A nova voz da política é feminina sim!
- Daniela Mendes
- 25 de ago.
- 11 min de leitura
Atualizado: 26 de ago.
Costureira, filha de empregada doméstica, ela foi a segunda vereadora mais votada de Dores de Campos e a primeira mulher trans eleita na região.

Hoje, o corpo de Walesca Teixeira não é mais prisão da própria voz, mas já foi. Por isso, ela começa falando de si como quem percorre uma trajetória. Primeira vereadora trans do Campo das Vertentes, fez da conquista íntima de liberar o feminino reprimido um gesto de resistência diante das injustiças silenciadas. Assim, mulher e política desabrocharam juntas.
E coube a Dores de Campos ser o palco deste pioneirismo. Uma história que começa com uma criança pobre, numa família de três filhos. “A gente vem de uma família muito pobre, passou muita dificuldade na vida. Foi aquela infância dura, difícil, mas também de muita luta e trabalho. Minha mãe trabalhou em casas de família aqui no município e levava a gente junto pra poder trabalhar”, começa.
O ingresso no mundo do trabalho aos 11 anos de idade foi a saída encontrada pela mãe quando as duas tiveram aquela conversa difícil. Walesca sentia que era diferente e não sabia direito quem era. “Eu não entendia sobre a transexualidade. Para mim eu era apenas um homossexual.”
Foi acalentada e aceita pela mãe, mas a presença do pai era uma ameaça. Então, o conselho materno foi instruí-la a trabalhar. Era o financeiro como signo da liberdade. “Eu ia nos bairros todos da cidade, todas as noites, fazia sol, chuva, frio, eu estava lá na bicicletinha, entregando os lanches. Ganhava o meu dinheirinho e foi aí que comecei a ter a minha independência e aprender a sobreviver”.
Escutava em casa muitas críticas e teve vários conflitos com o pai. “Engrossa essa voz, para falar igual homem”, ouvia o comando e sentia rejeição, o que contribuía para cada vez mais ter um comportamento tolhido.
O silêncio foi a primeira coisa que existiu
Mas essa liberdade não significava estar livre dos preconceitos. Na escola, os ataques eram tão desestabilizadores quanto as ofensivas domésticas. Walesca lembra que era a voz que a denunciava e marcava a diferença. “Eu fui muito reprimida pela minha voz. Eu não sei se você percebeu, você acha que minha voz é diferente, né? Quando eu era criança eu ouvia muito assim: ‘Nossa, essa voz’”.
E eram tantas críticas que, muitas vezes, ela preferia não falar. Tinha vergonha de responder os professores em sala de aula, de conversar e as pessoas, ao escutá-la, não a ouvirem de fato... Era uma timidez forjada na opressão. Por isso, largou a escola na sétima série do antigo fundamental.
Era um lar violento, com um pai que agredia tanto com palavras como com a força. A mãe tentava sair da relação, mas o pai lembrava da fome rondando uma mulher sozinha com três filhos para criar.
Houve momentos de coragem em que ela deixou o marido. Assim como também teve um momento em que necessitou retornar. Até nenhum dos filhos e a mãe aguentarem mais e, pouco a pouco, a família se desvencilhar do domínio paterno. “Era uma doméstica na cidade pequena. Ela era muito explorada, ganhava muito pouco, então ela voltava por medo, né? Preferia sofrer as agressões que sofria ao ver a gente em dificuldade; sem poder pagar um aluguel e ver a gente com fome”, revela Walesca o que, muitas vezes, muita gente não entende na vítima de violência doméstica.
Diante de uma situação que parecia sem solução, Walesca chegou a tentar suicídio aos 15 anos. E, nos momentos mais difíceis, o conselho da mãe servia como bússola. Sempre trabalhar para poder se livrar do sofrimento. E foi quando conseguiu entrar na multinacional que tem na cidade, a Marluvas, que é uma empresa que faz calçados de segurança.
A costura que empodera

Do acesso à cidade até o centro, o comércio de selaria acompanha quem chega em Dores de Campos. Os amantes da cultura country encontram na cidade uma grande variedade de artigos artesanais de couro. Tanto que o município, com 10 mil habitantes (IBGE, 2022), é conhecido como a capital da selaria. Aos fins de semana, essa economia atrai visitantes em busca de artigos de couro.
