Terra. Criavam obras, cultivando ao mesmo tempo a arte e a convivência.


Nos anos 1990, quando o turismo ainda era discreto e Tiradentes guardava um ar de refúgio, o casal fez parte de uma geração de artistas que foi para lá e ajudou a dar forma à cena cultural local. Um tempo profícuo, bucólico e feliz.


Depois, a família passou um ano na Europa e, ao voltar, Beth se separou do companheiro, voltou para a universidade, manteve-se muito criativa, mirabolando suas ideias em formas e peças singulares.  Cada vez mais recebendo pessoas interessantes, fazendo amigos e parcerias.


A trajetória de Beth Cavalcanti se confunde com os bordados, uma das artes, a mais nova, que começou a desenvolver mais recentemente: uma vida tecida com afetos, cores e gestos de permanência, traço distintivo da arte.


A obra: Meados 1970/80


Inicia-se na arte por meio de um curso livre. Aos 15 anos, viaja para a Índia com Maria Helena Andreás. Começa a explorar o traço e adota um processo de criação pautado na observação do cotidiano e nas próprias experiências.


Ingressa na Escola Guignard, mas não conclui o curso. Casa-se e passa a dividir a vida entre Tiradentes e Belo Horizonte, período em que desenvolve trabalhos orientados por uma prática livre e não linear. Nesse contexto, frequenta ateliês de cerâmica, como o de Erli Fantini, afim de ampliar sua expressão.


As obras da artista neste período incluem telas de grandes dimensões, com predominância de tons cinzentos e pastéis e a temática urbana. A luz é introduzida por meio do contraste cromático, revelando objetos e figuras discretas na composição, algumas quase ocultas. As pinceladas sugerem movimento e criam uma estrutura visual semelhante à de frames extraídos de filmes.


A obra: 1990


Na década seguinte, Beth Cavalcanti passa a explorar novas paletas cromáticas. Há também uma mudança de ambiente em suas obras. A vida no interior ganha centralidade em relação à vivência urbana em Belo Horizonte.


Isso acontece muito devido a cena artística na cidade de Tiradentes, o que amplia sua produção. Nesse período, realiza esculturas e mantém a cerâmica como campo de investigação.


Os conceitos de prazer, de cultivo do tempo e do olhar aguçado das cenas engrenadas no dia a dia orienta as decisões estéticas da artista em consonância com a liberdade criativa. Em consequência, há o desenvolvimento de estudos com objetos e o início de uma fase dedicada à representação de insetos, marcada pelo uso de tons terrosos e desbotados.


Entram em cena a exploração da tinta mineral e a investigação do grafismo das formas. Em que ela opta por decodificar elementos naturais, como a chuva e a terra. Simultaneamente, volta-se para temas ligados ao interior, tanto no sentido físico quanto subjetivo, incorporando a natureza morta em suas composições.


Ela confessa uma produção onde dialoga com Matisse e a arte abstrata, sempre orientada por uma contínua busca voltada à liberdade de se expressar.


A obra: 2000 e atual


Nesse período, a perda da mãe e questões pessoais fizeram ela diminuir as exposições. Sua vida pessoal é marcada por viagens a outros países que irão influenciar na expressão artística dela. Em decorrência, começa a recortar figuras humanas. A ideia não é o desmembramento, mas mostrar o movimento de entrar e sair de cenas e cidades.


Do Marrocos trouxe cores. Achou fascinante que as cidades mudassem de cor, do branco ao rosado, em relação ao litoral e ao interior do país. O desapego dos povos nômades e a busca de liberdade, levou-a também a experimentar o minimalismo como hipótese.


Seu corpo será velado no Espaço Terra, no ateliê da artista, das 15h às 21h.

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