Afora essa característica típica, Dores de Campos é uma cidade mineira tradicional: uma igreja matriz e pracinha no centro, onde os mais idosos se reúnem também para jogar baralho.
Muito se exalta a imagem do tropeiro, que inclusive é representado por uma estátua ali no centro. Para quem não sabe, eram homens que, entre os séculos XVII e XIX, em Minas Gerais, transportavam mercadorias, pessoas e notícias em tropas de burros ou mulas, atravessando longas distâncias entre as vilas, fazendas e centros urbanos.
Nesse cenário, Walesca se inseriu na principal atividade econômica como costureira. “Foi a profissão que eu exerci. Eu abandonei os estudos, mas eu tenho muito orgulho da minha profissão. Minha casa própria e tudo que conquistei foi através do meu trabalho.”
E o que não mata fortalece. Walesca adquiriu uma força interior e uma intolerância a injustiças. Foi esse sentimento de quem sobreviveu, que fez a mulher que aprendeu a nunca mais se calar. E o “menino”, amuado e confuso, ficou para trás.
A voz e a identidade nasceram juntas, uma apoiando a outra. No trabalho, havia reuniões em que ela precisava falar. E, em dado momento, Walesca começou a não falar só por ela. Outras duas amigas trans começaram a sofrer preconceito por parte de alguns funcionários da empresa. Já com sua identidade construída, percebeu que não podia mais deixar a transfobia perpetuar em sua vida.
O uso do banheiro feminino e outros constrangimentos foram suas primeiras motivações. Foi quando Walesca sentiu que tinha que reagir. E a a voz deixou de ser motivo de vergonha para fazer coro com outras funcionárias trans. “E aí eu procurei a psicóloga da empresa, expliquei e, depois, no final, a psicóloga me abraçou, abraçou a causa, chamou todas as funcionárias, as meninas da empresa, que têm quase mil funcionários... Chamou todo o núcleo feminino, explicou para elas que a gente era para ser tratada no feminino, que podíamos usar o banheiro feminino e que, se alguém tivesse algum problema, que guardasse para si. Mesmo que a gente não tivesse feito ainda a mudança dos documentos”, lembra.
Walesca considera essa a primeira grande luta e vitória dela. O momento em que passa a se orgulhar da própria voz. No entanto, depois de algum tempo, com uma crise financeira, a encarregada precisava escolher alguns funcionários para serem demitidos... “Lógico que eu fui uma das escolhidas, né?”, ironiza Walesca.
Mas ela não sente rancor. Antes, lembra desses tempos com certo orgulho. Afinal, é a história dela. “Mesmo saindo de lá, eu sei que deixei um legado. Que as meninas trans, as próximas e as que ficaram, serão respeitadas naquele ambiente de trabalho. Serão tratadas como mulheres, que é o que a gente é.”
E explica:
“A nossa alma é feminina. Por mais que a biologia diga que não, o corpo não condiz com o nosso cérebro. Porque o nosso cérebro, desde criança, desde que eu me entendo por gente, diz que eu sou uma menina. Quando você é criança, você não entende, mas depois que você vai crescendo, você vai vendo que realmente você sempre foi uma menina. Você só se descobriu depois.”
Da dor ao grito
Em 2018, o irmão de Walesca sofreu um acidente de carro e morreu. Para consolar e cuidar da mãe doente e enlutada, ela voltou para a casa materna. “A gente enfrentava muito problema de saúde, só eu trabalhava, era um salário para cuidar da saúde dela porque ela não era aposentada. E a gente passava muita dificuldade e dependia do SUS.”
Com constantes falhas e negativas no sistema, Walesca foi acumulando uma revolta dentro de si. Percebeu que o problema não era só com elas duas e aquilo mexia muito com o seu íntimo.
Um dia, fez requisição de um veículo para levar a mãe, com Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica (DPOC) e em uso de oxigênio domiciliar, a uma consulta. Precisavam de um veículo individual para irem a São João del-Rei, já que a bala de oxigênio pequena não permitia a demora Tinham que ir e voltar logo para casa antes que o ar acabasse. Um caso claro de risco de morte, se ignorado. O que de fato aconteceu.
O outro paciente, que dividia o carro com elas, demorou muito na consulta e o oxigênio da mãe foi diminuindo. “Que angústia ver o ar diminuir e a demora do atendimento”, recorda. Tanta que, mesmo não acreditando ter jeito com vídeos, naquele dia, ela pegou o celular e soltou a voz em um vídeo. “Eu gravei um vídeo relatando o ocorrido e soltei na minha rede social. Aquele vídeo deu uma repercussão enorme para a gente que mora numa cidade muito pequena, né?”
Do grito à voz que representa

Percebendo que, através do celular, podia chamar a atenção das pessoas, depois daquele dia, tudo o que via de errado levava para os vídeos na rede social. “Eu fazia denúncia. O povo me chamava, aí eu ia lá e gravava na rua da pessoa. Foi onde eu desbloqueei a minha timidez. E aquilo foi agradando a população, e o povo começou a me procurar.”
De injustiça em injustiça, de problema em problema, a população encontrou em Walesca uma defensora. Empunhando um celular, ela aprendeu a cobrar soluções das autoridades e entendeu que tinha que “entrar para a política”.
Até então, nunca havia cogitado enveredar por esse caminho. “Eu vi o que eu passei e tanta gente me dava voz. Eu resgatei essa Walesca que tinha lá dentro. Percebi que ela sempre foi forte, sempre lutou e batalhou. Ela enfrentou todos os obstáculos da vida, mas não tinha coragem de falar. E aí eu também dei voz para essa Walesca.”, reflete.
Naquele momento, ela acreditou que podia mostrar para a população que todas as pessoas podiam falar. “Todos nós temos o direito de voz, todos nós temos o direito de cobrar os nossos direitos, porque a gente não tá cobrando nada além do que é nosso.”
Existe amor em Dores de Campos, mas...
Em Dores de Campos, Walesca não passou por um problema que as mulheres trans enfrentam nos grandes centros: o desemprego. É uma vantagem que ela reconhece na cidade: “A gente sempre foi a costureira, a varredeira, a faxineira, porque, graças a Deus, aqui no município existe preconceito como existe no Brasil e no mundo inteiro, né? Mas, pelo fato de ser um município muito pequeno, onde a gente cresceu e muitas famílias conhecem umas às outras, a gente não teve o problema do desemprego.”
No entanto, Walesca via que mulheres trans mereciam ter uma representação política mais forte. Foi então que resolveu concorrer a um cargo no legislativo da cidade. E ela escolheu ser oposição desde o início. Foi convidada para ser de um partido governista, mas preferiu o que representava a esquerda na cidade, o partido dos trabalhadores (PT)
“Eu sou uma vereadora de oposição hoje. E, antes mesmo de eu ser vereadora, eu me tornei uma oposição da atual administração. Porque o que eu vivi na pele, as coisas que eu questionava, que eu cobrava, não fazia sentido estar ao lado deles.”, justifica.
Walesca destaca o projeto de lei de sua autoria apresentado na Câmara Municipal para que as sessões fossem filmadas e transmitidas ao vivo. Ela explica que, sem a transmissão, a população participa menos e também a atuação dos vereadores não tem transparência, seja quando reajustam os próprios salários ou quando a agridem em plenário. E isso é uma constante quando ela se opõe a algumas ideias. “Eles sempre usam a biologia para me atacar”.
A demanda era tão fundamental que os vereadores não poderiam votar contra. Mas Walesca nos surpreende quando revela que eles não aprovaram o texto e refizeram o projeto de lei praticamente igual, com autoria de outro vereador, para tirar o mérito dela. Ainda sem a transmissão, a população não ficou sabendo quem realmente se preocupou com a transparência na câmara.
“E apresentaram um projeto praticamente idêntico ao meu para transmitir também. E aí, né, resumo da história: a gente aqui é minoria, né? A oposição tem três vereadores e a situação tem seis. Então, tipo assim, como que a gente vai falar, né? O nosso voto não tem muita validade, porque a gente não consegue fazer a maioria. Eles combinaram entre eles, lá dentro da Câmara Municipal, para tirar o mérito da vereadora Walesca. Porque eles não querem as mulheres na política”, relata mas também diz que não se curva: “E aí eu fui para as redes sociais, eu falei, eu levei até o conhecimento da população e considero que o projeto é meu.”
Olho no olho e R$51
A vitória é só o começo: ainda há muito preconceito e dinheiro envolvido na política, corrompendo o sistema. Mas Walesca tem a honra de dizer que faz a política do olho no olho. A cada ataque sofrido, sente a segurança de que está naquela cadeira porque conquistou cada um dos eleitores sem precisar comprar ninguém. O que é, de fato, a verdadeira política na democracia.
“Eu fui a segunda vereadora mais votada no município, com 513 votos. Eu gastei na eleição R$ 51 porque o nosso santinho não chegava, não ficava pronto, e eu já tinha começado a fazer visita em alguns bairros. Aí não tinha santinho para entregar. Para prefeito todo mundo sabe a sigla: ou é um número ou é outro, não é muito difícil de gravar. Agora, para vereadora, a gente tinha 40 concorrentes. Inclusive, o meu número era 13.111. Tinha um que era 11.111, outro 15.111. Não tinha como ficar sem santinho. Aí eu fui a uma gráfica aqui, pedi para fazer 200 santinhos, paguei R$ 51 e só. Foi a minha despesa nas eleições.”

Gastou R$51 e um tanto de sola de sapato. Com muitos seguidores nas redes sociais, Walesca consultou se deveria ser candidata antes. A resposta foi positiva e ela se agarrou à vontade dos seguidores.
Escolheu a sigla do Partido dos Trabalhadores (PT), mesmo com todos a advertindo em relação ao antipetismo. Mas os outros partidos lhe lembravam a opressão sentida na infância. Por isso, teve muita determinação: “Eu dizia: se tiver que perder, eu vou perder mesmo, mas eu não vou largar as minhas origens, aquilo em que acredito e o que eu defendo. E, graças a Deus, a gente conseguiu entrar, né?”.
Empossada, Walesca tem outro projeto: um mural em homenagem às vereadoras que já passaram pelo legislativo. A ideia é dar visibilidade para incentivar a participação feminina. “É um local muito difícil, de muita resistência. Porque eles nos veem como submissas, como menores. Não querem nos dar o direito de fala. Não conseguem entender que nós temos a mesma capacidade, ou até maior que eles, para ocupar aquele cargo ali no legislativo. Então eu fiz esse projeto e, por incrível que pareça, eles aprovaram, né? Porque tinha umas outras vereadoras de legislaturas passadas que eram do lado deles.”
Existe uma diferença entre falar para uma tela e falar para um público. No segundo caso, Walesca, com humildade, reconhecia certa insegurança. Mas o menininho confuso, que ficava calado, já não a assombrava mais. A mulher estava no comando: “Eu soltei a minha voz mesmo assim, abri meu coração, eu falei! Daquilo que eu queria, que iria lutar pela população, e foi um sucesso o lançamento da minha campanha. E aí depois fui visitar os bairros, conversar com a população, olho no olho. E venci. O candidato aqui que gastou muito dinheiro, acho que ficou indignado. Eles não aceitam.”
São muitos os casos de ataques e baixarias que Walesca teve de enfrentar nas eleições. Mas nada pode abafar sua voz novamente. Do silenciamento infantil, ela só traz um tom de voz elegante, ao contar todo o processo eleitoral. Hoje, sua maior bandeira é a da transparência na Câmara. E, embora tenha abandonado a escola, entende profundamente a democracia, muito mais do que muita gente com curso superior.
A força vem de mais de 500 pessoas que a escolheram para representá-las e de uma voz que não vai mais voltar para a gaiola. Recentemente, de luto pela irmã, ainda consegue falar de um lugar de generosidade e amor pela comunidade.
“Várias pessoas me perguntam se vale a pena trabalhar num ambiente com tantos ataques. Algumas perguntam como suporto. Querida, de onde eu vim, de onde eu sobrevivi, não será qualquer ser humano que vai conseguir me derrubar. Eu cresci sendo resistência. E não vai ser agora que oito homens vão me calar, vão me censurar. É a minha voz, que também é a dos outros, dos meus amigos, da natureza, dos animais... Eu amo tudo, né? Eu sou uma sobrevivente, mais uma de muitas por aí. E muitos acham que a gente está exagerando quando falo assim... Que a gente está se vitimizando... Mas quem viveu as nossas experiências trans sabe o que é sobreviver, o que é resistir.”
Uma sobrevivência que tem tudo para ser compartilhada com mulheres cis. Seu recado é claro: “Se abrace, se comunique e não desista nunca, porque não é fácil, né? Mas a gente sempre vai ver lá na frente que venceu. Esse é o recado que eu quero deixar para todas as mulheres.”

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